sábado, 25 de setembro de 2010

A Igreja proibiu a leitura da Bíblia?

Escrito por D. Estêvão Bettencourt

Responda a História:

Em síntese: Ouve-se, por vezes, dizer que a Igreja Católica proibiu a leitura da Bíblia. A resposta há de ser deduzida de um percurso da história. Ora, está averiguado que, nos primeiros séculos, muito se recomendava a leitura do texto sagrado. Na Idade Média e em épocas posteriores (especialmente no século XVI) surgiram heresias que traduziam a Bíblia do latim para o vernáculo instilando no livro sagrado idéias contrárias à reta fé. Daí proibições, formuladas por Concílios, de se utilizar a Bíblia em língua vernácula, a não ser que o leitor recebesse especial autorização para fazê-lo. Ainda no século XIX a Igreja via nas traduções vernáculas da Biblia o canal de concepções heréticas. Todavia a partir do Papa S. Pio X (+1903) deu-se uma volta às fontes, que incluiu a recomendação da leitura da Biblia, por parte de todos os fiéis, em língua vernácula. No momento presente, dado que existem boas edições da Escritura nas línguas vivas, a Igreja fomenta o recurso assíduo à Palavra de Deus escrita e lida no concerto da Tradição da Igreja.



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Diz-se por vezes que a Igreja Católica proibiu aos fiéis a leitura da Bíblia. A afirmação, porém, costuma ser vaga ou destituída de documentação de modo que não se sabe até que ponto possa ser verídica. Eis por que se impõe o estudo deste assunto.

1. Até o século XVI

Por toda a Antigüidade o Livro Sagrado era recomendado à leitura dos cristãos. S. Jerônimo (+420) é um dos mestres que melhor representam esta atitude pastoral, escrevendo a Eustóquio, filha de Santa Paula:

"Lê com freqüência e aprende o melhor que possas. Que o sono te encontre com o livro nas mãos e que a página sagrada acolha o teu rosto vencido pelo sono" (PL 22,404).

Na Idade Média apareceram correntes dualistas e heréticas que se valiam da Bíblia para apoiar suas concepções errôneas. Tal foi, por exemplo, o caso dos cátaros, avessos à matéria como se esta fosse, por si mesma, má. Em conseqüência, o Concílio de Tolosa (França) em 1229 proibiu o uso de traduções vernáculas da Bíblia. Esta disposição foi retirada pelo Concílio da Tarragona (Espanha) em 1233. A mesma proibição aparece num decreto do rei Jaime I da Espanha em 1235: "Ninguém possua em vernáculo os livros do Antigo e do Novo Testamento".

No século anterior, os Valdenses (de Pedro Valdo, Pierre de Vaux) apoiavam-se na Bíblia traduzida para o provençal a fim de negar o purgatório, o culto dos Santos, o serviço militar, o juramento...; só admitiam os sacramentos do Batismo, da Penitência e da Eucaristia.

No século XIV, John Wiclef (1320-84) em Oxford estabeleceu como única norma de fé a Escritura traduzida para o inglês; interpretando subjetivamente a Bíblia, negava a autoridade do Papa, a confissão auricular, a transubstanciação eucarística, o culto dos Santos...; provocava assim grande agitação entre os fiéis. Por isso o Sínodo de Oxford (1408) proibiu a publicação e a leitura de textos vernáculos da Bíblia não autorizados. O mesmo se deu no Sínodo dos Bispos alemães em Mogúncia (1485).

2. Do século XVI ao século XIX

As novas idéias que surgiram no decorrer da Idade Média, chegaram ao seu auge na Reforma protestante do século XVI. Esta proclamou a Bíblia como única autoridade decisiva em matéria de fé e de costumes; cada crente é livre para interpretá-la segundo "o livre exame" ou a sua intuição subjetiva. Tais princípios haviam de esfacelar o Cristianismo; logo três reformadores (Lutero, Zvínglio e Calvino) fundaram três novas modalidades de Cristianismo no século XVI; por sua vez, as comunidades reformadas foram reformadas e reformadas sucessivamente, derivando-se deste processo centenas de denominações protestantes independentes umas das outras, porque dependentes da inspiração subjetiva do respectivo fundador.

Ademais os princípios da Reforma protestante fazem violência à própria Escritura, porque a desligam da Tradição oral, que lhe é anterior e sem a qual a Bíblia não pode ser devidamente entendida; cf. 2Ts 2, 5s.15; 3,6...

Eis por que o Concílio de Trento (1543-65) tomou medidas que preservassem os fiéis católicos dos males acarretados pelas proposições dos reformadores; assim:

a) declarou autêntica (isenta de erros teológicos) a Vulgata latina, tradução devida a S. Jerônimo (+420) e muito difundida entre os cristãos. Assim se dissiparia a confusão existente entre clérigos e leigos, que, em meio a múltiplas traduções, já não sabiam encontrar a pura mensagem bíblica. - O Concilio não quis afirmar que a tradução da Vulgata é lingüisticamente perfeita, mas tomou uma providência necessária no século XVI;

b) rejeitou o princípio do livre exame da Bíblia. Esta só pode ser entendida se iluminada por instâncias objetivas, especialmente pela Tradição, que o magistério da Igreja formula com a assistência do Espírito Santo;

c) proibiu edições da Bíblia sem o nome do autor responsável pela edição. Proibiu também a difusão do texto bíblico sem a autorização do Bispo diocesano;

d) estimulou o reflorescimento dos estudos bíblicos nos colégios, conventos e mosteiros.

O Concilio de Trento definiu mais uma vez o Cânon Bíblico incluindo os deuterocanônicos (Tb, Jt, Sab, Br, Eclo, 1/2 Mc), como já o tinham feito os Concílios do século IV. A prova de que o Concílio nada inovou é que o próprio Lutero traduziu os deuterocanônicos para o alemão; com efeito, na sua edição da Bíblia datada de 1534 encontra-se o texto dos sete deuterocanônicos, assim como os fragmentos de Ester 10,4-16,24, de Daniel 3,24-90; 13,1-14,42 e ainda a "Oração de Manassés" (Oração que a Tradição cristã não inclui no seu cânon). A persistência desses livros nas edições protestantes bem mostra que não foi o Concílio de Trento que os introduziu no catálogo bíblico, mas Lutero e a Tradição protestante os receberam da Tradição cristã medieval e antiga ou mesmo dos judeus de Alexandria. Foi somente no século XIX que as Sociedades Bíblicas protestantes deixaram de incluir nos seus exemplares da Bíblia os livros deuterocanônicos[1].

No tocante às traduções da Bíblia, o Papa Paulo V em 1564 aprovou as seguintes normas:

Regra III: "...(o uso) das traduções dos livros do Antigo Testamento poderá ser concedido, a juízo do Bispo, unicamente a homens doutos e piedosos sob a condição de que tais traduções sejam usadas apenas para esclarecer a Vulgata e melhor entender a S. Escritura... O uso das traduções do Novo Testamento realizadas por autores da primeira classe[2] a ninguém seja concedido, porque sua leitura costuma acarretar para os leitores pouca utilidade e grande perigo".

Regra IV: "Tendo-se evidenciado pela experiência que, se se permite a leitura da Sagrada Escritura em língua vernácula de maneira ordinária e indiscriminada, costuma originar-se, em virtude da temeridade dos homens, mais detrimento do que utilidade; é necessário neste particular seguir o juízo do Bispo ou do Inquisidor, a fim de que, ouvido o pároco ou confessor, se conceda a leitura da Bíblia em língua vernácula àqueles que se possa prever retirarão de tal leitura aumento de fé e de piedade sem prejuízo algum espiritual" (D.S., Enquirídio 1853s).

Estas disposições hão de ser entendidas dentro das circunstâncias históricas em que foram promulgadas; visavam à preservação da fé ameaçada pelo uso capcioso da Bíblia no século XVI. Tiveram por conseqüência a pouca difusão do texto sagrado entre os católicos e a falta de contato da piedade posterior com as suas fontes bíblicas; tornaram-se, por isto, ponto nevrálgico na disciplina da Igreja, de tal modo que os jansenistas dos séculos XVII/XVIII as impugnaram.

No século XIX multiplicaram-se as Sociedades Bíblicas protestantes, cuja finalidade era difundir a Bíblia em traduções vernáculas. Compreende-se que, na base dos princípios adotados no século XVI, a Igreja se opusesse a tais iniciativas, consideradas como perigosas para a reta fé.

A primeira advertência deu-se em 1816. Ao arcebispo católico que recomendava aos seus fiéis a Sociedade Bíblica fundada em São Petersburgo na Rússia, escrevia o Papa Pio VII:

"A Igreja Romana, segundo as prescrições do Concílio de Trento reconhece a edição Vulgata da Biblia e rejeita traduções feitas para outros idiomas, se não estiverem acompanhadas de notas provenientes dos escritos dos Padres e dos doutores católicos, a fim de que tão grande tesouro não seja exposto às corruptelas das novidades...

Se não poucas vezes lamentamos que tenham falhado na interpretação das Escrituras homens piedosos e sábios, como não deveremos recear grandes riscos se se entregarem as Escrituras traduzidas em vernáculo ao povo ignorante, que, na maioria dos casos, carece de discernimento e julga com temeridade?" (D.S., Enquirídio nº 2710s).

Em 1844 o Papa Gregório XVI escrevia:

"Não ignorais quanta diligência e sabedoria são necessárias para se traduzir fielmente a Palavra de Deus; em conseqüência, nada há de mais fácil do que nas traduções vernáculas, multiplicadas pelas Sociedades Bíblicas, se introduzirem erros gravíssimos, seja por imprudência, seja por fraude de tantos tradutores; tais erros, aliás, permanecem ocultos, para a perdição de muitos, dada a multidão e a variedade de tais Sociedades. Às Sociedades Bíblicas pouco ou nada interessa o fato de que os homens que lêem a Biblia em vernáculo, caiam em um ou outro erro; mais lhes importa que acostumem aos poucos a exercer o livre exame a respeito do sentido das Escrituras e a menosprezar as tradições divinas contidas na doutrina dos Padres e guardadas na Igreja Católica, repudiando assim o próprio magistério da Igreja" (D. S. Enquirídio nº 2771).

Declaração semelhante foi proferida pelo Papa Pio IX em 1846.

Tal posição da Igreja manteve-se até o começo do século XX. Era motivada por circunstâncias contingentes e se revestia de caráter disciplinar, não dogmático. Era, pois, reformável desde que desaparecessem as razões que inspiraram as apreensões decorrentes da difusão do texto sagrado em língua vernácula. Ora, realmente no século XX foi-se alterando o contexto histórico. O Papa S. Pio X (1903-14) deu início a uma renovação da piedade da Igreja, que fora profundamente marcada pela réplica ao protestantismo, ao jansenismo e às heresias dos últimos séculos; a atitude defensiva ou preservadora não podia deixar de empobrecer a piedade católica; fora necessária, mas não se podia manter por mais tempo; nem havia no século XX razões para mantê-la. A volta às fontes, que deve sua inspiração remota a São Pio X, compreenderia a restauração do espírito litúrgico, o recurso freqüente à S. Escritura e a renovação da catequese. Conscientes disto, entramos na história do século XX.

3. No século XX

Em 1920, o Papa Bento XV quis comemorar o 15º centenário da morte de S. Jerônimo publicando a encíclica Spiritus Paraclitus, na qual escreveu:

"Pelo que Nos toca, Veneráveis Irmãos, à imitação de São Jerônimo jamais deixaremos de exortar todos os fiéis cristãos a que leiam todos os dias principalmente os Santos Evangelhos de Nosso Senhor, os Atos e as epístolas dos Apóstolos, tratando de convertê-los em seiva do seu espírito e em sangue de suas veias" (Enquirídio Bíblico nº 477).

Quanto às disposições para bem aproveitar a leitura bíblica, o Pontífice as resumia nestes termos:

"Todo aquele que se aproxima da Biblia com espírito piedoso, fé firme, ânimo humilde e sincero desejo de aproveitar, nela encontrará e poderá degustar o pão que desce dos céus" (E. B. nº 489).

A atitude de Bento XV representava algo de novo na Igreja posterior ao Concílio de Trento, mas estava na linha de conduta pastoral do Papa anterior, São Pio X.

Pouco mais de dois decênios decorridos, o Papa Pio XII, na sua encíclica Divino Afflante Spiritu, recomendava por sua vez a difusão da Biblia entre os fiéis:

"Os prelados favoreçam e prestem ajuda às piedosas associações cuja finalidade é difundir entre os fiéis os exemplares das Sagradas Letras, principalmente dos Evangelhos, e procurem que nas famílias cristãs se faça ordenada e santamente a leitura diária das mesmas; recomendem eficazmente a S. Escritura traduzida para as línguas vernáculas com a aprovação da Igreja" (E. B. nº 566).

A orientação dos Pontífices foi assumida pelo Concílio do Vaticano II (1962-65), especialmente em sua Constituição Dei Verbum, c. 6, que trata da S. Escritura na vida da Igreja: um forte estímulo aí é dado à freqüentação cotidiana da Escritura por parte dos fiéis, como também à difusão do texto sagrado em línguas vernáculas:

"Este Sagrado Concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os Religiosos, a que aprendam a eminente ciência de Jesus Cristo (Fl 3, 8) mediante a leitura freqüente das Divinas Escrituras, porque a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo. Debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da Sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando..., com a aprovação e o estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, de que a leitura da S. Escritura deve ser acompanhada da oração, para que seja possível o colóquio entre Deus e o homem; com Ele falamos quando rezamos; a Ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos.

Compete aos sagrados pastores, depositários da doutrina apostólica, instruir oportunamente os fiéis que lhes foram confiados, no reto uso dos livros divinos, de modo particular do Novo Testamento, e sobretudo nos Evangelhos. E isto por meio de traduções dos textos sagrados, que devem ser acompanhados de notas necessárias e verdadeiramente suficientes para que os filhos da Igreja se familiarizem de modo seguro e útil com a Sagrada Escritura e se embebam do seu Espírito" (nº 25).

Como se vê, não poderia ser mais favorável ao uso da S. Escritura a atitude da Igreja contemporânea. As palavras de S. Jerônimo (t 420) tornaram-se norma da autoridade eclesiástica. As restrições foram impostas não ao texto latino, mas às traduções vernáculas, em virtude de fatores contingentes; a Igreja, como Mãe e Mestra, sente o dever de zelar pela conservação incólume da fé a Ela entregue por Cristo e ameaçada pelas interpretações pessoais de inovadores da pregação; eis por que lhe pareceu oportuno reservar o uso da Bíblia a pessoas de sólida formação cristã nos séculos em que as heresias pretendiam apoiar no texto sagrado as suas proposições perturbadoras. É, pois, para desejar que os estudiosos entendam os porquês da atitude da Igreja dos século XVI-XIX e hoje se sintam convidados a difundir a S. Escritura em comunhão com a Igreja e a sua Tradição.

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Notas:

[1] A Sociedade Bíblica de Londres, combatida na Inglaterra por estar publicando os livros deuterocanônicos, insistiu em seu procedimento e, para assegurá-lo, fundou a "Sociedade Bíblica Francesa e Estrangeira", que continuou a editar os sete livros impugnados pelos protestantes, mas que finalmente cedeu às pressões contrárias.

[2] Trata-se de autores mencionados nominalmente em outro documento.



Fonte: Revista Pergunte e Responderemos

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