segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Laicidade e Laicismo


Por Francisco Faus
Apresentamos a seguir um texto com subdivisões que poderá ser útil como guia para debate em reuniões de aprofundamento sobre o tema.
I. COISAS QUE ACONTECEM

1. Vamos começar lembrando alguns fatos mais ou menos recentes, como ponto de partida para uma reflexão esclarecedora sobre temas de importância atual.

2. Quando foi levantada e remetida ao Supremo Tribunal Federal a questão da legalidade do aborto de fetos anencéfalos, houve declarações de autoridades governamentais (o então ministro da saúde, Humberto Costa; Nilcéia Freire, em defesa dos “direitos da mulher”, etc.), afirmando que esse assunto devia ser estudado “exclusivamente como questão de saúde pública, e não do ponto de vista ético” (depois veremos o tipo de ideologia que está por trás dessa expressão).

3. O mesmo critério foi defendido quando veio à tona o tema das experiências com células-tronco embrionárias, rejeitando a oposição da CNBB, e de muitos outros, como intromissão indevida da Igreja e da religião em assuntos científicos e em decisões de um Estado laico. As críticas, na grande imprensa, chegaram a ser mordazes, ofensivas para a Igreja, para os católicos e para os fiéis de outras crenças que afirmavam que um embrião é mesmo uma vida humana intocável, protegida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU e pela Constituição brasileira.

A Igreja foi e continua a ser agredida com acusações de ser “intolerante”, “medieval” e, sobretudo, uma “eterna inimiga da ciência”, que obstruiria a pesquisa científica e a reflexão racional em nome da fé e dos dogmas religiosos. Com expressões cheias de sarcasmo, quer-se repisar a velha calúnia iluminista de que a fé seria inimiga da ciência e do progresso, e, portanto, inimiga do homem (da saúde, da cura de doenças, da liberdade, etc.).

Ninguém falou, porém, do cinismo com que quase toda a mídia silencia e encobre deliberadamente os numerosos progressos e conquistas – não contestados por nenhuma religião nem ética – que se estão alcançando com células-tronco adultas. Quando o jornal ou a televisão falam de uma cura obtida mediante células-tronco adultas, só falam, em geral, de “células-tronco”, deixando no ar o equívoco que leva inconscientemente o leitor a pensar que, sem dúvida, se trata das tão defendidas células embrionárias.

4. A agressividade no assunto das células-tronco embrionárias tornou-se patente numa Roda Viva de junho, na TV Cultura de São Paulo (também, como é sabido, em artigos de revistas semanais e grandes jornais). Da Roda Viva participavam biólogos, juristas, jornalistas. Sintetizando muito o acontecido, o “moderador” desse “debate”, abandonando a necessária isenção, bandeou-se claramente para o lado dos que defendiam o uso dos embriões para pesquisa. Por isso, cortou, indignado, a fala dos que pretendiam provar, com argumentos racionais e científicos (não religiosos) que essa pesquisa é ilícita. Alegava o moderador que, nesse programa, não se debatiam opiniões religiosas, nem éticas (que ele identificava com as religiosas), mas científicas (e esse caráter “científico”, só o reconhecia às opiniões dos partidários de manipular e eliminar o embrião para pesquisa). Diante dessa atitude, os representantes de outras opiniões sentiram-se amordaçados e desistiram de debater.

O grupo anti-ética – que dizia falar só em nome da liberdade da pesquisa científica – não soube depois como responder a algumas perguntas fundamentais, como a de qual o momento em que começa uma vida propriamente humana, uma vez que o embrião, desde o primeiro instante da sua existência, não é um simples pacote de células, mas um ser vivo. Desde que seja mantido vivo e alimentado, possui tudo quanto é necessário para mostrar-se um único e mesmo ser humano desde o momento da concepção até aos 80 ou mais anos, até o fim da vida.

Uma pesquisadora – que, num dos seus livros, afirmava que a vida humana se inicia a partir da fecundação do óvulo – não soube responder a essa pergunta, mas, com ar de tolerante condescendência (sabendo que contava com o apoio de toda a mídia) respondeu dizendo que tem de ser a sociedade quem “determine”, por maioria de opinião dos legisladores (como numa espécie de “definição dogmática conciliar”?), quando é que começa mesmo a vida. Sem recorrer a nenhum critério objetivo e racional – nem científico, nem filosófico –, aduziu como “prova” dessa sua afirmação o fato de que, conforme os países, as leis aprovadas pelos respectivos legislativos fixaram critérios diferentes para definir quando se produz a morte clínica e, em conseqüência, podem ser extraídos órgãos para transplante (extraídos do que cada “parlamento” defina dogmaticamente como “cadáver”, sem critério científico fixo).

Alguém comentou que isso lembrava as posições arbitrárias do nazista Mengele, que usou seres humanos como cobaias nos campos de concentração. A resposta da cientista foi que o povo alemão, na altura, era enganado pelos seus governantes e não teria aprovado esse procedimento. Em boa lógica, devia subentender-se, portanto, que se esse povo – através dos seus representantes – aprovasse as pesquisas científicas de Mengele, ele estaria certo. Veremos adiante que esta é exatamente a posição que defendem os que, auto-afirmando-se “avançados”, retrocedem até anos 30 do século passado, até a barbárie nazista, ainda que não queiram reconhecer o “mengelismo” evidente das suas posições.

5. Mais um fato relativamente recente. Nos EUA, no estado do Texas, foi proposto que se retirasse o texto dos Dez Mandamentos, que estava afixado à parede de certos edifícios públicos, seguindo um costume antigo. Alegava-se que era um símbolo religioso, incompatível com o caráter laico do Estado. Parece que a proposta não foi adiante, a não ser em parte. Por essa mesma razão, na França, as meninas muçulmanas foram proibidas de usar o véu tradicional islâmico, e na Alemanha propôs-se proibir as freiras de levar o hábito nas escolas e repartições públicas (pois o Estado laico é incompatível com “símbolos religiosos”). Não ficaria proibido, porém, em nenhum desses casos, que as alunas fossem à escola, se o quisessem, em roupas sumaríssimas, ou com “uniforme” punk, ou com a vestimenta estereotipada das bandas de rock-satânico, ou com símbolos ostensivos de diversas superstições esotéricas, etc., etc.

6. Será que tudo isso são apenas posições de alguns grupos pequenos e clamorosos, ou simples confusões, brigas de opiniões? Não. Em todas essas posições ideológicas, que visam “neutralizar” (como explicitaram os representantes da ONU, autores da Carta da Terra) a religião e a ética cristã (as “religiões abraâmicas”, como dizia também explicitamente a queniana prêmio Nobel da Paz de 2005), há uma coerência plena, baseada numa ideologia bem definida, que se deseja impor a todos os países, com força normativa, através dos organismos da ONU e de grupos internacionais e nacionais de pressão, declaradamente anti-cristãos. (Ver o artigo Globalização, religiões e Igreja, no site www.presbiteros.com.br/artigos). Por isso, vale a pena tentar ver claramente qual é essa ideologia. E, para tanto, será necessário esclarecer a diferença entre laicidade e laicismo, e esclarecer também aspectos fundamentais dos conceitos de pluralismo e democracia.


II. LAICIDADE E PLURALISMO

(Boa parte das idéias que se apresentam daqui até o final desta palestra estão extraídas ou inspiradas no Compêndio da doutrina social da Igreja, preparado pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz, editado pelas Paulinas, São Paulo, 2005. Quando se indica entre parênteses um número, trata-se a um dos parágrafos numerados desse excelente Compêndio. O Compêndio, nestas questões, remete constantemente à “Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política”, da Congregação para a Doutrina da Fé, 24.11.2002).

1. Entende-se por laicidade a distinção entre a esfera política e a religiosa. Chama-se “Estado laico” aquele que não é confessional, isto é, que não adotou – como era comum em séculos passados – uma religião como religião oficial do Estado (como hoje acontece nos países islâmicos). A Igreja considera essa distinção como um “valor adquirido e reconhecido pela Igreja”, que “faz parte do patrimônio da civilização...” (571).

2. A laicidade do Estado fundamenta-se na distinção entre os planos secular e religioso. Entre o Estado e a Igreja deve existir, segundo o Concílio Vaticano II, um mutuo respeito pela autonomia de cada parte.

3. O princípio de laicidade comporta, portanto, em primeiro lugar, o respeito de todas as confissões religiosas por parte do Estado, o qual deve “assegurar o livre exercício das atividades cultuais, espirituais, culturais e caritativas das comunidades dos crentes. Numa sociedade pluralista, a laicidade é um lugar de comunicação entre as diferentes tradições espirituais e a nação” (572).

4. O princípio sadio da laicidade pressupõe:

a) independência (não-dependência) do Estado em relação a qualquer igreja ou comunidade religiosa, e também a independência em relação a posições estritamente religiosas (um credo, um ritual, etc.); da mesma forma, abrange a não-intervenção do Estado em assuntos estritamente religiosos, de competência exclusiva das igrejas e comunidades (antigamente, por exemplo, era o Estado que punia os hereges, tanto nos países católicos como nos países protestantes);

b) o respeito, por parte do Estado, do direito à liberdade religiosa, sem outros limites que a ordem pública. Desde que a ordem pública não seja afetada (com tumultos, brigas, mortes, condutas imorais, privação de liberdades fundamentais, etc.), as confissões religiosas gozam da liberdade reconhecida pela Declaração dos Direitos Humanos da ONU, de 10.12.1948, art. 2, 1: “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito inclui (...) o direito de manifestar a sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado, por meio do ensino, da prática, do culto, etc.”.

Também a Declaração Dignitatis Humanae (n. 4) do Concílio Vaticano II afirma o direito à liberdade religiosa das diversas confissões religiosas: direito ao culto público, à formação dos seus fiéis, à promoção de instituições conformes com seus princípios religiosos; o direito de não serem impedidas no ensino e profissão pública da sua fé, de palavra ou por escrito; e o direito de estabelecer associações (educativas, culturais, caritativas, sociais, etc.).

5. A laicidade, bem entendida, não pode significar, porém, que os católicos e outros crentes devam abster-se de basear na “lei moral” a sua atuação social e pública: a defesa do valor da vida humana, da família, da educação, da justiça social, etc. É importante ter em conta que há uma ética, uma moral natural, aprofundada ao longo de milênios já pelos filósofos pagãos, que não é religiosa nem constituída por dogmas de fé. É racional, é a sabedoria acumulada ao longo dos milênios pelos sábios sobre os temas filosóficos mais importantes da “antropologia”; e as suas conclusões racionais são válidas para os crentes e não crentes que admitam usar a razão (ver, abaixo, n. IV.4). Como recorda o Compêndio de doutrina social, “a laicidade, de fato, significa, em primeiro lugar, a atitude de quem respeita as verdades resultantes do conhecimento natural que se tem do homem que vive em sociedade, mesmo que essas verdades sejam contemporaneamente ensinadas por uma religião específica, pois a verdade é uma só. Buscar sinceramente a verdade, promover e defender com meios lícitos as verdades morais concernentes à vida social – a justiça, a liberdade, o respeito à vida e aos demais direitos da pessoa – é direito e dever de todos os membros de uma comunidade social e política” (571). Ver Nota doutrinal da Congregação para a Doutrina da Fé, n. 6.

6. A separação entre Igreja e Estado, a “laicidade” do Estado, não significa, pois, que o Estado negue à Igreja o direito e o dever de contribuir para o bem da sociedade (em assuntos não estritamente “religiosos”), ou que impeça os católicos de terem as suas opiniões, de defendê-las e de cumprir com a sua responsabilidade e o seu direito de participar na vida pública, como qualquer cidadão. Um Estado que não respeitasse um espaço para a Igreja na sociedade, ou negasse o direito dos católicos de expressar – como qualquer outro cidadão – as suas opiniões e opções políticas pessoais, teria acabado com a democracia, cairia no sectarismo, no totalitarismo ideológico e prático.

7. Como dizia o secretário das relações da Santa Sé com os Estados, o arcebispo Giovanni Lajolo, “quando a laicidade dos Estados é como deve ser, expressão da autêntica liberdade, favorece o diálogo e, portanto, a cooperação transparente e regular entre a sociedade civil e a religiosa, a serviço do bem comum, e contribui para a edificação da comunidade internacional sobre a base da participação e não sobre a exclusão e o desprezo”.

8. Como se vê, a autêntica e sadia laicidade, defende e respeita o sadio pluralismo (que nenhum católico culto confunde com o indiferentismo religioso). Cada cidadão pode expor e defender – merecendo o respeito de todos – as suas próprias opiniões políticas, sociais, etc. (sejam ou não coincidentes com crenças religiosas ou convicções ideológicas, ou sejam apenas preferências particulares). É perfeitamente compatível (e sumamente desejável) a fidelidade à identidade própria de cada um e aos seus “valores” de vida (p. ex. a identidade católica), unida, ao mesmo tempo, à disponibilidade respeitosa para o diálogo com todos. Esse é o verdadeiro pluralismo na política (569).


III. O LAICISMO

1. Completamente diferente da laicidade é o laicismo, ideologia que hoje, em todo o mundo ocidental – e cada vez mais no Brasil – pretende se impor como a única admissível. Tem trânsito livre na grande imprensa e na mídia mais poderosa, que é seu porta-voz (o seu “magistério”) e, ao mesmo tempo, é o “tribunal da inquisição laica”, que fustiga, ridiculariza e “excomunga” todos os que não comungam com esse pensamento.


2. Em que consiste o laicismo?

Como dizia João Paulo II (24.01.2005), é “uma ideologia que leva gradualmente, de forma mais ou menos consciente, à restrição da liberdade religiosa, até promover o desprezo ou a ignorância de tudo o que seja religioso, relegando a fé à esfera do privado e opondo-se à sua expressão pública”.

E, em 12.01.2004: “Um reto conceito de liberdade religiosa não é compatível com essa ideologia, que às vezes se apresenta como a única voz da racionalidade (prestem atenção a isso, pois daqui a pouco veremos as contradições dos laicistas neste tema da “racionalidade”). Não se pode cercear a liberdade religiosa sem privar o homem de algo que é fundamental”.

3. Em discurso aos bispos dos EUA, em 04.12.2004, João Paulo II sublinhava, além do anterior, que os leigos católicos devem ter clara a sua missão de “estender o Reino de Deus através da sua atividade secular, de sorte que o mundo se impregne do espírito de Cristo e alcance mais eficazmente o seu fim, na justiça, na caridade e na paz (...). Mesmo respeitando plenamente a separação legítima da Igreja e do Estado (...), a catequese deve também deixar claro que, para o fiel cristão, não pode haver separação entre a fé, que é para ser vivida e posta em prática, e o seu compromisso de participação total e responsável na vida profissional, política e cultural”.

4. Um Estado que queira respeitar as convicções dos cidadãos laicistas, pela mesma razão (se quer praticar honestamente o pluralismo democrático) é obrigado a respeitar as convicções dos cidadãos cristãos. Caso contrário, imporia um dogma laico e violaria o princípio da igualdade de direitos.


IV. AS FALÁCIAS DO LAICISMO

1. O laicismo quer silenciar os cristãos, afirmando que eles pretendem impor ao Estado posições, soluções ou proibições que teriam como base apenas a fé, coisa que seria incompatível com o Estado laico, que não poderia adotar soluções “religiosas”, mas apenas “racionais”. Não hesitam em contrapor, como incompatíveis, razão e fé.

2. Aí, insistimos, há uma evidente falácia. Porque, mesmo que os cristãos, cumprindo com o seu dever de consciência, defendam posições em matérias humanas e sociais baseadas nas suas convicções “cristãs”, um Estado democrático e pluralista – é preciso repeti-lo, frisá-lo usque ad nauseam – deveria respeitar essas posições; da mesma forma que esse Estado acha lógico e necessário respeitar as opiniões de cidadãos que defendem as suas convicções marxistas (convicções que muitos outros cidadãos acham falsas e próprias de uma verdadeira “religião materialista”), ou as convicções hedonistas, ou pan-sexualistas, etc.

Como é sabido de todos, se algum “ecologista” ou seguidor do New Age defende que os ratos e as baratas têm os mesmos ou até maiores direitos que os homens, nenhum Estado laico vai desclassificá-lo; pelo contrário, reconhecer-lhe-á o direito inalienável à liberdade de pensamento e de expressão, de modo que será punido qualquer um que desrespeite essa opinião ou a impeça de ser defendida democraticamente (e isso será assim, mesmo que esses ecologistas adotem manifestações públicas ofensivas para outros grupos sociais e até ações violentas). Por sinal, houve uma recente manifestação em São Paulo, na Av. Paulista, contra a vivisseção de animais para pesquisa médica; mas, que se saiba, ninguém ali se opôs à vivisseção de fetos de até vários meses no ventre materno, que, como é sabido, é o sistema habitual de abortar: cortar o feto em pedaços, para extraí-lo do útero materno).

Retomando o fio do discurso, é patente que, hoje, quando um cristão coerente defende as suas convicções, as suas “opiniões” (às quais, como cidadão, tem direito), a máquina laicista vai agredi-lo de palavra e por escrito, vai tentar silenciá-lo e proceder à sua “exclusão” cívica, com o apoio e o aplauso de quase toda a mídia.

3. Como, de fato, isto acontece diariamente, entende-se o que diz a Nota doutrinal: “Nas sociedades democráticas todas as propostas são discutidas e avaliadas livremente. Aquele que, em nome do respeito à consciência individual, visse no dever moral dos cristãos de serem coerentes com a própria consciência um sinal (um motivo) para desqualificá-los politicamente, negando a sua legitimidade de agir em política de acordo com as próprias convicções relativas ao bem comum, cairia numa espécie de intolerante laicismo” (n. 6).

4. Procuremos dar mais um passo para desmascarar as falácias do laicismo. No campo social e político, os católicos defendem, pode-se dizer que em 99,9 % dos casos, se não em 100 %, posições que decorrem, não diretamente da religião nem da Revelação divina, mas apenas da Ética racional.

Por exemplo, sempre que um cristão combate a favor da vida (contra o aborto, as experiências e manipulações genéticas, etc.), ou do sentido humano da sexualidade, ou do direito à liberdade de ensino, ou da justiça social, etc., faz isso seguindo um ponto de vista filosófico respeitável, baseado na antropologia filosófica e na ética racional, natural (não sobrenatural). Imediatamente, porém, os laicistas militantes acusarão esse cidadão de tentar impor “idéias religiosas”, contrárias ao caráter laico do estado e à racionalidade da ciência. De nada adiantará, nestes casos, dizer a verdade, isto é, que a Antropologia e a Ética racional alcançaram verdades naturais e aprofundamentos importantíssimos desde há milênios – já o dissemos acima – entre os pagãos, sem qualquer conotação ou dependência religiosa.

Qualquer pessoa culta sabe que os pais da Ética natural, racional, foram os filósofos gregos, principalmente Sócrates e o seu discípulo Platão; depois, dando um enorme passo à frente, Aristóteles (Ética a Nicômaco, Grande Ética), e os filósofos estóicos (Epicteto), etc., até se chegar a Cícero, com seu tratado moral de inspiração estóica, intitulado De officiis (“Dos deveres”), e a Sêneca com suas Cartas a Lucílio, etc. Nenhum deles pretendia fazer teologia. A indagação fundamental de todos eles não era “o que Deus quer ou manda”, mas “qual é a verdadeira felicidade humana”, e toda a ética racional foi – também entre muitos cristãos, que sabem distinguir entre Ética racional e Moral cristã – , um esforço da razão para achar as respostas certas a essa indagação básica sobre o verdadeiro bem e a verdadeira felicidade do homem e da sociedade. Esse esforço acumulou séculos de sabedoria e atingiu cumes altíssimos do pensamento humano, que hoje a maioria ignora. Infelizmente, prescindir dessas conquistas acarreta um empobrecimento lastimável da cultura, da vida social e, sobretudo, da dignidade humana.

5. Muitos laicistas ignoram (por não saberem mesmo) a história e os tesouros do pensamento ético. Mas muitos outros que não ignoram esses tesouros, na hora de defender as suas posições “mudam de camisa”, isto é, abandonam a sua cerrada defesa da “razão contra o obscurantismo religioso”, e passam a desprezar e descartar essa mesma “razão” (sim, a razão!). Primeiro, invocavam a razão contra a religião. Agora, contra a pretensão de usar a razão para conhecer a verdade, invocam o agnosticismo, o moderno “dogma de fé” filosófico que afirma ser impossível conhecer a verdade, e por isso não se poderia mais falar em “verdade” (572)...

Justamente a defesa da razão, o “resgate” da razão contra o agnosticismo é o grande pano de fundo da Encíclica Fides et ratio: “A razão – diz João Paulo II– (em decorrência das filosofias imanentistas e, por isso, agnósticas) curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna (...), em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos. Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças de um ceticismo geral” (n. 5).

6. É um retrato perfeito do nosso tempo. Suprimida a capacidade de a razão atingir verdades, negada, portanto, a existência de verdades objetivas e universais (pois o agnóstico jamais poderá conhecer ou admitir “verdades”), o que resta? Só a vontade, o puro e simples querer, apetecer, desejar.

Toda a Encíclica Veritatis Splendor desmascara e alerta sobre os perigos dessa tendência de fazer da liberdade a fonte da verdade, isto é, de só aceitar como “verdadeiro” e “certo” (por enquanto, porque amanhã o “certo” vai mudar) o que livremente escolhe a “maioria”, por consenso. Se ficarem de acordo em dizer que a vida começa quando a criança tem dois anos de idade (e que, em conseqüência, até os dois anos, a criança pode ser retalhada, desmanchada, etc.), esse “consenso” será “a verdade” que todos deverão acatar. Não existe, não resta nenhum referencial objetivo, absoluto e permanente da verdade e do bem, fora do desejo, do interesse, dos apetites e paixões, quando se põem de acordo e chegam ao “consenso” (lembre-se a menção a Mengele na citada Roda Viva).

7. Entende-se, por isso, que o Compêndio diga: “Chega-se também e mais radicalmente a negar a ética natural. Esta negação, que faz entrever uma condição de anarquia moral, cuja conseqüência é a prepotência do mais forte sobre o mais fraco, não pode ser acolhida por nenhuma forma legítima de pluralismo, porque mina as próprias bases da convivência humana” (572). Certo. Mas, na atual mentalidade predominante, laicista e agnóstica, em que “tudo é convencional e negociável”, como dizia João Paulo II, essa “prepotência do mais forte sobre o mais fraco”, essa ditadura, é inevitável, pela razão muito simples de que são os mais fortes economicamente, politicamente e “midiaticamente” os que dominam nos organismos políticos nacionais e internacionais, e impõem, como se fosse majoritária, a opinião de uma minoria de grupos poderosos.

Por exemplo, é um fato que, em todas as decisões da ONU e dos seus organismos sobre família, mulher, natalidade, etc., dominam quase totalmente as poderosas ONGs (transbordantes de dólares) do Movimento Gay e do Movimento Feminista (pro-choice, abortista, antinatalista). Centenas de ONGs católicas, ou cristãs de outras denominações, ou simplesmente defensoras da ética natural, são barradas de modo radical e despudorado (além de não obterem um tostão das fontes internacionais que alimentam as outras). E, deste modo, vai-se impondo no mundo, de maneira sistemática, agressiva e massiva, a ideologia laicista, e o mundo cai, sem reparar, no que João Paulo II e Bento XVI chamaram, com toda a razão (ainda que a mídia se exaspere perante essas afirmações), a ditadura do relativismo.
8. Por isso, e já como conclusão, é natural que, que o Compêndio (n. 570), citando a Exortação apostólica Christifideles laici, frise o seguinte (que devemos meditar e ajudar todos os católicos responsáveis a meditar): “Tenha-se presente que, em face das múltiplas exigências morais fundamentais e irrenunciáveis, o testemunho cristão deve considerar-se um dever inderrogável, que pode chegar ao sacrifício da vida, ao martírio, em nome da caridade e da dignidade humana” (Christifideles laici, n. 39).

A história de vinte séculos de Cristianismo, também a do último século, é rica em mártires da verdade cristã, testemunhas da fé, da esperança, da caridade evangélicas. O martírio é o testemunho da própria conformação pessoal a Jesus crucificado, que se expressa até na forma suprema de derramar o próprio sangue, de acordo com o ensinamento evangélico: Se o grão de trigo que cai na terra... morrer, produzirá muito fruto (Jo 12, 24).
Envie este artigo para um amigo
Francisco Faus
é licenciado em Direito pela Univerdade de Barcelona e Doutor em Direito Canônico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos, entre outros, os títulos O valor das dificuldades, O homem bom, Lágrimas de Cristo, lágrimas dos homens, Maria, a mãe de Jesus, a paciência, A voz da consciência e A paz na família.

0 comentários:

Postar um comentário