domingo, 31 de outubro de 2010

Identidade e Diálogo na Universidade Católica


Trechos da Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae, de João Paulo II, sobre as Universidades Católicas
 

1. NASCIDA DO CORAÇÃO DA IGREJA, a Universidade Católica insere-se no sulco da tradição que remonta à própria origem da Universidade como instituição, e revelou-se sempre um centro incomparável de criatividade e de irradiação do saber para o bem da humanidade [...]

6. A Universidade Católica, mediante o encontro que estabelece entre a riqueza insondável da mensagem salvífica do Evangelho e a pluralidade e imensidade dos campos do saber em que aquela encarna, permite à Igreja instituir um diálogo de fecundidade incomparável com todos os homens de qualquer cultura. Com efeito, o homem vive uma vida digna graças à cultura e, se encontra a sua plenitude em Cristo, não há dúvida que o Evangelho, atingindo-o e renovando-o em todas as suas dimensões, é também fecundo para a cultura, da qual o mesmo homem vive. [...]

12. Toda a Universidade Católica, enquanto Universidade,  é uma comunidade acadêmica que, dum modo rigoroso e crítico, contribui para a defesa e desenvolvimento da dignidade humana e para a herança cultural mediante a investigação, o ensino e os diversos serviços prestados às comunidades locais, nacionais e internacionais. [1] Ela goza daquela autonomia institucional que é necessária para cumprir as suas funções com eficácia, e garante aos seus membros a liberdade acadêmica na salvaguarda dos direitos do indivíduo e da comunidade no âmbito das exigências da verdade e do bem comum. [2]

13. Uma vez que o objetivo de uma Universidade católica é garantir em forma institucional uma presença cristã no mundo universitário perante os grandes problemas da sociedade e da cultura, [3] ela deve possuir, enquanto católica, as seguintes características essenciais:
1. uma inspiração cristã não só dos indivíduos, mas também da Comunidade universitária enquanto tal;
2. uma reflexão incessante, à luz da fé católica, sobre o tesouro crescente do conhecimento humano, ao qual procura dar uma contribuição mediante as próprias investigações;
3. a fidelidade à mensagem cristã tal como é apresentada pela Igreja;
4. o empenho institucional a serviço do povo de Deus e da família humana no seu itinerário rumo àquele objetivo transcendente que dá significado à vida. [4]

15. A Universidade Católica, portanto, é o lugar onde os estudiosos examinam a fundo a realidade com os métodos próprios de cada disciplina acadêmica, e deste modo contribuem para o enriquecimento do tesouro dos conhecimentos humanos. Cada disciplina vem estudada dum modo sistemático, as várias disciplinas são levadas depois ao diálogo entre elas com a finalidade dum enriquecimento recíproco. Tal investigação, para além de ajudar homens e mulheres na perseguição constante da verdade, proporciona um testemunho eficaz, hoje tão necessário, da confiança que a Igreja tem no valor intrínseco da ciência e da investigação. Numa Universidade Católica, a investigação compreende necessariamente: a) perseguir uma integração do conhecimento; b) o diálogo entre a fé e a razão; c) uma preocupação ética; e d) uma perspectiva teológica. [...]

17. Ao promover esta integração, a Universidade Católica deve empenhar-se, mais especificamente, no diálogo entre fé e razão, de modo a poder ver-se mais profundamente como fé e razão se encontram na única verdade. Conservando embora cada disciplina acadêmica a sua integridade e os próprios métodos, este diálogo põe em evidência que a “investigação metódica em todo o campo do saber, se conduzida de modo verdadeiramente científico e segundo as leis morais, nunca pode encontrar-se em contraste objetivo com a fé. As coisas terrenas e as realidades da fé têm, com efeito, origem no mesmo Deus”. [5] A interação vital dos dois níveis distintos de conhecimento da única verdade conduz a um amor maior pela mesma verdade e contribui para uma compreensão mais ampla do significado da vida humana e do fim da criação. [...]

21. A Universidade Católica persegue os seus objetivos também mediante o empenho em formar uma comunidade humana autêntica, animada pelo espírito de Cristo. A fonte da sua unidade brota da sua comum consagração à verdade, da mesma visão da dignidade humana e, em última análise, da pessoa e da mensagem de Cristo que dá à instituição o seu caráter distintivo. Como resultado desta ótica, a Comunidade universitária é animada por um espírito de liberdade e de caridade; é caracterizada pelo respeito recíproco, pelo diálogo sincero, pela defesa dos direitos de cada um. Assiste todos os seus membros a conseguir a plenitude como pessoas humanas. Cada membro da Comunidade, por sua vez, ajuda a promover a unidade e contribui, segundo a sua função e as suas capacidades, para as decisões que dizem respeito à mesma Comunidade, bem como para manter e reforçar o caráter católico da instituição.

22. Os professores universitários esforcem-se sempre por melhorar a própria competência e por enquadrar o conteúdo, os objetivos, os métodos e os resultados da investigação de cada disciplina no contexto de uma coerente visão do mundo. Os professores cristãos são chamados a ser testemunhas e educadores duma autêntica vida cristã, a qual manifeste a integração conseguida entre fé e cultura, entre competência profissional e sabedoria cristã. Todos os professores devem ser inspirados pelos ideais acadêmicos e pelos princípios duma vida autenticamente humana. [...]

26. A Comunidade universitária de muitas instituições católicas inclui colegas pertencentes a outras Igrejas, a outras Comunidades eclesiais e religiões, e bem assim colegas que não professam nenhum credo religioso. Estes homens e estas mulheres contribuem, com a sua formação e experiência, para o progresso das diversas disciplinas acadêmicas ou para a realização de outras tarefas universitárias.

27. Afirmando-se como Universidade, cada Universidade Católica mantém com a Igreja uma relação que é essencial à sua identidade institucional. Como tal, ela participa mais diretamente na vida da Igreja particular na qual tem sede, mas, ao mesmo tempo e sendo inserida como instituição acadêmica, pertence à comunidade internacional do saber e da investigação, participa e contribui para a vida da Igreja universal, assumindo, portanto, uma ligação particular com a Santa Sé em virtude do serviço de unidade, que é chamada a realizar em favor de toda a Igreja. Desta sua relação essencial com a Igreja derivam consequentemente a fidelidade da Universidade, como Instituição, à mensagem cristã, o reconhecimento e a adesão à autoridade magisterial da Igreja em matéria de fé e moral. Os membros católicos da Comunidade universitária, por sua vez, são também chamados a uma fidelidade pessoal à Igreja, com tudo quanto isto comporta. “Dos membros não católicos, enfim, espera-se o respeito do caráter católico da instituição na qual prestam serviço, enquanto a Universidade, por seu lado, respeitará a sua liberdade religiosa”. [6] [...]

29. A Igreja, aceitando “a legítima autonomia da cultura humana e especialmente das ciências”, reconhece também a liberdade acadêmica de cada um dos estudiosos na disciplina da sua competência, de acordo com os princípios e os métodos da ciência, a que ela se refere, [7] segundo as exigências da verdade e do bem comum.  [...]

43. Por sua mesma natureza, a Universidade promove a cultura mediante a sua atividade de investigação, ajuda a transmitir a cultura local às gerações sucessivas, por meio do seu ensino, favorece as iniciativas culturais com os próprios serviços educativos. Ela está aberta a toda a experiência humana, disposta ao diálogo e à aprendizagem de qualquer cultura. A Universidade Católica participa neste processo oferecendo a rica experiência cultural da Igreja. Além disso, consciente de que a cultura humana está aberta à Revelação e à transcendência, a Universidade Católica é lugar primário e privilegiado para um frutuoso diálogo entre Evangelho e cultura. [...]

Notas

[1] Cf. La Magna Charta delle Università Europee, Bolonha, Itália, 18 de Setembro de 1988, “Princípios fundamentais”.

[2] Cf. Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, n. 59: AAS 58 ( 1966), p. 1080. Gravissimum educationis, n. 10: AAS 58 (1966), p. 737. “Autonomia institucional” significa que o governo de uma instituição acadêmica é e permanece interno à instituição. “Liberdade acadêmica” é a garantia, dada a quantos se dedicam ao ensino e à investigação, de, no âmbito do seu campo específico de conhecimento e de acordo com os métodos próprios de tal área, poder procurar a verdade em toda a parte onde a análise e a evidência as conduzam, e de poder ensinar e publicar os resultados de tal investigação, tendo presente os critérios citados, isto é, de salvaguarda dos direitos do indivíduo e da comunidade, das exigências da verdade e do bem comum.

[3] A noção de cultura, usada neste documento, compreende uma dupla dimensão: a humanista e a sócio-histórica. “Com o termo genérico de 'cultura' indicam-se todos aqueles meios, mediante os quais o homem apura e desenvolve as suas múltiplas capacidades espirituais e físicas; procura sujeitar ao seu domínio o próprio cosmos através do conhecimento e do trabalho; torna mais humana a vida social quer na família quer em toda a sociedade civil, mediante o progresso dos costumes e das instituições; e, finalmente, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade, as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações. Daqui se segue que a cultura humana implica necessariamente um aspecto histórico e social e que o termo 'cultura' assume frequentemente um sentido sociológico e etnológico é” (Gaudium et spes, n. 53: AAS 58 [1966], p. 1075).

[4] L'Université Catholique dans le monde moderne. Document final du 2 Congrès des Délegués des Universités Catholiques, Roma, 20-29 de Novembro de 1972, § 1.

[5] Gadium et spes, n. 36: AAS 58 (1966), p. 1054. A um grupo de cientistas observava que “embora razão e fé representem sem dúvida duas ordens distintas de conhecimento, cada uma autônoma relativamente aos seus métodos, ambas devem convergir finalmente para a descoberta duma só realidade total que tem a sua origem em Deus”. (JOÃO PAULO II, Mensagem ao encontro sobre Galileu, 9 de Maio de 1983, n. 3: AAS 75 [1983], p. 690).

[6] Cf. Concílio Vaticano II, Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, n. 2: AAS 58 (1966), pp. 930-931.

[7]Gaudium et spes, n. 59: AAS 58 ( 1966), p. 1080.

sábado, 30 de outubro de 2010

Cultura e fé


Ives Gandra Martins
 
O autor é professor Emérito das Universidades Mackenzie, Paulista e da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, e presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária. Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, edição de 3 de julho de 2000
 
O arcebispo dom Cláudio Hummes decidiu criar, na Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), um núcleo de estudos, que denominou “Cultura e Fé”, tendo convidado alguns professores e intelectuais de diversas áreas para formarem o grupo inicial para os trabalhos propostos.
O tema da razão e da fé tem sido continuamente aflorado em discussões nos mais variados âmbitos culturais, principalmente após a encíclica Fides et Ratio, do papa João Paulo II, nem sempre com a imparcialidade desejada.
Parcela ponderável de pensadores, todavia, ainda acredita que, em sua fantástica insuficiência, a razão e a ciência tudo explicariam e que a Humanidade, auto-suficiente e autogeradora, é, ao mesmo tempo, alfa e ômega da Criação.
Com pertinência, os professores Paulo Nogueira Neto e Ana Lydia Sawaya mostraram, na reunião inaugural, que os primeiros judeus - que há alguns milhares de anos receberam a mensagem revelada do Gênesis -, apesar do nível do seu analfabetismo científico, sabiam que o universo fora criado pelo “Big Bang” (”Fiat lux”). Conheciam também todos os fenômenos que conformaram o nosso planeta ao longo dos 5 bilhões de anos anteriores ao aparecimento do homem (águas, terras, plantas, peixes, animais), na incrível ordem que a ciência veio a revelar posteriormente, tal como está plasmada na Bíblia (nos figurativos seis dias da Criação). Com um monumental atraso de dezenas de centenas de anos, veio a ciência a confirmar o que os ”ignorantes” judeus conheciam desde a revelação do Pentateuco.
É interessante notar que São Pedro, por outro lado, sem ser um especialista em Astronáutica ou nas ciências siderais, em sua segunda carta, declara que, nos fins dos tempos, a Terra será abrasada e consumida pelo Sol (”elementa vero calore solventur”), antecipando uma tese que Carl Sagan, em seu livro Cosmos, oferta como a mais provável no momento em que o Sol explodir, daqui a uns 5 bilhões de anos, atingindo os planetas mais próximos (Vênus, Mercúrio e Terra), até se transformar numa estrela anã de densidade incomensurável.
Não há, portanto, um choque entre a fé e a ciência. Antes, por vir esta sempre atrás daquela, termina por confirmar as verdades reveladas pela primeira - quando a elas chega, em seu tempo -, razão pela qual verdadeiro cientista é aquele que, sem preconceitos aristocráticos, não nega o que não consegue provar pela razão, pelo simples fato de ainda não ter conseguido demonstrá-lo. Dessa forma, evita o desconsolo de Toynbee, que, em Mãe Terra, lamentava não poder provar que Deus não existe.
Quanto mais o homem evolui, mais percebe que suas verdades absolutas, em matéria de ciência, são relativas e, o mais das vezes, desmentidas com a evolução, pois uma verdade científica só vale até o momento em que se demonstra o contrário, por fatos supervenientes. A própria teoria do evolucionismo darwiniano - e, para a Igreja Católica, é absolutamente indiferente que o homem tenha surgido do “evolucionismo” ou do “criacionismo”, pois é no momento em que Deus outorga uma alma ao ser humano que este ganha essa dimensão - está hoje em pleno reexame científico, com novas teorias fundadas na conformação do DNA e, principalmente, a partir do mapeamento genético.
O certo é que não há uma oposição entre ciência e fé, cabendo aos intelectuais honestos a busca da verdade real, em seus estudos, para auxiliar o progresso da Humanidade, em que o conhecimento e a solidariedade humana marcham juntos. Só assim se terá a esperança de que um dia, como ocorreu com as verdades da fé já confirmadas pela ciência, chegará esta a entender o mistério da vida e as respostas de por que nascemos, para que vivemos e para onde iremos, questões estas que a fé já revelou. Se os homens se despojarem de suas vaidades pretensiosas, poderão captar tais realidades superiores.
Enfim, o núcleo “Cultura e Fé”, criado na PUC de São Paulo pelo arcebispo metropolitano, dom Cláudio Hummes, abre essa perspectiva na universidade que a Igreja Católica de São Paulo mantém, e todos os participantes da primeira reunião manifestaram a convicção de que gerará muitos frutos, até porque todos sabem, como diz o jurista Walter Barbosa Corrêa, que “ciência se faz com a verdade, e não com a vaidade”

Bento XVI comenta Caritas in veritate

Audiência geral de 8 de Julho de 2009, publicada no site da Santa Sé
 
O amor e a verdade a serviço do desenvolvimento integral, passando pela solidariedade e a subsidiariedade: assim o próprio Papa nos apresenta sua encíclica.
A minha nova Encíclica Caritas in veritate, que ontem foi oficialmente apresentada, inspira-se na sua visão fundamental num trecho da carta de São Paulo aos Efésios, no qual o Apóstolo fala do agir segundo a verdade na caridade:  "praticando a verdade — ouvimo-lo agora — cresceremos em todas as coisas pela caridade n'Aquele que é a Cabeça, o Cristo" (4, 15). A caridade na verdade é por conseguinte a principal força propulsora para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. Por isso, em volta do princípio "caritas in veritate", move-se toda a doutrina social da Igreja. Só com a caridade, iluminada pela razão e pela fé, é possível alcançar objetivos de desenvolvimento dotados de valor humano e humanizante. A caridade na verdade "é um princípio à volta do qual gira a doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores" (n. 6). A Encíclica recorda imediatamente na introdução dois critérios fundamentais:  a justiça e o bem comum. A justiça é parte integrante daquele amor "com os fatos e na verdade" (1 Jo 3, 18), à qual exorta o apóstolo João (cf. n. 6). E "amar alguém é desejar o seu bem e comprometer-se eficazmente por ele. Ao lado do bem individual, há um bem relacionado com o viver social das pessoas... Ama-se tanto mais eficazmente o próximo quanto mais nos comprometemos" pelo bem comum. Portanto, são dois os critérios operativos, a justiça e o bem comum; graças a este último, a caridade adquire uma dimensão social. Cada cristão — diz a Encíclica — é chamado a esta caridade, e acrescenta:  "É este o caminho institucional... da caridade" (cf. n. 7).
Como outros documentos do Magistério, também esta Encíclica retoma, continua e aprofunda a análise e a reflexão da Igreja sobre temáticas sociais de interesse vital para a humanidade do nosso século. De modo especial, retoma quanto escreveu Paulo VI, há mais de quarenta anos, na Populorum progressio, pedra constitutiva do ensinamento social da Igreja, na qual o grande Pontífice traça algumas linhas decisivas, e sempre atuais, para o desenvolvimento integral do homem e do mundo moderno. A situação mundial, como demonstra amplamente a crônica dos últimos meses, continua a apresentar grandes problemas e o "escândalo" de desigualdades clamorosas, que permanecem apesar dos compromissos assumidos no passado. Por um lado, registram-se sinais de graves desequilíbrios sociais e econômicos; por outro, invocam-se de várias partes reformas que não podem continuar a ser adiadas para preencher o abismo no progresso dos povos. O fenômeno da globalização pode, para esta finalidade, constituir uma real oportunidade, mas para isso é importante que se lance mão a uma profunda renovação moral e cultural e a um discernimento responsável sobre as opções a serem feitas para o bem comum. Um futuro melhor para todos é possível, se for fundado na redescoberta dos valores éticos fundamentais. Isto é, é necessária uma nova projetualidade econômica que redesenhe o desenvolvimento de modo global, baseando-se no fundamento ético da responsabilidade diante de Deus e do ser humano como criatura de Deus.
Certamente a Encíclica não pretende oferecer soluções técnicas às vastas problemáticas sociais do mundo de hoje — não é esta a competência do Magistério da Igreja (cf. n. 9). Mas ela recorda os grandes princípios que se revelam indispensáveis para construir o desenvolvimento humano dos próximos anos. Entre eles, em primeiro lugar, a atenção à vida do homem, considerada como centro de todo o verdadeiro progresso; o respeito do direito à liberdade religiosa, sempre estreitamente relacionado com o progresso do homem; a rejeição de uma visão prometeica do ser humano, que o considere artífice absoluto do próprio destino. Uma confiança ilimitada nas potencialidades da tecnologia no final revelar-se-ia ilusória. São necessários homens retos quer na política quer na economia, que sejam sinceramente atentos ao bem comum. Em particular, considerando as emergências mundiais, é urgente chamar a atenção da opinião pública para o drama da fome e da segurança alimentar, que investe uma parte considerável da humanidade. Um drama destas dimensões interpela a nossa consciência:  é necessário enfrentá-lo com determinação, eliminando as causas estruturais que o provocam e promovendo o desenvolvimento agrícola dos países mais pobres. Tenho a certeza de que este caminho de solidariedade ao desenvolvimento dos países mais pobres ajudará sem dúvida a elaborar um projeto de solução da crise global em curso. Sem dúvida deve ser revalorizado atentamente o papel e o poder político dos Estados, numa época em que existem de fato limites à sua soberania devido ao novo contexto econômico-comercial e financeiro internacional. E por outro lado, não deve faltar a participação responsável dos cidadãos na política nacional e internacional, graças também a um renovado empenho das associações dos trabalhadores chamadas a instaurar novas sinergias a nível local e internacional. Desempenham um papel de primeiro plano, também neste campo, os meios de comunicação social para potencializar o diálogo entre culturas e tradições diversas.
Querendo portanto programar um desenvolvimento não viciado pelas disfunções e deturpações hoje amplamente presentes, impõe-se da parte de todos uma séria reflexão sobre o próprio sentido da economia e sobre as suas finalidades. É o estado de saúde ecológica do planeta que o reclama; é a crise cultural e moral do homem, que sobressai com evidência em todas as partes do globo, que o exige. A economia precisa da ética para o seu correto funcionamento; precisa recuperar o importante contributo do princípio de gratuidade e da "lógica da doação" na economia de mercado, onde a regra não pode ser unicamente o lucro. Mas isto só é possível graças ao compromisso de todos, economistas e políticos, produtores e consumidores e pressupõe uma formação das consciências que dê força aos critérios morais na elaboração dos projetos políticos e econômicos. Justamente, de várias partes se faz apelo ao fato de que os direitos pressupõem deveres correspondentes, sem os quais os direitos correm o risco de se transformarem em arbítrio. É necessário, repete-se cada vez mais, um estilo de vida diferente da parte de toda a humanidade, no qual os deveres de cada um para com o ambiente se unam com os deveres para com a pessoa considerada em si mesma e em relação com os outros. A humanidade é uma só família e o diálogo fecundo entre fé e razão não pode deixar de enriquecê-la, tornando mais eficaz a obra da caridade no social, e constituindo o quadro apropriado para incentivar a colaboração entre crentes e não-crentes, na compartilhada perspectiva de trabalhar pela justiça e pela paz no mundo. Como critérios-guia para esta integração fraterna, na Encíclica indico os princípios de subsidiariedade e de solidariedade, em estreita relação entre eles. Indiquei por fim, face às problemáticas tão vastas e profundas do mundo de hoje, a necessidade de uma Autoridade política mundial regulamentada pelo direito, que seja conforme com os mencionados princípios de subsidiariedade e solidariedade e firmemente orientada para a realização do bem comum, no respeito das grandes tradições morais e religiosas da humanidade.
O Evangelho recorda-nos que nem só de pão vive o homem:  não se pode satisfazer a sede profunda do seu coração apenas com bens materiais. O horizonte do homem é indubitavelmente mais alto e mais vasto; por isso, qualquer programa de desenvolvimento deve ter presente, paralelamente ao crescimento material, também o espiritual da pessoa humana, que é dotada precisamente de alma e corpo. É este o desenvolvimento integral, ao qual a doutrina social da Igreja se refere constantemente, desenvolvimento que tem o seu critério orientador na força propulsora da "caridade na verdade". Queridos irmãos e irmãs, rezemos para que também esta Encíclica possa ajudar a humanidade a sentir-se uma só família empenhada em realizar um mundo de justiça e de paz. Oremos para que os crentes, que trabalham nos sectores da economia e da política, sintam como é importante o seu testemunho evangélico coerente no serviço que prestam à sociedade. Sobretudo, convido-vos a rezar pelos Chefes de Estado e de Governo do G8 que se encontram nestes dias em L'Aquila. Desta importante Cimeira mundial possam surgir decisões e orientações úteis para o verdadeiro progresso de todos os Povos, especialmente dos mais pobres. Confiamos estas intenções à intercessão materna de Maria, Mãe da Igreja e da humanidade.

Caritas in veritate: o desenvolvimento humano integral e o “Deus no mundo”


Stefano Fontana
 
Stefano Fontana, filósofo, é diretor do Observatório Van Thuân sobre a Doutrina Social da Igreja
 
Esse artigo é uma colaboração do

A terceira encíclica de Bento XVI retoma o grande tema da “Populorum progressio” de Paulo VI: o desenvolvimento humano integral. Ao mesmo tempo, mostra as implicações sociais do dom de amor que Deus fez ao mundo, em Cristo.
 
A encíclica “Caritas in veritate” de Bento XVI transforma a Doutrina Social da Igreja em nada menos que a relação entre a Igreja e o mundo, pois se trata “do desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade”, ampliando ao máximo o tema do desenvolvimento presente na “Populorum progressio” de Paulo VI – da qual recorda o quadragésimo aniversário.
É uma encíclica de amplo respiro, perfeitamente inserida no pontificado de Bento XVI, que não só fez dos termos “caridade” e “verdade” o coração de seu magistério, pois os considera o coração mesmo do cristianismo, mas também insere de modo radical o tema de “Deus no mundo” – ou seja, o cristianismo é somente útil ou é indispensável para a construção de um verdadeiro desenvolvimento humano? O Papa pensa que é indispensável e, na encíclica, diz o porquê.
Por isso, trata-se de um texto corajoso, que elimina qualquer dúvida possível com relação ao papel público da fé cristã e ao fato de que dela deriva uma visão coerente de vida, em pé de igualdade com outras visões.
O mundo, segundo a “Caritas in veritate” não deve apenas ser acompanhado por uma caridade sem verdade, mas deve ser salvo pela caridade na verdade. Para chegar a essa conclusão, o papa retoma Paulo VI e indica o ponto de vista teológico pelo qual a Igreja deveria considerar os fatos sociais. Trata-se de duas considerações estratégicas que o Cardeal Renato Martino e Dom Giampaolo Crepaldi, presidente e secretário do Pontifício Conselho Justiça e Paz, apresentando a encíclica em 7 de julho, mostraram muito bem.
O primeiro capítulo da encíclica, dedicado a Paulo VI, recorda sua encíclica “Populorum progression” de 1967. Paulo VI não estava incerto sobre o valor da Doutrina Social da Igreja, como muitos disseram e continuam dizendo,  nem teria atenuado a importância de uma presença pública do cristianismo na história. Pelo contrário, Bento XVI diz que ele assentou as bases da grande retomada que pouco depois aconteceria com João Paulo II. E sendo Paulo VI o papa do Concílio, é evidente que com esse trabalho de Bento XVI representa a revalorização de todo um período histórico.
Esta retomada do pensamento de Paulo VI tem o mesmo significado da condenação à “hermenêutica da fratura”, na análise do Vaticano II, feita por ele em 2005. A “Caritas in veritate” afirma que não existem duas doutrinas sociais, uma pré-conciliar e outra pós-conciliar, mas uma única Doutrina Social da Igreja.
Quanto à visão teológica da qual partir, o papa esclarece que não se trata de qualquer análise sociológica, mas da fé dos apóstolos. Ou seja, a Igreja não parte “do mundo”, mas da fé dos apóstolos. Só assim a Doutrina Social da Igreja pode ser útil para o mundo.
Esta é a perspectiva central de toda a encíclica e a razão de ser das posições que sustenta. Que o verdadeiro desenvolvimento não pode separar os temas da justiça social daqueles do respeito da vida e da família. Que não se pode lutar pela proteção da natureza se esquecendo de que a pessoa humana é superior a todo o resto da criação. Que a eugenia é muito mais preocupante que a diminuição da diversidade nos ecossistemas. Que o aborto e a eutanásia corroem o senso da lei e impedem, na origem, toda forma de acolhida ao mais fraco – representando uma ferida de enormes conseqüências para a comunidade humana. Que a economia precisa de gratuidade e que essa não deve ser simplesmente superposta no fim ou pensada ao lado da atividade econômica, mas – pelo contrário – deve ser elemento de solidariedade no interior mesmo dos processos econômicos – e sem isto a própria atividade redistributiva do Estado se tornará impossível. Essas e outras considerações presentes na encíclica nascem do Evangelho. Mas, o Evangelho, enquanto ilumina essa realidade social, econômica e política, lhe restitui a autonomia da própria dignidade, mostrando convergências antes impensadas entre a visão cristã e as necessidades autênticas da sociedade humana.
Pensemos, por exemplo, na economia: a globalização, em função da competição, impede os Estados de praticar a solidariedade “depois” da produção. É necessário organizar a solidariedade já dentro da atividade produtiva, como buscam fazer, por exemplo, ainda que entre mil contradições, os movimentos de responsabilidade social das empresas. Aqui se encontram as necessidades concretas da economia globalizada de hoje e as indicações da fé cristã – para a qual a economia é sempre um fato humano e comunitário e, portanto, a dimensão ética não lhe diz respeito apenas no momento seguinte, mas no interior do próprio processo produtivo.
Nesta encíclica, pela primeira vez, são tratados de modo sistemático os temas da globalização, do respeito ao meio ambiente e da bioética, que nas encíclicas precedentes haviam sido tocados. É uma encíclica que olha decididamente para o futuro, com a coragem do realismo da sabedoria cristã. A polarização Norte-Sul deve ser superada, diz Bento XVI, a responsabilidade do subdesenvolvimento não é só de alguns, mas de muitos, inclusive dos países emergentes e das elites dos países pobres. Algumas vezes, até mesmo as organizações humanitárias e os organismos internacionais parecem mais interessados com o próprio bem estar e com a própria burocracia que com o desenvolvimento dos países pobres. O turismo sexual não é sustentado apenas dos países dos quais partem os “clientes”, mas também daqueles que os hospedam. A corrupção pode ser encontrada também nas ajudas humanitárias. Os países industrializados erram ao proteger excessivamente a propriedade intelectual, principalmente no caso dos medicamentos. Nos países considerados atrasados, existem realmente superstições e visões ancestrais que podem impedir o desenvolvimento... E vai por aí afora...
É uma encíclica que condena as ideologias do passado e também as novas: do terçomundismo ao ecologismo. Mas enfrenta, sobretudo, uma: a ideologia da técnica, à qual está dedicado todo o sexto capítulo. Depois da falência das ideologias políticas, se consolidou a ideologia da técnica, ainda mais perigosa na medida em que se alimenta da cultura relativista que a cerca.
O ponto de vista central da encíclica foi retomado por Dom Crepaldi, que ao apresenta-la no Vaticano, caracterizou-a como a “prevalência do receber sobre o fazer”. E assim voltamos ao problema de fundo: sem Deus os homens são fruto do acaso e da necessidade e nada têm a receber. Mas então o mundo – inclusive o mercado e a comunidade política – necessita de um pressuposto que ele mesmo não pode dar-se. A pretensão cristã permanece sempre a mesma. 

Nova encíclica de Bento XVI critica a 'economia sem Deus'



  • Agência ANSA

  • Terça-feira, 07/07/2009 - 22:30
    Cidade do Vaticano - A nova encíclica do papa Bento XVI, "Caritas in Veritate" (Caridade na Verdade), apresentada oficialmente hoje, faz uma denúncia contra uma economia sem Deus que, sem considerar a dignidade humana, causou a atual crise mundial.

    Dividida em quatro capítulos, além de introdução e conclusão, a carta apostólica traz uma reflexão sobre o aumento da desigualdade social, da extrema pobreza, do drama do trabalho precário e dos riscos à democracia e adverte para as responsabilidades do homem diante dos desafios da nova realidade econômica e social.

    Iniciando sua reflexão com uma releitura da encíclica Populorum Progressio, de Paulo VI, publicada em 1967, Bento XVI retoma os temas abordados por seu antecessor -- como a fome, a miséria e as consequências do capitalismo -- e adverte para a necessidade de Deus para o desenvolvimento humano.

    "Sem Ele, o desenvolvimento ou é negado ou acaba confiado unicamente às mãos do homem, que cai na presunção da auto-salvação e acaba por fomentar um desenvolvimento desumanizado", diz.

    O Pontífice faz também uma crítica à ONU, que se mostra inadequada, assim como outros fóruns internacionais diante das necessidades decorrentes de um mundo globalizado e alerta para "a urgência de uma reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitetura econômica e financeira internacional".

    Nesse sentido, critica também o binômio mercado-Estado e fala da necessidade de "novas autoridades políticas mundiais", capazes de administrarem os processos globais com "um poder efetivo", respeitando "os princípios de subsidiariedade e solidariedade".

    Em outros pontos, Bento XVI confirma a negativa da Igreja Católica ao aborto, à eutanásia e à eugenesia e defende o trabalho estável "para todos", pedindo respeito dos direitos humano dos imigrantes.

    Joseph Ratzinger afirma também que "o grande desafio" da era da globalização é agir com transparência, honestidade, responsabilidade e ética nas relações comerciais, partindo do "princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade". "A economia tem necessidade da ética para o seu correto funcionamento; não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa", ressalta.

    Bento XVI retoma ainda as orientações de João Paulo II, que "destacou a necessidade de um sistema com três sujeitos: o mercado, o Estado e a sociedade civil" e afirma que a globalização "não é boa nem má". "Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas, atuando com razoabilidade, guiados pela caridade e a verdade".

    "Caritas in Veritate", "o amor na verdade é um grande desafio para a Igreja num mundo em crescente e incisiva globalização". Segundo Bento XVI, "o risco do nosso tempo é que, à real interdependência dos homens e dos povos, não corresponda a interação ética das consciências e das inteligências, da qual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano".

    A terceira encíclica (carta solene do Papa aos bispos e fiéis católicos do mundo) de Bento XVI era muito esperada por tratar principalmente da crise econômica mundial e suas consequências à humanidade. Antes, ele publicou "Deus caritas est" (Deus é amor, 2006) e "Spe salvi" (Salvos graças à esperança, 2007).

    Ao antecipar nova encíclica, Bento repete discurso sobre 'ditadura do relativismo'





    Quando a nova encíclica social de Bento XVI for publicada no começo de julho, ela poderá parecer amplamente bem anticlimática. Alguns trechos já surgiram na imprensa italiana, e neste domingo o pontífice deu um furo jornalístico em si mesmo ao dedicar suas considerações para o encerramento do Ano Paulino ao tema da "Caritas in Veritate" (Caridade na verdade), também o título de sua tão esperada meditação sobre a economia.

    A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 29-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

    Com efeito, o que Bento desenhou na noite deste domingo provavelmente remonta à subestrutura teológica e espiritual da encíclica, menos as prescrições econômicas específicas.

    O núcleo do que Bento disse durante as vésperas ecumênicas na grande basílica de São Paulo Fora dos Muros é que a construção de um mundo melhor exige a formação de pessoas melhores. A reforma estrutural, por isso, pressupõe uma renovação pessoal, moral e espiritual, incluindo uma vida dedicada à oração e aos sacramentos.

    Em uma passagem que evocou a famosa homilia sobre a "ditadura do relativismo" do então cardeal Joseph Ratzinger, há quatro anos, Bento pediu que os cristão sejam "não conformistas", recusando aceitar os valores da modernidade secular. Em particular, Bento XVI rejeitou a versão "faça-você-mesmo" do Magistério católico, insistindo na oposição ao aborto e ao casamento homossexual como parte do que significa ter uma "fé adulta".

    Estando a poucos passos do que a tradição cristã considera como o túmulo de São Paulo, o Papa também revelou que os testes com carbono-14 confirmaram que os fragmentos de ossos contidos no sarcófago pertencem a um homem do primeiro ou segundo século – confirmando assim, disse Bento, a "unânime e incontrastável tradição" de que o sarcófago contém "os restos mortais do apóstolo Paulo".

    As vésperas desse domingo encerraram o Ano Paulo, iniciado pelo Papa Bento XVI no dia 28 de junho de 2008 para comemorar o aniversário de dois mil anos do nascimento de São Paulo, o "apóstolo dos gentios".

    A ideia de que um mundo melhor deve ser construído por pessoas melhores será provavelmente o tema central da "Caritas in Veritate", e o Papa abordou isso em profundidade neste domingo.

    "Paulo nos diz: o mundo não pode ser renovado sem homens novos", disse Bento. "Só haverá homens novos se também houver um mundo novo, um mundo renovado e melhor".

    Dessa premissa, Bento disse que a renovação espiritual pessoal requer "não conformismo", uma disposição a "não se submeter ao esquema da época atual". Para fazer isso, disse o Papa, requer-se uma nova forma de se pensar diferente dos valores do mundo, moldada pelo encontro com o "homem novo" de Jesus Cristo.

    "O pensamento do homem velho, o modo de pensar comum, está geralmente voltado às posses, ao bem-estar, à influência, ao sucesso, à fama e assim por diante", disse Bento. "Assim, em última análise, o 'eu' próprio se torna o centro do mundo. Devemos aprender a pensar de maneira mais profunda", disse o Papa, baseada nos desejos de Deus em vez de si próprio.

    Bento retomou a insistência de Paulo em uma "fé adulta", zombando do uso dessa frase para justificar o dissenso da doutrina católica oficial.

    "A frase 'fé adulta', nas últimas décadas, se tornou um slogan difuso", disse o Papa. "Muitas vezes, ela é entendida no sentido da atitude de quem não dá mais ouvidos à Igreja e aos seus Pastores, mas que escolhe autonomamente em que quer crer e não crer – uma fé 'faça-você-mesmo', portanto. E ela se apresenta como 'coragem' de se expressar contra o Magistério da Igreja".

    "Na realidade, porém, não se precisa de coragem para isso, porque sempre se pode estar certo do aplauso público. Pelo contrário, é preciso coragem para aderir à fé da Igreja, mesmo que ela contradiga o 'esquema' do mundo contemporâneo".

    Bento destacou especificamente a oposição ao aborto e ao casamento gay como parte desse pacote.

    "Faz parte dessa fé adulta, por exemplo, o compromisso com a inviolabilidade da vida humana desde o primeiro momento, opondo-se radicalmente com isso ao princípio da violência, justamente na defesa das criaturas humanas mais indefesas", disse o Papa.

    "Faz parte da fé adulta reconhecer o casamento entre um homem e uma mulher por toda a vida, como ordem do Criador, restabelecida novamente por Cristo", disse.

    Esses comentários fizeram parte de uma meditação sobre o capítulo 04 da Carta aos Efésios, de Paulo, a mesma passagem do Novo Testamento destacada na homilia do então cardeal Ratzinger logo antes do conclave que o elegeu ao papado há quatro anos, na qual ele identificou uma "ditadura do relativismo" como o desafio central da fé hoje.

    Entretanto, Bento insistiu que o significado de ser uma "nova pessoa" em Cristo não tem a ver, primeiramente, com aquilo a que nos opomos, mas sim com aquilo que apoiamos. Com referência a isso, disse o Papa, a prova do nosso compromisso com a verdade, ou "veritas", é o nosso amor, "caritas".

    "A caridade [o amor] é a prova da verdade", disse o Papa. "Devemos sempre de novo ser medidos segundo esse critério, que a verdade se torne caridade, e a caridade nos torne verdadeiros".

    Bento afirmou que, como o amor de Cristo se estende a todo o universo, a preocupação cristã pelo mundo deve, da mesma forma, ter uma dimensão cósmica. Porém, o Pontífice não desenvolveu essa questão na noite do domingo. Em ocasiões anteriores, essa ideia forneceu a base para uma forte mensagem ambiental.

    "O Cristo crucificado abraça o universo inteiro em todas as suas dimensões", disse Bento.

    O Papa terminou pedindo uma vida de oração e participação nos sacramentos como uma solução ao que ele chamou de "vazio interior" da vida moderna, que se reflete, dentre outras coisas, disse o Papa, no uso de drogas.

    Economia global: eis a nova encíclica




    "Sem verdade, sem confiança e amor pelo verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e o agir social cai nas mãos de interesses privados e de lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, ainda mais em uma sociedade em vias de globalização, em momentos difíceis como os atuais".
    A análise é de Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, 27-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
    A última revisão de Bento XVI já está pronta. A estas horas estão revendo as últimas páginas da "Caritas in veritate", a terceira encíclica do Papa "dedicada ao vasto tema da economia e do trabalho, a uma reflexão nova e aprofundada sobre o sentido da economia e dos seus fins", que trará a data do dia 29 de junho (São Pedro e São Paulo) e será apresentada entre os dias 06 e 07 de julho. O Pontífice consultou uma grande quantidade de especialistas, entre economistas e prelados, mas, com relação à última prova de texto de abril, ele realizou a redação definitiva sozinho, palavra por palavra. No Vaticano, diz-se que ele levou uma cópia consigo até na viagem para a Terra Santa, no mês passado.
    A encíclica, adiada para levar em conta a crise e "responder com base nos elementos reais", exige a necessidade de "uma nova e aprofundada reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins, assim como a uma revisão aprofundada e previdente sobre o modelo de desenvolvimento". A globalização não é o mal, mas também não se regula por si mesma: se for governada com "novas regras", pode se tornar uma oportunidade.
    E no "novo contexto econômico-comercial e financeiro internacional", que modificou o poder político dos Estados", o texto sugere "uma renovada avaliação do seu papel e do seu poder", convida os sindicatos a "instaurar novas sinergias em nível internacional" para enfrentar "a redução das redes de segurança social" e invoca "a presença de uma verdadeira autoridade política mundial", nos traços da "Pacem in terris" de João XXIII: não um super-Estado, nem simplesmente a ONU, mas um modelo internacional de governo da globalização, uma autoridade "que deverá ser regulada pelo direito, ater-se de modo coerente aos princípios de subsidiariedade e de solidariedade, ser ordenada para a realização do bem comum e comprometer-se com a promoção de um autêntico desenvolvimento humano integral inspirado nos valores da caridade da verdade".
    "Caritas in veritate", justamente: "O princípio ao redor do qual a doutrina social da Igreja gira". Bento XVI reconduz tudo aos seus fundamentos teológicos e teoréticos. Desde a primeira frase: "A caridade da verdade, que Jesus Cristo nos mostrou com toda a sua vida terrena e, sobretudo, com a Sua morte e ressurreição, é o principal recurso a serviço do verdadeiro desenvolvimento de todo indivíduo humano e da humanidade inteira"
    A crise, observou o Papa, "nasceu de um déficit de ética nas estruturas econômicas". Um sistema infectado pela cobiça. Mas a economia "precisa da ética para o seu correto funcionaento", ou é contra o homem ou o destrói. Aqui surge a necessidade de um código ético comum: fundado na "verdade ao mesmo tempo da fé e da razão", uma verdade que, por isso, é acessível a todos, "a luz por meio da qual a inteligência alcança a verdade natural e sobrenatural da caridade". A busca da "justiça" e do "bem comum" derivam disso.
    Bento XVI fala de "responsabilidade social da empresa no sentido amplo, que leve em conta todos os impactos sociais do seu agir". Permanecendo firme no fato de que, em primeiro lugar, está a responsabilidade social: "O desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores econômicos e homens políticos que vivam fortemente, nas suas consciências, o apelo ao bem comum".
    Tudo é considerado, luta à fome e defesa da vida e atenção ao "estado de saúde ecológica do planeta", cisto que "os deveres que temos com relação ao ambiente se unem aos deveres com relação à pessoa": porque "o primeiro capital a ser protegido e valorizado é o homem na sua integridade".
    No início, o Papa se refere à "Populorum progressio", de Paulo VI, que, em 1967, denunciou a desigualdade entre países ricos e pobres, mas a encíclica percebe também faz referência à "Humanae vitae", contra o aborto e a contracepção. Assim, "a abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento", e, "se perdermos a sensibilidade pessoal e social com relação à acolhida de uma nova vida, outras formas de acolhida úteis à vida social também se empobrecem". Enfim, desenvolvimento e crescimento demográfico se correspondem. E uma "abertura moralmente responsável" à vida representa "uma riqueza social e econômica".
    Dito isso, "a caridade na verdade pede reformas urgentes para enfrentar com coragem e sem demora os grandes problemas da injustiça no desenvolvimento dos povos". Depois de mais de 40 anos da "Populorum progressio", o desenvolvimento que devia ser "extensível a todos" foi "e continua sendo agravado por distorções e problemas dramáticos". A fome, sobretudo: "Dar de comer aos famintos é um imperativo ético para a Igreja". E "alimentação e acesso à água" são "direitos universais". E os países pobres devem ser defendidos e envolvidos nos processos decisivos.
    A crise preocupa, mas "devemos assumir com realismo, confiança e esperança as novas responsabilidades às quais o cenário de um mundo que precisa de uma profunda renovação cultural e da redescoberta dos valores de fundo sobre os quais devemos construir um futuro melhor nos chama".
    Oikonomia significa "lei" ou "administração" do oikos, a casa. "O desenvolvimento dos povos depende, sobretudo, do reconhecimento de sermos uma só família"

    A crise muda a encíclica




    Bento XVI não estava satisfeito com as soluções para "endereçar ao bem" a globalização e, por isso, reorganizou "algumas partes" para indicar mais claramente "um progresso sustentável, no respeito à dignidade humana e às exigências de todos".

    A encíclica social (reescrita, corrigida e reelaborada por uma equipe de especialistas) foi enfim retomada pelas mãos do Papa para ser integrada com considerações sobre a crise. É assim que explicam, na Cúria, a publicação que falhou da encíclica "Caritas in veritate" (amor na verdade), prevista para o dia 29 (festa dos santos Pedro e Paulo).
    A reportagem é de Giacomo Galeazzi, publicada no jornal La Stampa, 30-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

    Bento XVI não está totalmente convencido e ainda está fazendo alguns retoques. O texto de uma centena de páginas estará pronto para o G8 de Aquila e, anunciou o Papa, trará a data do dia 29 de junho. Será traduzida em oito línguas (inclusive chinês, árabe, latim), depois impressa e distribuída em centenas de milhares de cópias.

    Muitos testes contribuíram com um documento que, no fim, corre o risco de não ter a mesma coerência das duas encíclicas papais anteriores. No centro das questões sociais e econômicas contemporâneas, o texto coloca a justiça, criticando duramente os desvios especulativos do capitalismo mundial, sem, porém, pôr em discussão o sistema de livre mercado. Depois, mudanças climáticas, emergência ambiental, proteção da criação, paz, pobreza, desarmamento, relações econômicas entre Ocidente e Terceiro Mundo.

    Mas é para indicar melhor as respostas concretas à crise que o Pontífice pediu um aprofundamento ao seu "think tank" (cardeal Martino, os economistas Gotti Tedeschi e Zamagni, os arcebispos Marx e Crepaldi) sobre a crise moral das finanças em nível global, com relação aos princípios de "governança global" e às referências éticas dos comportamentos humanos (escolha entre bem e mal, o reconhecimento do cristianismo na cotidianidade).

    O tamanho da crise mundial induziu o Papa a aprofundar o texto, porque, por detrás da quebra dos grandes bancos norte-americanos, ele reconhece "a idolatria da avareza humana" e "a falsificação da imagem do verdadeiro Deus pelo dinheiro". Sem moralismos estéreis e com corajosa concretude, a encíclica denuncia antes os males e depois, por meio do "conhecimento da realidade", assinala "os caminhos que levam à justiça, à caridade, à conversão dos corações".

    Na Rádio do Vaticano, o arcebispo Celestino Migliore, embaixador papal nas Nações Unidas, define-a como "um pacto global de solidariedade para derrotar a pobreza", porque, "por trás da crise atual, há uma ideologia que coloca os desejos individuais no centro das decisões econômicas, removendo as considerações éticas da economia, em vez de integrá-las para criar um sistema financeiro mais justo e eficaz".

    O resultado, estigmatizado pelo Pontífice na encíclica, é "uma economia em que o sucesso pessoal deve existir em desvantagem aos outros, um individualismo privado da responsabilidade necessária para criar uma sociedade que respeite da dignidade humana". Por isso, o Papa pede "uma nova direção para os sistemas financeiros e econômicos que responda aos princípios de justiça, solidariedade e subsidiariedade", por meio de "medidas dirigidas no sentido de reforçar a segurança alimentar e as iniciativas sociais".

    Para Silvano Maria Tomasi, observador do Vaticano na ONU em Genebra, "o texto responde às consequências da mundialização, às novas relações entre trabalho produtivo e gestão das finanças, à necessidade de mudar normas ainda ligadas aos contextos dos Estados".

    Sobre esses aspectos, Bento XVI, nas últimas semanas, voltou a consultar acadêmicos e especialistas para integrar a estrutura social inicial à luz dos nós que surgiram com a crise econômica mundial, com o objetivo de "repensar certos paradigmas econômico-financeiros que foram dominantes nos últimos anos" e indicar "o modelo de uma economia sustentável e ética" aos poderosos do mundo e à indústria

    O adiamento da publicação deveu-se a um "suplemento de aprofundamento", portanto. "Com relação ao projeto inicial, a encíclica teve uma série de revisões, e isso prolongou os tempos – observa o teólogo Gianni Gennari. Bento XVI é muito escrupuloso e não assina nada que não tenha sido sistematizado integralmente por ele".

    Portanto, a publicação foi adiada porque o Papa pediu "documentações suplementares sobre a situação atual provocada pela crise no mundo", junto com "referências textuais aos critérios fundamentais de 120 anos de magistério social de Leão XII em diante".

    Uma demora, destaca Gennari, que certamente "não foi provocada, como se pensou, pela dificuldade de traduzir os termos específicos da economia ao latim", já que "existe um escritório apropriado para a língua oficial no Vaticano, e as palavras da economia não se prestavam mais aos tempos de Leão XII".

    Pelo contrário, o que causou o atraso foram as reflexões suscitadas pela viagem à África em março e o "grito alarmante de um milhão e meio de pessoas ao serviço missionário da Igreja sobre a divisão injusta dos bens essenciais e uma tradição de 15 séculos desde São João Crisóstomo e São Basílio".

    Chaves de leitura da encíclica social de Bento XVI




    Os italianos têm uma expressão maravilhosa, "chiave di lettura", que literalmente significa "chave de leitura". Ela se refere a alguma ideia ou perspectiva central, que pode ajudar a se entender o sentido de um montante complexo de material. Como a tão esperada encíclica sobre a economia está marcada para aparecer na próxima terça-feira, 07, parece ser um bom momento para sugerir uma possível "chiave di lettura" para o documento, que eu posso expressar em uma palavra: síntese.

    A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 02-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

    Intitulada "Caritas in Veritate" (em inglês o título é "Love in Truth", amor na verdade), a encíclica será apresentada na próxima terça-feira em uma coletiva de imprensa no Vaticano. Eu vou estar de olho nela, assim como ao encontro do Papa Bento com o presidente Barack Obama, na próxima quinta-feira, 09.

    Mesmo que o Papa possa não dizer isto dessa forma, grande parte da "Caritas in Veritate" bem poderia assumir a forma de uma tentativa de sintetizar três das mais persistentes – e Bento XVI diria, sem dúvida, artificiais – dicotomias da experiência católica recente:
    • Conversão pessoal versus reforma social;
    • Compromisso pró-vida versus compromisso com a justiça;
    • Espiritualidade horizontal versus vertical.
    Todos os três pontos podem ser entendidos como versões parciais de uma "grande dicotomia", a dicotomia entre verdade e amor.

    Na verdade, essa ideia provavelmente não irá aparecer em muitas manchetes na terça-feira, que provavelmente estarão focadas nas recomendações políticas do papa, e/ou na sua condenação à cobiça. Nos blogs, enquanto isso, uma troca de acusações certamente irá surgir sobre o fato de a encíclica se inclinar mais à direita ou à esquerda política. (A nota que irá sair sobre ela três dias antes de o presidente Barack Obama se encontrar com Bento, provavelmente irá alimentar esse círculo de efeitos).

    Porém, para aqueles interessados em ir mais fundo, suspeito que a "síntese" irá provar ser uma forma de ajudar a desatar os nós do documento.

    A inspiração para essa "chiave di lettura" vem do próprio Bento, em uma sessão de perguntas e respostas há dois anos com padres da diocese de Belluno-Feltre e Treviso, na Itália. Naquela ocasião, Bento disse: "O catolicismo, um pouco simplistamente, foi sempre considerado a religião do grande 'et et': não de grandes exclusivismos, mas da síntese".

    Inspecionando o que já foi dito sobre "Caritas in Veritate", parece que esse espírito "e/e" provavelmente irá pulsar no documento.

    Conversão pessoal e mudança social

    Talvez, nenhuma ideia singular irá parecer maior do que a insistência de que uma real solução para a crise econômica global – que deve envolver, claro, a análise de questões estruturais, como as relações de mercado, as políticas de impostos, as práticas de empréstimo e assim por diante – deve estar, em primeiro lugar, enraizada na conversão pessoal. A menos que, individualmente, os seres humanos ajam eticamente e se vejam como responsáveis pelo bem comum, qualquer sistema pode ser seqüestrado, subvertido e corrompido, independentemente de quão nobre é o seu formato.

    Há poucos dias, trechos não oficiais da "Caritas in Veritate" foram publicados na imprensa italiana, e essa ideia figurou em peso naquelas passagens.

    "O desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores econômicos e homens políticos que vivam fortemente, nas suas consciências, o apelo ao bem comum", foi o que se publicou como aquilo que o Papa teria escrito.

    No entanto, não precisamos de brechas para captar um sentido do que está a caminho, porque muitas das declarações públicas de Bento durante a semana passada pareceram ser uma prévia da encíclica.

    Em uma homilia na segunda-feira, Bento refletiu sobre a ligação entre o pessoal e o social: "O desinteresse pela alma, o empobrecimento do homem interior, não só destrói a própria pessoa, mas também ameaça o destino da humanidade em seu conjunto. Sem curar a alma, sem curar o homem a partir de dentro, não pode haver salvação para a humanidade".

    No dia anterior, durante as vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, para marcar o encerramento do "Ano Paulino", Bento ofereceu outra versão da mesma questão: "São Paulo nos diz: o mundo não pode se renovar sem homens novos", disse. "Só haverá homens novos se também houver um mundo novo, um mundo renovado e melhor".

    Em parte, essa ênfase em manter o pessoal e o social juntos retoma uma ideia chave da primeira encíclica de Bento, "Deus Caritas Est", em que ele argumenta que os programas de justiça social nunca podem eliminar a necessidade de atos individuais de caridade. Nesse sentido, "Caritas in Veritate" provavelmente deve aplicar a mesma intuição à economia: não há justiça econômica sem moralidade individual – enraizada, enfim, na verdade.

    Compromissos pró-vida e de paz-e-justiça

    Assim como fez em outros lugares, Bento provavelmente irá rejeitar qualquer tentativa de escolha dentre os ensinamentos sociais da Igreja, particularmente no que se refere à tendência cansativamente familiar dentre os católicos de se dividir entre campos pró-vida e de paz-e-justiça.

    Durante as vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, Bento fez uma homilia que lembrou o seu famoso discurso sobre a "ditadura do relativismo" no auge do conclave que o elegeu ao papado. Assim como há quatro anos, Bento, na segunda-feira, estava refletindo sobre a carta de São Paulo aos efésios, convidando os cristãos a não serem como crianças "ao sabor das ondas, agitados por qualquer sopro de doutrina, ao capricho da malignidade dos homens" [Efésios 4, 14].

    Nesse espírito, Bento disse que a renovação espiritual requer "não conformismo", uma disposição a "não se submeter ao esquema da época atual". Bento retomou a insistência de Paulo em uma "fé adulta", zombando do uso dessa frase para justificar o dissenso da doutrina católica oficial.

    "A frase 'fé adulta', nas últimas décadas, se tornou um slogan difuso", disse o Papa. "Muitas vezes, ela é entendida no sentido da atitude de quem não dá mais ouvidos à Igreja e aos seus Pastores, mas que escolhe autonomamente em que quer crer e não crer – uma fé 'faça-você-mesmo', portanto. E ela se apresenta como 'coragem' de se expressar contra o Magistério da Igreja".

    "Na realidade, porém, não se precisa de coragem para isso, porque sempre se pode estar certo do aplauso público", disse o Papa. "O que exige coragem é aderir à fé da Igreja, mesmo que ela contradiga o 'esquema' do mundo contemporâneo".

    Bento destacou especificamente a oposição entre o aborto e o casamento gay.

    "Faz parte dessa fé adulta, por exemplo, o compromisso com a inviolabilidade da vida humana desde o primeiro momento, opondo-se radicalmente com isso ao princípio da violência, justamente na defesa das criaturas humanas mais indefesas", disse o Papa. "Faz parte da fé adulta reconhecer o casamento entre um homem e uma mulher por toda a vida, como ordem do Criador, restabelecida novamente por Cristo".

    As pequenas porções da "Caritas in Veritate" que apareceram sugerem que Bento irá voltar a esse ponto na encíclica.

    "A abertura à vida está no coração do verdadeiro desenvolvimento", escreveu o Papa, de acordo com as notícias. "Se perdermos a sensibilidade pessoal e social para acolher a nova vida, então outras formas de acolhida que também são úteis para a vida social irão murchar".

    Espiritualidade horizontal e vertical

    Uma terceira tensão recorrente na vida católica ocorre entre uma espiritualidade primariamente "vertical", focada na vida de fé pessoal do fiel e na relação com Deus, e uma que é mais "horizontal", enfatizando-se a comunhão do fiel e um maior engajamento com o mundo. Essa tensão às vezes acaba por colocar os esforços missionários e o ativismo pela justiça social em conflito, como se pregar o evangelho fosse uma distração para se construir um mundo melhor.

    Em outras ocasiões, quando Bento XVI tocou em temas sociais, ele defendeu que não apenas as espiritualidades vertical e horizontal podem se reconciliar, como também a primeira é uma condição "sine qua non" para a segunda. Não pode haver um mundo justo, insistiu o Pontífice, sem Cristo, que é a fonte da justiça.

    Esse tema surgiu mais claramente durante a viagem de Bento ao Brasil, em 2007, quando ele refletiu em profundidade sobre a ideia da América Latina como um "continente de esperança".

    "Não é uma ideologia política, nem um movimento social, nem mesmo um sistema econômico", disse o Papa, "mas é a fé em Deus Amor, encarnado, morto e ressuscitado em Jesus Cristo, o autêntico fundamento dessa esperança".

    Bento assumiu que uma espiritualidade vertical "não deve ser motivo de evasão da realidade história em que a Igreja vive compartilhando as alegrias e as esperanças, as dores e as angústias da humanidade contemporânea, especialmente dos mais pobres e daqueles que sofrem". Porém, Bento insistiu que a solidariedade social também não deve excluir a proclamação de Cristo, a participação nos sacramentos e a promoção da santidade.

    De acordo com os trechos que circulam, Bento também irá abordar esse ponto na "Caritas in Veritate".

    A verdade e o amor de Cristo, segundo aquilo que o Papa teria escrito, são "as principais fontes para o serviço do verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa humana e de toda a humanidade".

    A encíclica e as sementes do pós-capitalismo





    A principal consultora de Bento XVI para a encíclica social que irá ser publicada nesta terça-feira, 07 de julho, foi a crise econômico-financeira. Em setembro de 2008, no dia depois do desastre do Lehman Brothers, na reunião do grupo de redação encarregado pelas ações preliminares da encíclica (da qual o jornal Il Foglio antecipou dois parágrafos), era claro que os últimos defensores da "teologia do capitalismo" haviam fugido dos fatos.

    A reportagem é de Giancarlo Zizola, publicada no jornal Il Sole 24 Ore, 05-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

    De repente, o campo se tornou livre para aquilo que se candidata a ser o primeiro grande documento pós-capitalista do magistério social da Igreja: pós-capitalista no sentido de que assume, pela primeira vez com precisão científica, a não equivalência entre economia de mercado e sistema capitalista, reconhece alguns pontos ainda válidos dessa forma particular de mercado, mas não a considera exaustiva nem a canoniza: se a economia de mercado é o "gênero", o capitalismo deve ser considerado só uma "espécie" que se felicita por ser sua superação. A distinção, que não era totalmente clara na "Centesimus annus" publicada por Wojtyla no dia seguinte à queda do Muro, assume, no texto de Bento XVI, contornos menos equívocos.

    É o nó de um processo de "historicização", de alguma forma surpreendente, escrito pela pena de um papa-teólogo. Alguns temiam que o Papa Ratzinger cedesse a uma "teologização" da doutrina social, aumentando a pretensão de uma autossuficiência da ordem da Graça com relação à ordem profana da natureza (também da economia), das suas leis e das suas autonomias: como se só na constelação de princípios eternos fosse reconhecível um sucesso salvífico da história, também na ordem mundana.

    Porém, a sua alma agostiniana, ao lado da paixão juvenil por São Boaventura de Bagnoregio (tema da sua tese de doutorado) fez, por fim, prevalecer o seu realismo, bem lembrado de que a primeira construção de uma economia de mercado se deve aos seguidores de São Francisco de Assis: além de Boaventura, Antonino de Florença, que o laicíssimo Schumpeter definia como "o maior economista de todos os tempos antes de Adam Smith".

    A opção de Ratzinger foi clara desde a escolha do título: diante da alternativa, que o grupo redacional não soube responder, entre "Veritas in caritate" ou "Caritas in veritate", o Papa escolheu decididamente este último, convencido de que a busca da verdade, se não for dirigida ao primado do bem comum, terminaria no integralismo ou também no justicialismo. A sua crítica à pretensão da autonomia moderna da ética tem facilidade em argumentar apologeticamente sobre a crise econômica para denunciar os efeitos destrutivos do abuso do instrumento econômico para meros objetivos de maximização do lucro individual.

    O texto considera a crise como uma oportunidade providencial para uma recuperação de formas civis do econômico, que integrem, de modo criativo, princípios fundamentais não mais ultrapassáveis nem acessórios.

    A análise do Papa agride abertamente a distorção do sistema ainda vigente e da sua ortodoxia liberalista: "Deve ser considerada errada a visão daqueles que pensam que a economia de mercado necessita estruturalmente de uma cota de pobreza e de subdesenvolvimento para poder funcionar melhor. É interesse do mercado promover a emancipação". Segundo a encíclica, a justiça distributiva deve ser integrada no próprio processo de produção da riqueza.

    Nessa perspectiva, os trabalhadores de uma economia pré-capitalista são evocados como uma possível prefiguração utópica de uma economia global que quer se fazer sustentável. A utopia econômica de Ratzinger (em que parece reverberar o sonho de Joaquim de Fiore [1]) se dirige a assumir o princípio da gratuidade, o gesto do dom não mais como forma periférica, terapêutica, religiosa ou justaposta para compensar a falência do sistema econômico.

    Enfim, é notável que, ao propor algumas inspirações para a governança global da ordem internacional, a encíclica descarte resolutamente a hipótese de forma de super-Estado ou equivalentes e se torne a porta-bandeira de uma visão poliárquica, isto é, de uma pluralidade de centros de poder, segundo o critério da subsidiariedade.

    Ratzinger recupera do Concílio Vaticano II a ênfase no princípio (bíblico e patrístico) da destinação universal dos bens da Terra. Frustrando as pressões de círculos conservadores vaticanos para um documento social que determinasse uma descontinuidade com relação à encíclica de Paulo VI "Populorum progressio" (1967), Bento XVI quis unir-se organicamente àquele texto, ao qual dedica todo o primeiro capítulo da encíclica, reconhecendo seu caráter profético.

    O Papa deixa à criatividade social, também dos católicos (mas não só), a busca por estruturas novas a serem criadas à altura das exigências de um mundo global, desde uma segunda Assembleia das Nações Unidas a um Conselho de Segurança econômico e social (com poderes de vigilância sobre os mercados das matérias-primas alimentares) a uma Organização Mundial das Migrações. Mas é claro que a sua encíclica encoraja essas e outras invenções institucionais de governança como instrumentos eficazes para traduzir a "caridade" em decisões políticas reais em benefício da família humana.

    Notas:

    1. Joaquim de Fiore
    (1132-1202), também conhecido por Gioacchino da Fiore, foi um abade cisterciense e filósofo místico, defensor do milenarismo e do advento da idade do Espírito Santo

    A questão mundial é antropológica. Uma apreciação da Caritas in Veritate


     
    Jean-Pierre Denis, diretor da revista semanal francesa La Vie, 08-07-2009, em artigo intitulado "Humanismo" comenta a carta encíclica Caritas in Veritate, de Bento XVI.
    Eis o artigo.
    A questão social tornou-se mundial, dizia Paulo VI, em 1967. A questão mundial tornou-se antropológica, analisa Bento XVI, um pouco mais de quarenta anos depois, na sua nova encíclica Caritas in veritate. Paulo VI tinha visto a vinda da globalização. Bento XVI assiste, como nós, à uma crise que nos torna inseguros sobre o nosso futuro, ainda arrrogantes, mas já hesitantes. O desafio da globalização é, agora, a própria pessoa humana, mais que as estruturas sociopolíticas ou as doutrinas econômicas. Todos os problemas sociais giram em torno da dignidade da pessoa humana. Sim, o desafio é antropológico.
    Paulo VI, Bento XVI. A comparação se impõe. O primeiro se voltava para “os homens de boa vontade”, e numerosos militantes viram ali algo onde fundamentar o seu compromisso sem exclusividade, no contexto de uma cristandade sociologicamente dominante. O segundo convida os cristãos a recordarem o que os fundamenta espiritualmente. Na hora da secularização, os crentes se sabem imersos num mundo plural. Eles provam às vezes – sobretudo os jovens – a necessidade de compreender não somente o que eles podem fazer, mas também o que eles podem ser. A sua visão social torna-se, talvez, mais introspectiva. Bento XVI o afirma com uma ponta de provocação: “Um cristianismo de caridade sem verdade pode facilmente ser confundido com um reservatório de bons sentimentos, úteis para a coexistência social mas não tendo mais que uma incidência marginal”.
    Se se lê com atenção, a encíclica é angustiada, mas ela não é mais negativa do que a de Paulo VI, que julgava que o mundo estava “doente”. A técnica? Ela é “ambivalente”. O lucro? Ele é “útil se”... O Papa denuncia certamente “os efeitos deletérios de uma atividade financeira especulativa”. Mas, no fundo, nada é mau em si. Nem a finança, nem o mercado, nem a globalização. Somente são perversos as paixões que nos impelem a “absolutizar” tal ou tal mecanismo, numa lógica do puro lucro. Inversamente, somente é autenticamente bom o que leva ao “desenvolvimento humano integral”. Uma noção que deve muito a dois franceses: o filósofo Maritain – um dos fundadores de Temps présent, a revista donde saiu a revista La Vie – e o frei dominicano Lebret, pioneiro do desenvolvimento na hora da descolonização.
    Integral? Durante muito tempo, se considerou o social como separado do ambiental e este separado do financeiro, e este separado do ético. Com a globalização, descobre-se que todos os desafios estão interligados.  É aqui que o cristianismo, referindo-se à uma verdade transcendente, afirma ter a chave e pretende dar à pessoa humana sua verdadeira unidade. O desafio, dissemos acima, é antropológico. A nova questão social, é a questão do homem. Impossível continuar cortando a espécie humana em pedaços. A desejo do respeito da vida encontra-se tanto na ecologia como na bioética, como nos novos boat people que a Europa reprime. Então, sem dúvida, porque a encíclica passa tudo isso em revista , ela perde em força e respiro o que ele ganha em detalhes. Esperamos, agora, um grande texto centrado nos desafios da biodiversidade. Mas Bento XVI convida à “uma nova  síntese humanista”. E isso, finalmente, é sagradamente ambicioso, pois o humanismo, nestes últimos tempos, não tem sido tão forte.

    Bento XVI incentiva globalização da solidariedade

    A globalização em curso não deve dizer apenas respeito aos interesses econômicos e comerciais, mas há de estender-se também às expectativas de solidariedade, ressaltou o Papa Bento XVI, neste sábado, aos participantes do congresso internacional promovido pela Fundação "Centesimus Annus – Pro Pontifice", reunidos na Universidade Gregoriana, em Roma, para discutir o tema "Capital social e o desenvolvimento humano".

    O Papa agradeceu a todos pelo serviço que prestam à Igreja e aos pobres, em várias partes do mundo, e lhes disse que o tema "O capital social e o desenvolvimento humano" oferece a chance de refletir sobre a necessidade, sentida por muitos, de promover o desenvolvimento global atento à promoção integral do homem.

    O desenvolvimento harmonioso é possível, se as opções econômicas e políticas considerarem princípios fundamentais tais como a subsidiariedade e a solidariedade. Assim, no centro de toda programação econômica, deve estar sempre a pessoa criada à imagem de Deus e por Ele indicada para velar e gerir os imensos recursos da criação:

    "Somente uma cultura comum de participação responsável pode permitir aos seres humanos sentirem-se ativos colaboradores no processo de desenvolvimento mundial, e não meros e passivos destinatários. O homem, a quem Deus, no Genesis, confiou a terra, tem o dever de fazer render os bens terrenos, comprometendo-se a utilizá-los para atender as necessidades de todos os membros da família humana".

    Em outras palavras, o homem deve administrar os recursos que Deus lhe deixou colocando-os à disposição de todos; evitando que os lucros sejam apenas para alguns e que formas de coletivismo o oprimam. O crescimento econômico não pode ser diferenciado da busca de um desenvolvimento integral, humano e social.

    A este ponto, o Papa recordou um trecho de sua encíclica Spe salvi: "As melhores estruturas só funcionam se numa comunidade subsistem convicções que sejam capazes de motivar os homens para uma livre adesão ao ordenamento comunitário".

    Assim, Bento XVI convidou os membros da Fundação a oferecerem sua reflexão como contribuição para a realização de uma justa ordem econômica mundial.

    "No último dia, no dia do Juízo universal, nos será questionado se usamos tudo o que Deus colocou a nossa disposição para atender as expectativas legitimas e as necessidades de nossos irmãos mais frágeis, especialmente os menores e mais necessitados", disse o Pontífice.

    No final do encontro, o Papa abençoou a todos, assegurando-lhes sua proximidade na oração.

    A fundação Centesimus Annus-Pro Pontífice foi instituída em 5 de junho de 1993, por desejo expresso de João Paulo II, no âmbito da Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma, para promover o estudo, a difusão e a aplicação da Doutrina Social da Igreja no setor profissional e empresarial.

    O encontro anual de seus membros, que se conclui hoje, é dedicado ao aprofundamento das noções de 'capital social' como conjunto de bens imateriais que geram crescimento econômico, desenvolvimento e bem comum. Hoje, todos participaram de uma missa celebrada pelo cardeal Attilio Nicora, presidente da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica, na Gruta de Lurdes, nos Jardins do Vaticano.

    O Conselho de Administração da Fundação Centesimus Annus-Pro Pontifice é composto por sete membros leigos, um deles designado pela Santa Sé e os outros seis por votação entre os membros do Conselho. O presidente atual e representante legal é o conde italiano Lorenzo Rossi di Montelera.

    Globalização precisa de Deus, diz Bento XVI

    Papa recebeu jovens universitários da Europa, a quem pediu a criação de «laboratórios de fé e cultura»
    Bento XVI defendeu este Sábado a importância de Deus para a nova cultura que surge na Europa e no mundo globalizado, assegurando que, nas universidades, é cada vez mais necessária a presença cristã, "verdadeiro motor do desenvolvimento".
    O Papa recebeu em audiência, no Vaticano, os participantes no encontro europeu dos universitários que se conclui este Domingo, 12 de Julho, sobre o tema "novos discípulos de Emaús. Como cristãos na universidade".
    "A nova síntese cultural que neste tempo se está a elaborar na Europa e no mundo globalizado precisa do contributo de intelectuais capazes de repropor nas aulas académicas o discurso sobre Deus, ou melhor, de fazer renascer aquele desejo do homem de procurar Deus", disse.
    A última encíclica papal, "Caritas in veritate", defende que "a religião cristã e as outras religiões só podem dar o seu contributo para o desenvolvimento, se Deus encontrar lugar também na esfera pública".
    Falando aos cerca de 1500 estudantes universitários de 31 países, congregados na Aula das bênções, Bento XVI defendeu que "trabalhar para o desenvolvimento do conhecimento é a vocação específica da Universidade e exige qualidades morais e espirituais cada vez mais elevadas, perante a vastidão e a complexidade do saber que a humanidade tem à sua disposição".
    Aos jovens, que o saudaram com entusiasmo por diversas vezes, o Papa deixou um apelo: "Tenho a certeza de que o vosso encontro destes dias em Roma poderá indicar novas etapas a percorrer, com um projecto mais orgânico que favoreça o envolvimento e a comunhão entre as várias experiencias já existentes em tantos países".
    "Vós queridos jovens - acrescentou - juntamente com os vossos docentes, contribuis na criação de laboratórios da fé e da cultura, partilhando a fadiga do estudo e da investigação com todos os amigos que encontrais na Universidade. Amai as vossas Universidades que são palestras de virtude e de serviço".
    Bento XVI assegurou que, na Universidade, a presença cristã é cada vez "mais necessária", já que, como em séculos passados, "a fé é chamada a oferecer o seu insubstituível serviço ao conhecimento, que na sociedade contemporânea é o verdadeiro motor do desenvolvimento".
    "Vós sois o futuro da Europa, chamados a investir os melhores recursos, não só os intelectuais, para consolidar a vossa personalidade e contribuir ao bem comum", disse aos universitários presentes.
    O I encontro europeu de estudantes universitários é uma iniciativa do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (CCEE). No dia 12, serão apresentadas as conclusões dos debates. A eucaristia de encerramento será presidida por D. Jean-Louis Bruguès, Secretário da Congregação para a Educação Católica.
    A iniciativa é organizada pelo secretariado de assuntos pastorais nas universidades do Vicariato de Roma, através de uma parceria com a Comissão da Catequese, Escola e Universidade (CSU) departamento de actividades universitária, que pertence ao CCEE.

    Globalização e Ética


    José Maria Rodriguez Ramos

    A ética deve ser a idéia orientadora para evitar que o processo globalizante não se tome mais uma arma de dominação de poucos países. Porém, cabe a pergunta: como a ética pode influenciar nações tão díspares para um mundo melhor?
    O tema crucial do processo de integração mundial são os valores que presidem o relacionamento internacional neste início de século e de milênio. O atentado ao World Trade Center surpreendeu o mundo. Após a fase inicial de estupor e revolta diante da tragédia, o desastre começou a ser esclarecido. Ao compasso das investigações sobre a ação terrorista, surgiram tentativas de explicação e a ética nas relações internacionais tornou-se o tema do momento.
    Inicialmente ganhou força a tese do “choque das civilizações” enunciada por Samuel Huntington em 1997. O futuro das relações internacionais estaria associado ao fator cultural. As culturas que impregnam as diversas civilizações entrariam em conflito em uma conjuntura de integração mundial. A globalização, de acordo com Huntington, contribuiu para esse cenário e tem a sua parte de responsabilidade: “a globalização incentiva e permite que gente como Bin Laden trame seus ataques ao centro de Manhattan, enquanto está em uma gruta do Afeganistão pobre”. (O Estado de S.Paulo, 28/10/2001, pág. A23). O ataque terrorista, na opinião de Huntington, restituiu ao Ocidente sua identidade comum.
    A interpretação dos ataques aos Estados Unidos levantou a questão de saber quais são os valores que presidem às diversas civilizações como elementos subjacentes à explicação dos acontecimentos e da história. É preciso esclarecer, entretanto, que o responsável pela tragédia não foi o mundo islâmico, mas apenas um grupo radical que não representa adequadamente o Islã. Como apontou Henry Kissinger, “a América e seus aliados precisam tomar cuidado para não apresentar esta nova política como choque de civilizações entre o Ocidente e o Islã. A batalha é contra uma minoria radical que macula os aspectos humanos manifestados pelo islamismo em seus períodos grandiosos” (Folha de S.Paulo, 20/11/2001, Especial, pág.6)
    O episódio das Torres Gêmeas, entretanto, alertou o mundo quanto à importância dos valores que presidem as culturas e civilizações. Ou seja, a ética nas comunicações, na economia, na política e na cultura é o elemento-chave para o futuro do mundo. Este é o fator fundamental que deve ser analisado na globalização.
     Antes de avançar nesse estudo é necessário indagar: há uma única ética correta, aplicável a uma determinada situação, ou a ética é passível de interpretação diversa em função de fatores circunstanciais? Mais: há valores universais, que se aplicam a todos os povos de todos os tempos, ou os valores éticos são relativos?
    O mundo presente vive mergulhado no relativismo ético. Sob a égide do relativismo, a ética torna-se subjetiva, sendo impossível chegar a qualquer conclusão objetiva e permanente. Esse é o grande dilema e limitação do mundo moderno: a ética esqueceu as suas origens como estudo filosófico, na Grécia clássica, sob a poderosa luz da inteligência de Sócrates.

    ÉTICA DA CONVICÇÃO X ÉTICA DA RESPONSABILIDADE

    Nas relações internacionais, por exemplo, o dualismo ético foi formulado por Max Weber ao distinguir entre uma ética da convicção e uma ética da responsabilidade: “toda a atividade orientada segundo a ética pode ser subordinada a duas máximas inteiramente diversas e irredutivelmente opostas. Pode orientar-se segundo a ética da responsabilidade ou segundo a ética da convicção” (Weber, 1968, pág. 113). O partidário da ética da convicção deve velar pela doutrina pura. Seus atos “visam apenas àquele fim: estimular perpetuamente a chama da própria convicção” (idem, pág. 114). A ética da responsabilidade, por sua vez, tem como guia as previsíveis conseqüências dos atos: “o partidário da ética da responsabilidade, ao contrário, contará com as fraquezas comuns do homem <...> e entenderá que não pode lançar a ombros alheios as conseqüências previsíveis da sua própria ação” (idem, págs. 113-114)
    Sob este ponto de vista, Weber afirma que os meios podem justificar os fins: “para alcançar fins «bons», vemo-nos, com freqüência, compelidos a recorrer, por um lado, a meios desonestos ou, pelo menos, perigosos, e compelidos, por outro, a contar com a possibilidade e mesmo a eventualidade de conseqüências desagradáveis” (idem, págs.114). A diferença entre essas duas éticas, tal como as resume Dahrendorf, consiste em que “a primeira abraça valores absolutos; é a moralidade dos santos. A segunda reconhece a complexidade das relações meios-fins; é a ética dos políticos” (1997, pág. 86).
    É possível conviver com as duas éticas? Tanto para Weber quanto para muitos políticos e teóricos das relações internacionais, sim. Para Dahrendorf, não; e explica: “a insistência na qualidade absoluta de determinados valores fundamentais foi, creio eu, a razão de ser da tese que apresentei em Homo Sociologicus. Nunca confie na autoridade, pois é possível usá-la de forma horrivelmente abusiva. É certo que há condições – e as vimos prevalecer em tantos países, durante este século – nas quais a «ética da convicção» é a única moralidade válida” (1997, pág. 87).
    É somente a partir de uma ética da convicção que a análise dos valores nas relações internacionais e, portanto, na presente conjuntura de globalização que atravessa o mundo, pode ser frutífera. É precisamente a ética que presidiu o pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles, na Grécia clássica.
     

    ÉTICA E VIRTUDES

    A partir do momento em que há um reconhecimento de que a ética não é relativa, é possível analisar quais os valores que devem estar presentes nos diversos aspectos da globalização. Estudar os valores presentes na globalização é analisar as motivações humanas. Muitas respostas foram dadas a esta questão, porém a proposta de Aristóteles na sua obra Ética a Nicômaco permanece atual e importante. Para Aristóteles, as pessoas atuam procurando um bem, sendo que o bem mais importante é a felicidade.
    É possível estabelecer uma ponte entre os valores da globalização e a obra de Aristóteles. Reconhecendo que há diversas opiniões sobre a felicidade, Aristóteles afirma que alguns colocam a felicidade no prazer, ou na riqueza, ou em outras coisas. A maioria das pessoas coloca a felicidade na riqueza e no prazer; porém, de acordo com o filósofo, nesse objetivo não reside a felicidade. Espíritos mais refinados põem a felicidade na glória, porém também não é nas honras que reside a felicidade. A felicidade se encontra na virtude. É na virtude que reside o fim do homem.
    Para quem coloca a felicidade na riqueza, a globalização econômica pode ser uma fonte de oportunidades. Para Aristóteles, a riqueza é um bem exterior necessário como um meio, pois é impossível fazer o bem quando faltam recursos; porém, não deixa de ser um meio e não um fim da vida humana.
    A glória da vida pública está associada ao poder político. Também não é este o fim da vida humana, de acordo com Aristóteles. A virtude é o verdadeiro fim do homem. É por essa razão que Aristóteles dedica a sua ética ao estudo da virtude: como definir e alcançar as virtudes, como meio para uma vida feliz. No processo de globalização, os fatores econômicos e políticos são importantes como meios para que as pessoas possam praticar as virtudes. A virtude que sobressai nesse processo é a justiça. E a esta virtude é que o filósofo grego dedica o livro V da sua obra.
    A justiça deveria presidir a evolução da globalização como um valor universalmente presente no processo. O reconhecimento do valor universal da justiça como virtude para todos e a ser praticada por todos seria um bom começo para o futuro dos âmbitos econômico e político. Entretanto, a prática da justiça pura e simples não eliminaria o fosso existente entre países nem superaria as limitações e dificuldades econômicas de países ou pessoas que carecem dos mínimos meios para a própria subsistência. É nesse ponto que surge um novo valor, não econômico, para amenizar e corrigir as distorções ou assimetrias promovidas pela globalização: a solidariedade.
    A solidariedade não se impõe. É um valor humano que vem de dentro. Somente a solidariedade pode ajudar a mudar o que a simples justiça não pode alterar. Nas últimas décadas, pari passu com a globalização, tem aumentado o número de organizações de voluntários, ONGs, instituições religiosas e entidades diversas que têm contribuído para sarar as feridas abertas da desigualdade. Ainda assim, um sexto da população mundial vive em países muito pobres. Há muito a ser feito e somente a partir dos valores é possível corrigir aquilo que a política e a economia, no novo mundo a caminho de uma maior integração, não conseguem solucionar de um modo satisfatório.
    São, portanto, os valores presentes nas civilizações os verdadeiros responsáveis pelo destino do futuro mundial nas próximas décadas e séculos. Se a justiça e a solidariedade prevalecerem sobre a riqueza e o poder, ainda há esperança para o nosso futuro comum.

    José Maria Rodriguez Ramos
    é doutor em Economia pela USP e Coordenador do curso de Ciências Econômicas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).