sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental

Thomas E. Woods Jr. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. São Paulo, Quadrante. 2008. 224p. [1]

Sobre o autor [2]

Nos últimos anos muito tem se falado e publicado sobre a Igreja Católica Apostólica Romana através de filmes, livros, documentários, revistas, programas de TV, rádio, internet. Apesar da variedade, existe um pressuposto politicamente correto em todas essas mídias: a crítica a religião. Mostrar outra visão da história ocidental é o objetivo do livro de Thomas E. Woods Jr.

Vale a pena ressaltar que o autor é norte americano, doutor em História pela Universidade de Harvard-USA, ou seja, um intelectual formado dentro da tradição historiográfica anglo-saxônica. Essa tradição, que remonta ao historiador alemão Leopoldo Von Hanke (séc. XIX), privilegia a consulta de documentos e menos a reflexão teórica sobre a história. Essa escola é chamada de Metódica ou Positivista. Essas informações adicionais nos ajudam a entender a preocupação de Woods em demonstrar diversos argumentos, elencando uma massa de dados e informações exaustiva, corroborando suas colocações.

O livro se divide em doze capítulos, onde são mapeadas as origens medievais do pensamento e da tecnologia atuais. Nos capítulos II, III e IV, em especial, Woods apresenta um exaustivo programa de reabilitação da Idade Média. Aqui ele se posiciona entre autores como Régine Pernoud, que desde os anos setenta do séc. XX já vinha empreendendo esse trabalho de reabilitação.

O Capítulo II trata da queda do Império Romano do Ocidente e de como a Igreja civilizou os bárbaros germânicos. Aqui é demonstrado como a conversão dos bárbaros foi essencial para a transmissão do saber e da cultura erudita romanas. Woods chega a afirmar que essa constatação por si só seria suficiente para demonstrar que a Igreja Católica não é obscurantista, mas quer proceder a uma releitura dessas culturas a partir da ótica de sua doutrina.

No capítulo III Woods destaca o papel das ordens monásticas nesse trabalho de manutenção da cultura, lembrando que a máxima de São Bento de Núrcia, Ora et labora (Trabalha e reza) pede que o monge exerça atividades intelectuais e manuais no mosteiro. Woods demonstra que os monges, nesse ponto, foram originais criando técnicas agrícolas e metalúrgicas que somente seriam superadas a partir da Revolução Industrial inglesa (Séc. XVIII). Woods também alerta para o papel de assistência social dos monges às populações vizinhas aos mosteiros.

No capítulo IV Woods lembra o papel primordial da Igreja Católica na criação das universidades medievais, invenção genuinamente medieval e que hoje marca a difusão da cultura em todas as partes. Woods procura mostrar que a Academia, apesar da origem eclesiástica, não se encontrava presa a instituição. O autor procura apresentar a Escolástica aristotélico-tomista como linha de pensamento livre da preocupação de controlar a razão em beneficio da fé.

É lugar comum acusar a escolástica de engessar o pensamento medieval. Para Woods, pelo contrário, o escolasticismo procurou racionalizar a fé harmonizando-a com a razão filosófica de raiz aristotélica e platônica. É claro que hoje, depois da herança do niilismo, do existencialismo e do relativismo, a harmonia entre fé e filosofia tornou-se mais difícil, mas o que Woods nos propõe é buscar novamente esse entendimento aparentemente tão difícil.

A partir do capitulo V aparece uma maior variedade nos temas. No mesmo capítulo é tratado o conflito entre o cientista Galileu Galilei e a cúria romana, símbolo do chamado obscurantismo católico, que Woods contrapõe à existência de sacerdotes cientistas durante a Idade Média, além dos jesuítas.

No capítulo VI o autor fala mais sobre a arquitetura medieval gótica, contribuição original ao mundo atual. Aqui é citado o trabalho de Erwin Panofsky Arquitetura gótica e escolástica[3] onde o estudioso traçou um paralelo entre a forma do raciocínio escolástico e a catedral gótica, demonstrando que ambas refletem a mesma finalidade: criar harmoniza, sejam linhas de pensamento filosófico, ou colunas, vitrais e altos relevos. Woods também demonstra que a transição da Idade Média para o Renascimento não foi acompanhada de uma ruptura radical entre a racionalidade e a fé cristã, lembrando que os principais artistas italianos do período eram cristãos.

Nos capítulos seguintes (VII, VIII, IX, X e XI) Woods trata mais de temas referentes a Era Moderna onde as contribuições da Igreja e de seus membros iriam se multiplicar ainda mais.

No capítulo VII Woods lembra que pensadores católicos foram pioneiros em criar o Direito Internacional na primeira metade do século XVI através de pensadores como Francisco de Vitória, e Bartolomeu de Las Casas, o Apóstolo das Américas. A originalidade desses pensadores foi empreender uma defesa dos índios contra a escravização, através da igualdade jurídica entre índios, colonos e negros, introduzindo a questão do outro na história moderna. Aqui Woods poderia ter dado mais espaço ao trabalho dos “antropólogos jesuítas”, antecessores dos antropólogos modernos, José de Acosta, Antonio Vieira e Jacques Lafitau, que também contribuíram para a defesa da igualdade cultural, jurídica e teológica entre todos os homens, inclusive judeus, árabes e demais grupos étnico-religiosos como pertencentes ao gênero humano.

Nos capítulos VIII e IX, Woods nos lembra que o catolicismo criou uma original teoria econômica e a mais completa rede de caridade e assistência social que o mundo até então conheceu. Em particular no cap. VIII, Woods empreende a tarefa difícil de criticar o pensamento do sociólogo alemão Max Weber, embora não o cite textualmente nem o coloque em sua bibliografia.

Vale lembrar que Weber em sua mais famosa obra Ética protestante e o espírito do capitalismo[4] afirmou que o capitalismo moderno somente atingiu sua maturidade a partir do séc. XVI com a Reforma Protestante e sua ética do trabalho, que teria servido de ideologia religiosa para o nascente capitalismo, em contraponto as condenações do lucro e da usura emitidas pela Igreja Católica durante a Idade Média. Woods critica essa abordagem por ela ver apenas fins objetivos no trabalho, o lucro material, sem dar relevo a realização pessoal do trabalhador em exercer sua atividade profissional.

Outro grande pensador criticado por Woods é Karl Marx, considerado o maior crítico do liberalismo e da burguesia. Contra os conceitos de luta de classes, mais valia e revolução, Woods diz que Marx não levou em conta na teoria dos salários o valor subjetivo das mercadorias que determinam, mais que o tempo e o esforço do trabalhador, o valor da mercadoria. Nos dois casos, Woods está influenciado pela Doutrina Social da Igreja, que busca o equilíbrio moral nas relações entre capital e trabalho, abrindo dimensões lúdicas e espirituais para o trabalho e o capitalismo.

Os capítulos finais (IX, X e XI) servem para Woods refletir sobre as contribuições mais profundas da Igreja Católica ao mundo ocidental: a caridade, o direito canônico e a moral.

Sobre a caridade, Woods lembra que é uma prática que remonta aos tempos apostólicos (sécs. I e II) e que ainda hoje nos assombra. Pessoas aparentemente sem interesse material nenhum se dignaram a cuidar de doentes terminais, órfãos, idosos, aleijados, excluídos. O autor lembra que essa prática passou por um longo processo de organização durante a Idade Média a partir dos leprosários chegando às ordens dos Cavaleiros Hospitalários, monges guerreiros cujo carisma era proteger e socorrer os peregrinos que rumavam para Jerusalém, criando uma estrutura de atendimento aos doentes que marcou época.

No Capítulo X Woods trata do desenvolvimento do Código de Direito Canônico por Graciano no séc. XII, e de como ele serviu de modelo para as atuais legislações judiciais modernas. Aqui Woods lembra que a Inquisição, tão execrada nos nossos dias, no séc. XIII era considerada a última palavra em legislação, principalmente se comparada ao direito secular, baseado no direito germânico e nos “Juízos de Deus”, também chamadas de Ordálias, que, como Woods bem lembra, forçavam a intervenção divina para salvar um inocente da execução sumária.

Por fim, o Capítulo XI agrupa diversos assuntos relativos a moral: duelos de honra, guerra justa, castidade, dignidade feminina. Woods defende que o mundo atual deve procurar o equilíbrio entre os direitos e deveres de indivíduos, grupos e Estados Modernos, pautados pela chamada Lei Natural.

A conclusão que chegamos ao fim da leitura é o de que o Cristianismo teve um papel fundamental na criação de instituições em diversas áreas, como educação, agricultura, indústria, direito civil, saúde, sendo que em algumas destas áreas seu pioneirismo ainda não teria sido superado. E, se hoje esse papel é esquecido ou mesmo execrado, para Woods mais que uma injustiça, essa atitude constitui um anacronismo histórico legado acriticamente para as gerações atuais. Assim podemos colocar Woods como um dos grandes apologetas cristãos da atualidade.

[1] O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil.

[2] Aluno de pós-graduação nível doutorado do Departamento de História da FFLCH-USP.

[3] Obs. Esta obra foi editada no Brasil pela Ed. Martins Fontes.

[4] Essa obra possui algumas edições no Brasil. A mais recente saiu pela Ed. Cia. das Letras e conta com tradução e comentários do Prof. Dr. Flávio Pierucci do departamento de sociologia da USP, um dos maiores especialistas brasileiros no pensamento de Weber.
Édson M. Unicamp

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