terça-feira, 12 de outubro de 2010

O imperialismo internacional do dinheiro

A ATUALIDADE DO JUIZO DE PIO XI E PAULO VI
Em 1931, por ocasião dos quarenta anos da Rerum novarum, saía a encíclica social de Pio XI. O realismo e a atualidade de uma análise sobre o infeliz predomínio do aspecto financeiro sobre o produtivo

de Lorenzo Cappelletti




“Neste momento há também grande preocupação global quanto a um neocapitalismo feito apenas de capitais, sem nenhuma referência a indústrias e bens agrícolas”, declarava em 12 de setembro nosso diretor ao jornal Avvenire, quando uma nuvem de poeira e destroços ainda pairava sobre Nova York. Naquele mesmo momento, idêntica preocupação aflorava no início de um amplo artigo escrito para nossa revista pelo professor Caloia, presidente do Istituto Opere di Religione - IOR, o banco do Vaticano (30Giorni n. 9, pp. 34-43): “Estamos às voltas com o problema das operações financeiras em que o dinheiro é empregado apenas para produzir mais dinheiro, sem dar uma contribuição à economia real. [...] O bom funcionamento da economia global tem de ser considerado mais importante que a excessiva liberdade de algumas centenas de hábeis operadores (financeiros) internacionais”. Eugenio Scalfari, no editorial do jornal la Repubblica de 16 de dezembro passado (quando a economia argentina não havia ainda quebrado) parece assumir o tema como seu: “A economia transformou-se em finanças e as finanças globalizaram a economia. [...] O dinheiro tem extrema mobilidade, transfere-se num instante de um país para outro, de um continente para outro, com a velocidade da luz”. De vários lados e em diferentes momentos, portanto, vêm notas de uma mesma análise da situação que o mundo globalizado e sua economia atravessam.
Ninguém, pelo que vemos, muito menos no ambiente eclesial, achou ou considerou oportuno citar a propósito dessa situação a encíclica Quadragesimo anno, que em 2001 celebrava seu septuagésimo aniversário. Talvez se duvide da legitimidade de seu nascimento, que se dá em plena ditadura fascista na Itália. Ou talvez o septuagésimo aniversário da Quadragesimo anno e o centésimo décimo da Rerum novarum sejam consideradas datas que já não merecem especiais celebrações. De fato, novos documentos neste campo provavelmente gerariam inflação. Quanto à primeira dúvida, porém, é preciso distinguir o nascimento da Quadragesimo anno a partir das idéias um tanto quanto liberais e da pena não servil de jesuítas alemães e franceses da adoção que dela fizeram regimes não igualmente abertos (leia-se: Portugal, de Salazar, e Áustria, de Dollfuss).
Nosso objetivo, em todo caso, não é sublinhar que alguém que completa setenta anos foi esquecido. Não queremos passar-lhe a palavra para que a encíclica nos fale de si mesma, para que se apresente demasiadamente conservada e imaculada, como acontece com freqüência nos relatos autobiográficos. O que queremos é evidenciar, por meio de testemunhos daqueles que a conhecem, o realismo que demonstrou em seu tempo a respeito do infeliz predomínio do poder econômico sobre o poder político, e do igualmente infeliz predomínio do aspecto financeiro sobre o produtivo. E não apenas isso. Sublinhamos como retomá-la favorece totalmente a compreensão de nosso presente, que muitas vezes, no ambiente eclesial, alimenta-se muito mais de antropologias filosóficas e teológicas que da observação dos fatos humanos.

As três partes da encíclica
Em primeiro lugar, porém, é preciso admitir que a Quadragesimo anno não foi uma encíclica qualquer. Os comentários a ela, tanto nas obras que lhe foram especificamente dedicadas quanto nas de caráter geral, reconhecem que, se existe uma doutrina social cristã, ela se deve substancialmente não tanto à Rerum novarum quanto à Quadragesimo anno. Edoardo Benvenuto, numa obra muito interessante, afirma que esta, “caso único em toda a história do magistério pontifício de temática social”, constitui a “fundação orgânica de uma doutrina. [...] Goste-se ou não, essa é a doctrina socialis Ecclesiae, não mais vaticinada mediante repreensões, admoestações e previsões, como acontecera anteriormente, mas exposta claramente, seguindo uma articulação lógica, com premissas, teses e corolários” (Il lieto annunzio ai poveri. Bolonha, EDB, 1997, p. 124). E explica com argúcia (cf. ibidem, pp. 103-111) que a Quadragesimo anno pretende apresentar-se em perfeita continuidade com o magistério de Leão XIII, a cuja exaltação dedica toda a sua primeira parte (nn. 1-40), justamente por poder inovar livremente.
Os temas e as categorias fundamentais da doutrina da Quadragesimo anno são expressos na sua segunda parte (nn. 41-98), onde se fala de propriedade, capital, trabalho, salário, até chegar a considerar a necessária reforma das instituições a partir de uma valorização do princípio de subsidiariedade e daquela que deveria ser a diretriz de toda a vida econômica: a justiça social. No final dessa parte (nn. 91-96) aparecem as duas páginas que ficaram famosas não apenas porque escritas em italiano pelo Papa (“um dos raros casos em que a redação de um texto de encíclica é do próprio papa”, escreve padre Oswald von Nell-Breuning, o principal redator da encíclica, em suas memórias, publicadas em Humanitas em 1971), mas sobretudo porque, mesmo com críticas, reconheciam as vantagens do sistema corporativo que acabara de ser introduzido pelo regime fascista. Como muitas vezes acontece quando a autoridade eclesiástica intervém diretamente em re politica ou oeconomica, assiste-se a uma heterogênese dos fins. De fato, essa captatio benevolentiae não serviu para aplacar a irritação de Mussolini, que “entendeu a encíclica como uma crítica tão desfavorável a ele que desencadeou sua ira contra as organizações católicas”, escreve o mesmo Nell-Breuning.
Ao lado da reforma das instituições, a encíclica julga necessária, para a instauração de uma ordem social mais adequada, a reforma dos costumes, à qual é dedicada a terceira e última parte (nn. 99-149). Parte que, além do mais, extrai seu título das mudanças que se deram no campo sócio-econômico desde a época de Leão XIII. Naturalmente, a análise gira em torno da reforma dos costumes, mas parece-nos significativo que a encíclica considere necessário principalmente colocar os remédios, num diagnóstico não apressado do novo cenário sócio-econômico.
O diagnóstico
Escrevia de imediato La Civiltà Cattolica (II, 507), ao apresentar o texto da encíclica que acabara de sair: “O mérito totalmente próprio do novo documento de Pio XI está no diagnóstico que, com a segurança do clínico experimentado, expõe do atual regime econômico”. Quase quarenta anos depois, tendo mudado os tempos e o clima, e o próprio autor do juízo, tal juízo era novamente frisado: “É impressionante tudo o que há de novo e até ousado na encíclica, que se mostra, em várias passagens, muito consciente dos problemas do momento” (Roger Aubert, no livro coletivo Pio XI nel trentesimo della morte, p. 245).
Nós nos deteremos, portanto, no diagnóstico, principalmente no especial destaque que se dá ao problema financeiro, pois, paradoxalmente, alguns dos elementos desse diagnóstico são mais atuais que as propostas feitas claramente pela encíclica. Não por acaso, quando Paulo VI, na encíclica Populorum progressio, da Páscoa de 1967, quis fazer referência explícita à Quadragesimo anno, não se referiu a sua estrutura ou a suas soluções, mas justamente a seu diagnóstico, às “novas condições da sociedade”, sobre as quais, dizia, “infelizmente [...] construiu-se um sistema que [...] conduziu à ditadura denunciada com razão por Pio XI, como geradora do ‘imperialismo internacional do dinheiro’”.
O diagnóstico da terceira parte não contém apenas formulações duradouras como a citada, mas também distinções importantes, que obrigam a serem mais cautelosos aqueles que dizem que a Quadragesimo anno condena sem apelação capitalismo e socialismo. Sobretudo quando o leitor se mantém fiel à letra. Padre Nell-Breuning escrevia que “para a explicação de um documento do magistério, não importa nem o que o redator do esquema pensou, nem o que pensou o titular do próprio magistério, mas exclusivamente o que o teor verbal significa segundo os princípios gerais da interpretação”.
Bem, se o socialismo é condenado mais de uma vez na encíclica, nela também se lê que, em sua forma moderada, este “tende para as verdades que a tradição cristã sempre solenemente ensinou e delas em certa maneira se aproxima; porquanto é inegável que as suas reivindicações concordam às vezes muitíssimo com as reclamações dos católicos que trabalham na reforma social” (n. 113). Tanto que padre Chenu, num texto muito vivo editado pela Queriniana em 1977, pergunta-se o que poderia motivar a grande severidade que se seguiu, “depois da constatação de notáveis convergências” (La dottrina sociale della Chiesa, p. 30).
Do regimen capitalisticum, por sua vez, afirma-se que “de per si não é condenável” (n. 101), não sendo “de sua natureza [...] vicioso” (ibidem). Pelo contrário, diz-se que ele é acompanhado por “vantagens” (n. 103). A própria livre concorrência é definida “justa e vantajosa”, “dentro de certos limites” (n. 88). Mas alerta-se para as degenerações monopolistas, fruto paradoxal, mas “natural” (natura sua), dessa livre concorrência quando se torna infinita (n. 107), ou seja, “fora de qualquer controle da política”, como se poderia traduzir, sem trair Pio XI, o papa da “caridade política” (cf. discurso à Federazione Universitaria Cattolica Italiana - FUCI de 18 de dezembro de 1927). A infinita liberdade de concorrência, de fato, só permite sobreviverem “os mais fortes, isto é, ordinariamente os mais violentos competidores e que menos sofrem de escrúpulos de consciência” (n. 107).
Um aspecto dessa degeneração é o “despotismo” que se torna “intolerável naqueles que, tendo em suas mãos o dinheiro, são também senhores absolutos do crédito e por isso dispõem do sangue de que vive toda a economia, e manipulam de tal maneira a alma dela, que não pode respirar sem sua licença” (n. 106). “Essa é a passagem mais incisiva da encíclica”, escreve padre Nell-Breuning na página 186 de seu comentário à encíclica publicado em Colônia em 1932 e depois várias vezes reeditado. Mas ele se apressa em precisar que “não se deve ler aí o que não está escrito. Nessa passagem identifica-se uma situação que é condenada como desenvolvimento defeituoso [...], um erro do sistema, que aflige a economia capitalista atual e que se deseja com todas as forças eliminar” (ibidem).
Portanto, o sistema capitalista é distinto de suas degenerações. Além disso, ao se dizer que o capital financeiro é tão necessário quanto o sangue à economia capitalista, esse mesmo capital não é banido por princípio. Critica-se a falta de regulamentação de seu fluxo, justamente porque em sua circulação reside a vida ou a morte das articulações do organismo econômico. Por isso, não pode ser deixado ao arbítrio de poucos.
A bem ver, não há muito que acrescentar, a não ser que hoje a informática tornou o sangue mais virtual, tornou enormemente mais rápidas suas mudanças de fluxo e mais invisíveis os poucos que o controlam. E, portanto, muito mais urgente o tratamento.

Aprofundamento do diagnóstico
De certa forma, fazem parte da análise oferecida pela Quadragesimo anno também os interessantes nn. 130 e 132. De fato, depois de ter dito, no n. 128, com uma citação extraída da Rerum novarum, que se deve prover o retorno “à vida e às instituições cristãs”, no número seguinte a encíclica afirma que “tais são hoje as condições da vida social e econômica, que se torna muito difícil a uma grande multidão de homens ganharem o único necessário, a salvação eterna”. Não se reprova, nem se prevê, nem se fazem projetos sobre a pele dos outros: procura-se entender. É interessante, neste sentido, que padre Chenu, delineando o quadro no qual se coloca a encíclica, sublinhe que Pio XI recebe positivamente os efeitos da emancipação da Ação Católica de uma “eclesiologia totalitária tanto na sua gestão interna quando no engajamento dos cristãos na vida econômica e social” (cf. La dottrina sociale, p. 21) e que começa a ver com bons olhos “o retorno a uma estratégia que não parta do alto, mas de uma situação concreta, marcada por conjunturas diferentes e variáveis” (ibidem). Vislumbram-se menções a essa estratégia na parte final da encíclica (do n. 138 até o fim).
O número 131 também dá mostras de um idêntico realismo compreensivo, quando afirma que os desejos desordenados da alma, ou seja, a sede de riqueza e bens materiais, são um “triste efeito do pecado original”. E, em segundo lugar, que essa “fragilidade humana” encontra incentivos “ainda mais numerosos” no moderno sistema econômico. Por outro lado, não é tanto a modalidade de produção do sistema econômico moderno que é vista como ocasião de pecado quanto a “facilidade dos lucros, que oferece a anarquia do mercado” e “leva muitos a darem-se ao comércio, desejosos unicamente de enriquecer sem grande trabalho; os quais, com desenfreada especulação, levantam e diminuem os preços a capricho da própria cobiça e com tal freqüência que desconcertam todos os cálculos dos produtores”. Eis novamente estabelecida uma hierarquia de responsabilidades entre um sistema financeiro carente e a produção, ainda mais por definir-se, números à frente, legítimo “aos que se empregam na produção, aumentar justa e devidamente sua fortuna; antes a Igreja ensina ser justo que quem serve a sociedade e lhe aumenta os bens se enriqueça também desses mesmos bens conforme a sua condição, contanto que isto se faça com o respeito devido à lei de Deus e salvos os direitos do próximo, e os bens se empreguem segundo os princípios da fé e da reta razão” (n. 135).
Outras duas menções dão boas provas do realismo da Quadragesimo anno. Postas como estão próximo ao final dessa longuíssima encíclica (também nisso, infelizmente, precursora), poderiam facilmente ser contadas entre as fórmulas de cortesia: por um lado a afirmação, muito antes dos tempos da nova evangelização, e portanto ainda em tempo, de um mundo que já “quase recaído no paganismo” (n. 140); por outro lado, a preocupação de que essa nova/antiga ordem das coisas atordoe não a Igreja enquanto tal, em sua dimensão meta-histórica, mas, perturbe “as leis da natureza, não menos que as de Deus” (n. 143), seja danoso para muitas almas: “A Igreja de Cristo, alicerçada na rocha inabalável, nada tem que temer por si, pois sabe muito bem que as portas do inferno não prevalecerão contra ela; e uma experiência de vinte séculos prova-lhe que das tempestades mais violentas sai cada vez mais forte e coroada de novos triunfos. Mas o seu coração de Mãe estremece de horror ao pensar nos males sem número, em que estas tempestades afogariam milhares de homens e mais ainda nos gravíssimos danos espirituais, que daí resultariam para a ruína de tantas almas resgatadas com o sangue de Cristo” (ibidem).


De Pio XI a Paulo VI
Concluíndo, se voltarmos à abertura da segunda parte, onde com grande respeito pela autonomia dos campos, Pio XI diz-se legitimado ao tratar, no campo econômico, só do que tem relação com a moral, e não dos aspectos técnicos da economia, tendo esta seus próprios princípios e leis, que devem ser investigados segundo a razão (cf. n. 41), ao menos pelas premissas dessa parte, damo-nos conta de que também a parte dedutiva da encíclica pretendia evitar tomar partido por um ou outro sistema. Se papa Pio tivesse posto fé até o fundo nesse princípio, e não confiado por um instante em intuições políticas que não necessariamente competem ao magistério (“hoje estou firmemente convencido de que Pio XI não compreendeu o fenômeno do fascismo, que lhe faltavam as categorias sociológicas e políticas para avaliá-lo”, escrevia padre Nell-Breuning em 1971, sublinhando o “não”) talvez não tivesse acrescentado as duas páginas sobre a conveniência do sistema corporativo italiano. Paulo VI, na carta apostólica Octogesima adveniens, de 1971, retomaria o princípio e extrairia suas consequências. Diante da diversidade das situações de seu tempo, dizia: “Torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição nossa, nem mesmo a nossa missão” (n. 4). Cabem aos fiéis leigos, continuava, tanto a análise quanto as escolhas e o empenho pela obra de transformação social, política e econômica. “A doutrina social da Igreja [...] não intervém para autentificar uma estrutura estabelecida ou para propor um modelo pré-fabricado” (n. 42).
Em tempos ainda mais próximos de nós, se fosse levada em conta a indicação que vem da história do próprio ensino social da Igreja talvez se tivesse sido mais cauteloso ao exaltar os ideais de revolução econômico-políticas que, em pouquíssimo tempo, revelaram-se ideais só para a proliferação da criminalidade internacional.

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