quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Por que acredito no cristianismo[1]

G. K. Chesterton

Não tenho a intenção de desrespeitar o Sr. Blatchford dizendo que nossa dificuldade, em grande medida, está em que ele, como a maioria das pessoas inteligentes atualmente, não entende o que é Teologia. Equivocar-se em ciência é uma coisa, mas equivocar-se sobre a natureza da ciência é outra. Na medida em que leio “God and My Neighbour (Deus e o meu vizinho)”, cresce minha convicção de que ele pensa que Teologia é o estudo sobre se as diversas lendas que a Bíblia conta sobre Deus é historicamente demonstrável. É como se ele estivesse tentando provar a um sujeito que o Socialismo seria, na verdade, a sólida ciência da Economia Política[2] e começasse a perceber, no meio do caminho, que o sujeito considerava a Economia Política o estudo sobre se os políticos eram econômicos.

É muito difícil de explicar brevemente a natureza de todo um ativo campo de estudo, tanto quanto o é explicar o que é política ou ética. Pois, quanto maior e mais óbvia é uma coisa, e quanto mais ela te encara face a face, mais difícil é defini-la. Todo mundo pode definir concologia.. Ninguém pode definir a moral.

No entanto, toca-nos tentar explicar essa filosofia religiosa que era, e de novo será, o estudo dos maiores intelectuais e a fundamentação das mais fortes nações, mas que nossa diminuta civilização, há algum tempo, esqueceu, da mesma forma que esqueceu como dançar e como se vestir decentemente. Tentarei explicar porque eu considero necessária uma filosofia religiosa e porque eu considero o cristianismo a melhor filosofia religiosa. Mas, antes que eu faça isso, quero que você se lembre de dois fatos históricos. Não peço para que você tire deles as minhas conclusões ou mesmo qualquer conclusão. Peço que você se lembre deles como simples fatos, ao longo da discussão.

1. O cristianismo surgiu e se expandiu num mundo muito refinado e cínico – num mundo muito moderno. Lucrécio era tão materialista quanto Haeckel e um escritor muito mais persuasivo. O mundo romano tinha lido “God and My Neighbour”, e de uma maneira um tanto sonolenta o considerou verdadeiro. Vale a pena notar que as religiões quase sempre surgem nessas civilizações céticas. Um livro recente sobre a literatura pre-maometana da Arábia descreve uma vida inteiramente luxuosa e refinada. Foi assim com Buda, nascido em berço de ouro, numa antiga civilização. Foi assim com o Puritanismo na Inglaterra e com a Restauração Católica na França e Itália, ambas advindas do racionalismo da Renascença. É assim hoje, e será sempre assim. Vá a dois dos mais modernos centros do pensamento moderno, Paris e EUA, e você encontra-los-á cheios de anjos e demônios, de velhos mistérios e novos profetas. O racionalismo está lutando pela própria vida contra as novas e vigorosas superstições.

2. O cristianismo, que é uma religião muito mística, tem sido, contudo, a religião das porções mais práticas da humanidade. Ele tem mais paradoxos que as filosofias orientais, mas ele também constrói as melhores rodovias. O mussulmano tem uma concepção lógica e pura de Deus, o Alah monístico. Mas ele permanece bárbaro na Europa e a grama não renascerá por onde ele passar. O cristão tem um Deus Trino, “uma trindade oblíqua,” que parece uma caprichosa contradição em termos. Mas, em ação, ele abarca a terra e, mesmo, o mais inteligente oriental só pode com ele lutar, imitando-o a princípio. O Oriente tem sua lógica e vive do arroz. A cristandade tem seus mistérios – e seus automóveis. Não importa a inferência. Como eu disse, registremos os fatos.

Agora com essas duas coisas em mente, deixe-me tentar explicar o que é a Teologia Cristã.

O agnosticismo completo é a atitude óbvia para o homem. Todos somos agnósticos até descobrirmos que o agnosticismo não funciona. Então, adotamos alguma filosofia, a do Sr. Blachford ou a minha, ou alguma outra, pois, o Sr. Blatchford não é mais agnóstico que eu, é claro. O agnóstico diria não estar certo se o homem é responsável pelos seus pecados. O Sr. Blatchford diz que ele tem certeza de que o homem não é.

Aqui temos a semente de toda uma imensa árvore de dogmas. Por que o Sr. Blatchford vai além do agnosticismo e afirma que não há, certamente, livre arbítrio? Porque ele não pode desenvolver seu sistema moral sem afirmar a inexistência do livre arbítrio. Ele deseja que nenhum homem seja culpado de pecado. Portanto, ele tem de convencer seus discípulos de que Deus não os fizeram livres e, por conseguinte, culpáveis. Nenhuma mínima dúvida cristã pode passar pela mente do determinista. Nenhum demônio pode sussurrá-lo, numa hora de angústia, que, talvez, o promotor de vendas fraudulento foi o responsável por ele estar no asilo. Nenhum ataque de ceticismo deve sugeri-lo que, talvez, o professor primário foi o culpado pela surra de matar dada no pequeno garoto. A fé do determinista deve permanecer firme, senão a fraqueza da natureza humana, certamente, fará com que os homens se enfureçam quando são difamados ou devolvam o soco, quando são socados. Em resumo, o livre arbítrio parecerá, em princípio, pertencer ao Desconhecido. Mesmo assim, o Sr. Blatchford não conseguirá pregar o que a ele pareça mera caridade sem afirmar, sobre isso, um dogma. E eu não conseguirei pregar o que me parece ser mera honestidade, sem afirmar outro.

Aqui está a falha do agnosticismo. Que a nossa visão cotidiana das coisas que sabemos (do senso comum), realmente depende de nossa visão de coisas que não sabemos (do senso comum). Tudo bem dizer a um homem, como faz o agnóstico, “cultive seu jardim.” Mas, suponha que ele ignore tudo fora do seu jardim, inclusive o sol e a chuva?

Isso é fato real. Você não pode viver sem dogmas sobre as coisas. Você não pode agir vinte e quatro horas por dia sem decidir se as pessoas são responsáveis ou não. A Teologia é um produto muito mais prático que a Química.

Alguns deterministas imaginam que o cristianismo inventou um dogma como o livre arbítrio por diletantismo – uma simples contradição. Isso é absurdo. Você se confronta com contradições onde quer que você esteja. Os deterministas me dizem, com um grau de verdade, que o determinismo não faz diferença na vida diária. Isso significa que, apesar do determinismo saber que os homens não têm livre arbítrio, mesmo assim, ele continua tratando-os com se tivessem.

A diferença, então, é muito simples. O cristão coloca a contradição em sua filosofia. O determinista a coloca em seus hábitos diários. O cristão afirma, como um mistério declarado, o que o determinista chama nonsense. O determinista tem o mesmo nonsense em seu café da manhã, em seu almoço, em seu chá e em seu jantar, todos os dias de sua vida.

O cristão, repito, coloca o mistério em sua filosofia. Este mistério, pela sua escuridão, ilumina todas as coisas. Depois disso, vida é vida, pão é pão e queijo é queijo: ele pode sorrir e lutar. O determinista torna a questão lógica e lúcida: e à luz dessa lucidez, todas as coisas são obscurecidas, as palavras perdem o sentido, e as ações, o objetivo. Ele fez de sua filosofia um silogismo e dele próprio um lunático delirante. [3]

Essa não é uma questão entre misticismo e racionalidade. É uma questão entre misticismo e loucura. Pois, o misticismo, e somente o misticismo, tem mantido o homem são, desde o início dos tempos. Todos os caminhos retilíneos da lógica levam ao caos, à anarquia ou à obediência passiva, por tratar o universo como uma pura engrenagem material ou então como uma ilusão da mente. É somente o místico, o homem que aceita as contradições, que pode sorrir e caminhar livremente pelo mundo.

Você está surpreso pelo fato de que a mesma civilização que acreditou na Trindade descobriu a máquina a vapor? Todos as grandes doutrinas cristãs são deste tipo. Examine-as você mesmo, cuidadosa e justamente. Tenho espaço para apenas dois exemplos. O primeiro é a idéia cristã de Deus. Tal como temos todos sido agnósticos, também temos sido panteístas. Com uma ingenuidade infantil é fácil dizer, “Por que o homem não pode enxergar Deus num vôo de um pássaro e ser feliz?” Mas, vem o tempo em que, indo além, dizemos, “Se Deu está nos pássaros, sejamos não só bonitos como eles, mas sejamos cruéis como os pássaros, vivamos a vida louca e colorida da natureza.” E algo que mantém sua própria inteireza dentro de nós resiste e nos alerta, “Meu amigo, você está enlouquecendo.”

Então vem o outro lado e dizemos: “Os pássaros são odiosos, as flores são vergonhosas. Um universo com tais coisas não merece meu tributo.” E a coisa inteira em nosso íntimo diz: “Meu amigo, você está enlouquecendo.”

Então vem uma coisa fantástica e nos diz: “Você está certo de gostar dos pássaros, mas errado em copiá-los. Há uma coisa boa em todas essas coisas, mas todas essas coisas são menores que você. O Universo está certo, mas o Mundo está errado. A coisa por trás de tudo não é cruel como um pássaro, mas bondosa como um homem.” E a coisa inteira dentro de nós diz: “Encontrei o caminho da montanha.”

Assim, quando o cristianismo surgiu, o mundo antigo tinha acabado de chegar a esse dilema. Ele ouviu a Voz do Culto à Natureza que rezava, “Todas as coisas naturais são boas. A guerra é saudável como as flores. A luxúria é tão cândida como as estrelas.” E ele ouviu também o lamento dos desesperados Estóicos e Idealistas. “As flores estão em guerra: as estrelas estão maculadas: nada é certo além da consciência do homem e esta foi completamente vencida.”

Ambas as visões eram consistentes, filosóficas e exaltadas: suas únicas desvantagens eram que a primeira levava logicamente ao assassinato, e a segunda, ao suicídio. Depois de uma agonia do pensamento, o mundo descobriu um caminho saudável entre os dois. Era o Deus cristão. Ele fez a Natureza mas, Ele era Homem.

Finalmente, há uma palavra a dizer sobre a Queda. Só poderá ser uma palavra, e ela é esta. Sem a doutrina da Queda, toda a idéia do progresso é sem sentido. O Sr. Blatchford diz que não houve uma Queda, mas uma ascensão gradual. Mas, a própria palavra “ascensão” implica que você saiba em que direção está ascendendo. A menos que haja um padrão, você não pode se dizer em ascensão ou em queda. Mas o ponto principal é que a Queda, tal como todos os outros largos caminhos do cristianismo, está embebida, invisivelmente, na linguagem comum. Qualquer um pode dizer, “Muito poucos homens são realmente humanos.” Ninguém diria, “Muito poucas baleias são realmente, ‘baleiais’.”

Se você quisesse dissuadir um homem de beber sua décima dose de whisky, você bateria em suas costas e diria, “Seja homem.” Ninguém que desejasse dissuadir um crocodilo de comer seu décimo explorador, bateria nas costas da fera e diria, “Seja crocodilo.” Pois, não temos nenhuma noção de um crocodilo perfeito, nenhuma alegoria de uma baleia expulsa do Éden ‘baleial’. Se uma baleia viesse ao nosso encontro e dissesse: “Eu sou um novo tipo de baleia, eu abandonei a ‘baleiez’,” não deveríamos nos preocupar. Mas, se um homem viesse até nós (como muitos logo virão) e dissesse, “Eu sou um novo tipo homem. Eu sou o super-homem. Eu abandonei a misericórdia e a justiça;” deveríamos responder, “Sem dúvida você é novo, mas nem um pouco parecido com o homem perfeito, pois este sempre esteve na mente de Deus. Caímos com Adão e ascenderemos com Cristo; mas preferimos cair com Satã, que ascender com você.”



Publicado em The American Chesterton Society

[1]Reproduzido de The Religious Doubts of Democracy (1904) e de "The Blatchford Controversies" (in The Collected Works of G.K. Chesterton, Vol. 1) (N. do T.)

[2] Nome que a Economia tinha na época. (N. do T.)

[3] A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas, para os que foram salvos, para nós, é uma força divina. Onde está o sábio? Onde o erudito? Onde o argumentador deste mundo? Acaso não declarou Deus por loucura a sabedoria deste mundo? Já que o mundo, com a sua sabedoria, não reconheceu a Deus na sabedoria divina, aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura de sua mensagem (...) mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. Pois a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. (1 Cor. 1, 18; 20-21; 23;25) (N. do T.)

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