segunda-feira, 13 de setembro de 2010

2000 Anos de Cristianismo em África – Uma História da Igreja Africana, Lisboa, Paulinas, 2002, ISBN 972-751-446-4, 630 p

BAUR, John.
por Rui Oliveira [rui.oliveira@netvisao.pt]

Esta obra, já publicada nas línguas inglesa e francesa, é proposta por John Baur como um contributo de reflexão histórica na área do estudo das Religiões, particularizado no Cristianismo e circunscrito ao espaço africano. O livro está divido em 20 capítulos, agrupados em 4 partes:

* Antigüidade cristã (62 a 1500);
* Cristianismo nos antigos reinos africanos (1500 a 1800);
* Cristianismo moderno (1800 a 2000);
* Estudo país por país. Estudo de grandes temas.

As preocupações de rigor científico estão patentes na freqüente referência a documentos e bibliografia, que está organizada por capítulos temáticos e ocupa 23 páginas, com 20 páginas de estatísticas e mapas e ainda 23 páginas, a 3 colunas, com o índice remissivo. É um excelente manual de estudo para todos, mas foi preparado, de uma forma especial, para aqueles que se dedicam ao estudo da História, Sociologia, Religião, Etnografia, Geografia, Antropologia e outras Ciências Sociais e Humanas.

O texto transcrito é o marco que assinala o início da caminhada do Cristianismo para África, através do funcionário da rainha da Etiópia, convertido pelo apóstolo Filipe, por volta do ano 36 (o ano 62 é o da fundação da primeira igreja cristã em África).

A partir do ano 36, esta história de vinte séculos está escrita pela ação de milhares de missionários, políticos, sertanejos, negociantes, aventureiros, guerreiros, feiticeiros, reis e convertidos, homens e mulheres, que tenazmente lutaram, viveram e morreram ora pela divulgação da Boa Nova, ora pela conquista e expansão de influências e ganhos, ora na defesa dos seus espaços contra a intrusão abusiva, dissimulada ou sub-reptícia de estranhos olhares e vontades.

São curiosamente emotivos os relatos que o autor faz da implantação do Cristianismo no Continente africano, iniciada nos grandes centros urbanos do Norte de África, com destaque para Alexandria, cujo Patriarcado (ortodoxo) garantiu, durante longos anos, através das suas missões, a penetração até terras da Abissínia, sustentando-as de missionários e, não poucas vezes, socorrendo-as com as armas.

Quando, em 640, o Crescente chega à Etiópia, encontra um Cristianismo tão vivo e disseminado que os seus habitantes são descritos como "um povo humilde de padres e monges" (p.31).

Mesmo depois da intensa implantação do Islã e conseqüente recuo do Cristianismo, foi a partir do Norte que continuou a ser alimentado o contínuo fio da fé cristã que teimosamente avançava pelo deserto e mantinha a vida de comunidades do Leste da África, até bem perto da linha do Equador. De 697 a 1270, o reino cristão da Núbia garantia a fé de Cristo, desde Assuão até ao Nilo Azul, e, de 1270 a 1527, foi a Etiópia que sustentou o facho cristão.

Com a deterioração das relações entre cristãos e muçulmanos e com a intensificação sufocadora do avanço islâmico, essas comunidades foram ficando cada vez mais isoladas do contacto com o Ocidente, mas, permanentemente, chegavam à Cristandade ecos dos seus pedidos de ajuda. Durante todo o século XV, Portugal foi dos países que mais intensamente prestou atenção a esses rumores, que lhe chegavam de uma forma nebulosa, onde o mito e a história se confundiam. Pêro da Covilhã, por terra, e Vasco da Gama, por mar, cumpriram o propósito de trazer a notícia dessas terras cristãs, conhecidas, então, por Terras do Preste João, bem em frente das rotas orientais da misteriosa Índia das especiarias.

A partir de 1500, a penetração missionária, na costa ocidental de África, a conversão do extenso reino do Manicongo, a ação do seu rei Afonso que com o filho, o bispo Henrique, fizeram alastrar o Catolicismo com efeitos que se prolongaram por mais de trezentos anos, e, um século depois, a conversão do enorme reino do Monomotapa, a leste do Continente, fizeram sonhar alguns "apóstolos da facilidade" com a grande reunião a Roma da Etiópia e a posterior e definitiva conquista da África para o Cristianismo.

A incapacidade de uma análise profunda das sociedades autóctones, por parte dos responsáveis da missão, aliada a comportamentos de pretensa superioridade racista e de predestinação civilizacional, bem característicos da mentalidade da Idade Moderna, terão comprometido muitas das «boas intenções» que norteavam os primeiros contactos, como bem ilustra a seguinte afirmação do padre Gonçalo da Silveira (1521-1561), quando deu conta das suas impressões acerca dos povos do império do Monomotapa: "os seus habitantes são como uma tabula rasa, não têm ritos pagãos e as suas almas são fáceis de ensinar e impressionar, por qualquer doutrina que lhes seja proposta" (p. 92), e que acabou os seus dias às mãos do carrasco do próprio rei que havia batizado.

As "ricções, destruições e reconstituições sincréticas entre diferentes interesses, representações e legitimidades"– como aponta em comentário, na contracapa, o antropólogo José Fialho Feliciano –, aliadas a avanços missionários apoiados por malhas de relações onde nem sempre se distinguiam com clareza os campos do comércio e os da fé, os dos interesses e os do serviço, e em que, também não raras vezes, como com isenção relata o autor, os próprios agentes e a sua ação se confundiam, quando não mesmo se apresentavam promiscuamente nos campos inversos, conduziram, freqüentemente, a desfechos imprevisíveis e não calculados, com recuos difíceis de compensar e custos muitos elevados de fazendas e vidas.

"Os muitos fracassos são óbvios e as suas causas devem ser investigadas. Contudo, também há muito para admirar e o louvor deve ser atribuído, igualmente, aos heróis missionários e aos fiéis africanos" (p. 90).

Durante toda a segunda metade do séc. XVIII e séc. XIX, chegaram a África os primeiros cristãos protestantes. Devem ter sido os maiores contingentes de cristãos, que em grupo e em diversas fases, chegaram a este Continente. Eram populações oriundas da América, de origem africana, que o fim da escravatura tinha liberado e que foram, pela Inglaterra, literalmente despejadas na costa ocidental, especialmente na Serra Leoa e Nigéria. Tal como os seus antepassados, desenraizados e vendidos como escravos para as grandes plantações americanas, estes «regressavam», num processo de duplo desenraizamento, a uma terra que não conheciam e para um clima bastante adverso. Os que resistiram acabaram por se fixar nos novos países da Costa da Guiné, fundando diversas localidades de que se destaca Freetown, pela importância adquirida. Foram os grandes agentes do cristianismo protestante. Eram essencialmente Batistas e Metodistas, a que se foram juntando, a pouco e pouco, os missionários chegados do Velho Continente. Mais tarde, surgirão outras confissões cristãs, cujos membros cruzarão toda a África, juntando ao labor missionário o da investigação científica, como, por exemplo, David Livingstone, Henry Stanley e Henri Junod.

Os séculos XIX e XX serão, definitivamente, os grandes séculos de implantação missionária mais generalizada, atingindo não só a totalidade das terras da costa, mas o próprio interior africano. Toda esta ação, no entanto, será favorecida por razões bem diferentes das causas evangélicas. Ela beneficiará do «boom» expansionista do século XIX, de uma Europa em busca das fontes das matérias-primas, que para o efeito, em 1885 na Conferência de Berlim, se limitou a dividir o Continente, por diversos interesses, usando uma lógica de geografia territorial, quase a «régua e esquadro», atingindo populações cujas culturas se regiam essencialmente por lógicas de geografia humana. O resultado foi a marcação artificial e desajustada de fronteiras, com desequilíbrios de diversa ordem, mas essencialmente sociais, cujas conseqüências, depois das independências e quebrada a pax romana até aí imposta pelas potências coloniais, conduziram a focos de tensão e guerras fratricidas, cujo saldo é de milhões de mortos, estropiados e deslocados.

O autor deixa-nos o relato histórico de um caminho que se fez, com os seus sucessos e insucessos, e que ninguém hoje poderá mudar: somente podemos constatar como tudo aconteceu. Não lhe cabe a ele, da mesma forma, como historiador, apresentar receitas com soluções para remediar o que parece não ter resultado tão bem, mas percebe-se, ao longo do seu trabalho, a preocupação de mostrar ao leitor como as linhas, que conduzem esta história, parecem determinadas a alcançar um final de esperança. Confiamos na sua perspicaz leitura dos fatos, acrisolada por meio século de vivência em África, para melhor entendermos as, freqüentemente explicitadas, expectativas das inúmeras comunidades cristãs que emergiram ao longo de todo o último quarto do século passado.

A história do Cristianismo em África é composta de todos estes ingredientes, que, não fosse a impossibilidade de se olvidar o hediondo período do comércio escravagista, talvez não deixasse de ser o relato de um peculiar período de relações e inter-relações, de descobertas e de vivências, cheias das contradições próprias da natureza humana, desenvolvidas num privilegiado, mas simultaneamente martirizado, laboratório humano que continua a singularizar este Continente.

Depois de termos perpassado de uma forma forçosamente ligeira alguns dos temas deste extenso trabalho, deixamos aqui, também, um pequeno apontamento a propósito daquilo que o autor considera o posicionamento correto perante os fatos do passado e o olhar que deve ser lançado para o futuro:

"A esperança de um futuro cristão impregnou, muitas vezes, estas páginas de história africana. Essa esperança pode ser justificada pelas palavras que o arcebispo Raymond Tchidimbo (Guiné) escreveu da prisão: ‘O Cristianismo é, acima de tudo, uma religião do futuro. Aí reside o segredo da sua juventude, a sua eterna juventude.’ O futuro pertence a Cristo e àqueles que nele confiam, pois Cristo é o Senhor da História."

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