segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A doação de Constantino, o poder temporal dos Papas e as mazelas do passado

Marcos Rocha
Muitos têm dito erroneamente que o Estado Pontifício originou-se graças à ambição dos bispos de Roma, usando inclusive “documentos falsos” como a Doação de Constantino.
Este famigerado documento é um escrito onde o Imperador Constantino (306-337 d.C.) doa ao Papa São Silvestre (314-335 d.C.) terras e prédios dentro e fora da Itália, durante o quarto consulado do monarca (315). Este documento, declarado autêntico há tempos, era e é constantemente citado para afirmar o poder temporal dos papas.
Acontece que já no fim da Idade Média muitos já contestavam a autenticidade do documento, cujo autor é desconhecido.
Segundo o conteúdo da doação, o Imperador confessava sua fé, narrava que fora curado de lepra por intercessão do Papa antes de sua própria conversão, doava ao mesmo a autoridade sobre as comunidades cristãs do Oriente (Antioquia, Jerusalém, Alexandria e Constantinopla), entregava as igrejas do Latrão, de São Pedro e de São Paulo – fora dos muros de Roma -, terras situadas em diversos pontos do Império, como Judéia, Grécia, Trácia, Ásia Menor etc., e outorgava ao Papa a faculdade de elevar senadores do Império ao nível de sacerdotes.
O documento era ignorado até o século IX. Em Roma até 979 d.C. ninguém se referia ao documento – o que é muito estranho, pois sabemos que o mesmo fora “pretensamente” concebido em 315 d.C. e seria de imediata execução, logicamente. Em 1053 o Cardeal Humberto da Silva reivindicou a “Doação” para afirmar o primado do Papa. Lê-se não o primado espiritual, mas certamente e com mais evidência o “poder temporal dos Papas”.
Aí começa toda a contradição. Já em 1001 o Imperador Germânico Oto III rejeitou a veracidade do texto. Até o Imperador Sigismundo, em 1433, o documento era constantemente citado como autêntico. Nos debates medievais a “Donatio” era mencionada, sendo rejeitada muitas vezes e classificada como falsa. No século XIX ninguém mais levava a sério o referido escrito.
Ninguém atribui a qualquer Papa a autoridade da “doação”. Quem o fizer estará sendo falso diante de todas as evidências históricas. Antigamente não era incomum falsificar documentos com a finalidade de incutir certas idéias. Temos como exemplos os apócrifos gnósticos, propagando falsos evangelhos. Nos séculos XI e XII, por exemplo, inúmeros documentos falsos eram cultivados, produzindo difamação aos Papas, pois declaravam deposição de clérigos, excomunhões e encarceramentos.
Triste constatação. Falsificavam documentos para fazer mal às pessoas e ainda atribuíam à Igreja a autoria dos mesmos. De modo semelhante foi com a “Donatio Constantini”.
O Estado Pontifício foi fundado em 756 d.C., quando Pepino o Breve atendeu ao pedido de ajuda do Papa e debelou os Langobardos, que no século VIII ameaçavam invadir Roma e territórios próximos. O Papa Estevão II recorreu ao povo franco, que era governado não pelo rei, mas pelo mordomo do palácio real, Pepino.
Pepino teria reconhecido ao Papa o título de Soberano do Patrimônio de São Pedro. Isto –como já dito – teria ocorrido em 756 d.C., como expressão de estima dos cristãos ao Papa e não como efeito de trapaças e guerras de conquista. Tal episódio é honesto e consistentemente admissível.
Sobre o polêmico “poder temporal dos papas”, muitos povos da Europa Ocidental tinham cristãos monarcas, que se sentiam na obrigação de formar a Cidade de Deus, preconizada por S. Agostinho. Infelizmente esta união do Estado com a Igreja nem sempre foi benéfica. Muitos quiseram dominar a Mesma segundo seus interesses. Existiam as investiduras leigas, onde o senhor feudal nos séculos VIII-XI nomeava o bispo de seu feudo, por exemplo. Finalmente o Papa Gregório VII conseguiu remover esta prática maléfica, pois nem todos os ordenados eram cristãos preparados para tal vocação. No século X, uma família de Roma – Teofilacto, Marócia mãe, Marócia filha e sua irmã Teodora, tentaram dominar o Papado. A Inquisição também é um forte exemplo, pois nunca foi um tribunal meramente eclesiástico, porque o Estado agia sobre a Igreja, manipulando muitos casos famosos, como a condenação de Joana d`Arca, orquestrada pelos ingleses.
Ainda sobre as investiduras leigas, houve casos em que o Papa excomungou imperadores. Gregório VII excomungou Henrique IV da Alemanha em 1073 justamente porque o rei insistiu nestas investiduras.
Fora isso, a polêmica sempre continuará. Acusam, por exemplo, uma doação de Benito Mussolini em 1929, de 90 milhões, ao Papa. Na verdade, não houve doação, mas ressarcimento das perdas sofridas pela Igreja devido à unificação italiana, pois o território seria consideravelmente diminuído e necessitava de reformas e restaurações. No século XIX o Estado Pontifício foi absorvido pela unificação italiana e até 1929 deixou de existir, sendo restaurado em tamanho minúsculo – o Vaticano.
Apesar disso, a estada de São Pedro e o seu martírio em Roma foram comprovados por escavações ordenadas por Pio XII em meados do século XX. O primado de Pedro é certeza bíblia ( Mt 16,16-19; Lc 22,31s; Jo 21,15-17) e por ocasião dos já costumeiros debates seculares, a palavra do bispo de Roma (o Papa) era e continua sendo decisiva.
A Igreja não pode estar sujeita ao controle de alguma nação meramente humana. A Igreja apenas pede liberdade para pregar o Evangelho de Jesus a toda criatura. A Idade Média era cristã. Não suas práticas, mas as pessoas que naquela época viveram. Por isso, é natural que qualquer atitude errada e imoral fosse atribuída aos… cristãos. Desde os monarcas aos servos mais humildes, todos eram cristãos. Os monarcas, por exemplo, como seguidores de Jesus, necessitavam dos sacramentos como qualquer mortal; precisavam da Igreja para receber os meios de salvação.
O mais curioso é que os Bispos, por sua vez, reconheciam que o poder imperial, o poder dos monarcas, vinha de Deus. Haveria de existir organizações civis e ordem social para que a civilização pudesse continuar vivendo. Os Bispos também deviam obedecer às leis da nação onde viviam, mas isto não diminuía o fato de que os “imperadores” e “senhores” precisavam da Igreja para obter a salvação, o perdão, os sacramentos.
Por volta de 492-496 d.C., o papa Gelásio salienta de forma perfeita a divisão entre Estado e Igreja. Esta teoria – chamada “das duas espadas” (Lc 22,38) – foi então confirmada em plena idade Média pelo Papa Bonifácio VIII, na bula “Unam Sanctam”. A Igreja detinha o poder espiritual que, no ponto de vista ético, deve, caso seja necessário, julgar o poder secular. Isto é completamente racional e correto.
Por quê? Porque até um rei ou um presidente é um homem e, ao governar, toma atitudes humanas e, caso sejam antiéticas, podem e devem ser julgadas pelos sacerdotes instituídos por Jesus.
Conheça os dizeres do Papa Gelásio:
“Cristo, conhecendo a humana fraqueza, numa disposição grandiosa, em vista da salvação dos seus separou as esferas de competência de ambos os poderes em campos de atividade autônomos e dignidade bem distinta. Assim sendo, devem os Imperadores cristãos subordinar-se aos Bispos em assuntos da própria salvação eterna, devendo os Bispos, por sua vez, conformar-se às determinações imperiais no âmbito do domínio terreno. A tarefa espiritual deverá manter-se distante de todas as coisas mundanas e, em contrapartida, aquele que se ocupa das coisas temporais deverá abster-se da pretensão de querer dispor sobre as divinas. Com isto fica resguardada a autodeterminação das duas ordens de poder. Nem uma nem outra deverá afirmar com orgulho ser dona de ambas as competências. E cada qual se conformará com a esfera de ação que lhe é própria.”
Ou seja, estes dizeres datam de 492-496 d.C. Ou seja, atitudes posteriores ou contemporâneas que, infelizmente, colidem com estas determinações, são faltas, pecados, erros humanos. E errar é humano. Perdoar é divino.
Infelizmente, existe e sempre existirá erro humano dentro da Igreja. Tudo está previsto no Evangelho. O próprio Jesus afirmou que na Igreja haveria joio e trigo. E, pasmem, o joio permaneceria até o fim dos tempos. É justamente a presença do joio na Igreja Católica que demonstra que foi Cristo que a fundou e que a mantém viva, e não a façanha dos homens. Uma Igreja que existe até hoje e que é, segundo D. Estevão “acatada mesmo fora do ambiente cristão, isto se deve à Providência Divina”.
“15. Tendo eles comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes? Respondeu ele: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta os meus cordeiros. 16. Perguntou-lhe outra vez: Simão, filho de João, amas-me? Respondeu-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta os meus cordeiros. 17. Perguntou-lhe pela terceira vez: Simão, filho de João, amas-me? Pedro entristeceu-se porque lhe perguntou pela terceira vez: Amas-me?, e respondeu-lhe: Senhor, sabes tudo, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta as minhas ovelhas.” (Jo 21,15-17)
“31. Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como o trigo; 32. mas eu roguei por ti, para que a tua confiança não desfaleça; e tu, por tua vez, confirma os teus irmãos.” (Lc 22,31s)
“16. Simão Pedro respondeu: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo! 17. Jesus então lhe disse: Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que está nos céus. 18. E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. 19. Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.” (Mt 16,16-19)
“24. Jesus propôs-lhes outra parábola: O Reino dos céus é semelhante a um homem que tinha semeado boa semente em seu campo. 25. Na hora, porém, em que os homens repousavam, veio o seu inimigo, semeou joio no meio do trigo e partiu. 26. O trigo cresceu e deu fruto, mas apareceu também o joio. 27. Os servidores do pai de família vieram e disseram-lhe: – Senhor, não semeaste bom trigo em teu campo? Donde vem, pois, o joio? 28. Disse-lhes ele: – Foi um inimigo que fez isto! Replicaram-lhe: – Queres que vamos e o arranquemos? 29. – Não, disse ele; arrancando o joio, arriscais a tirar também o trigo. 30. Deixai-os crescer juntos até a colheita. No tempo da colheita, direi aos ceifadores: arrancai primeiro o joio e atai-o em feixes para o queimar. Recolhei depois o trigo no meu celeiro.” (Mt 13,24-30)
Impressionante, não?
Paz e Bem!
FONTE DE PESQUISA: revista Pergunte e Responderemos nºs 534 e 542, de D. Estevão Bettencourt.

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