sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Leigos, laicidade e laicismo



  Por Equipe Editorial da Revista Humanitas  


É curioso o destino de algumas palavras: nascidas para significar uma coisa, terminam indicando outra, geralmente diferente e com freqüência oposta. Isso é o que aconteceu com a palavra “leigo” e com aquelas que se referem a ele, como “laicidade” e “laicismo”. A propósito de dois fenômenos recentes – o aparente reavivamento da querela “laicos x católicos” (que na verdade nunca chegou a desaparecer) e as abundantes declarações de laicismo (há pessoas que se declaram “101% laicas”, como Paolo Mieli no jornal Avvenire de 30.05.2000) – retoma-se aqui um tema já muito abordado, mas que sempre convém esclarecer ainda mais: O que significa proclamar-se “leigo”? O que implica a “laicidade”? O que é o “laicismo”?


 
A palavra “leigo” vem do grego laos (povo): o sufixo ikos (laikos) indica o fato de se pertencer a um grupo, a uma categoria. Assim, na Grécia antiga os laikoi eram a massa da população enquanto distinta dos seus governantes. Quando os Setenta traduziram a Bíblia hebraica para o grego, não usaram essa palavra. Tradutores posteriores (Áquila, Sêneca e Teodósio), pelo contrário, empregaram o termo no sentido de coisa não consagrada a Deus, e que por isso mesmo podia ser destinada a usos profanos por quem quer que fosse: assim, o pão “leigo” opunha-se ao pão “consagrado”.

É preciso observar, em todo o caso, que esses tradutores da Bíblia aplicam a palavra “leigo” a coisas inanimadas (pães, viagens, territórios) e não a pessoas: a aplicação do termo a pessoas deve-se aos cristãos. Temos um primeiro exemplo na Epístola aos Coríntios de Clemente Romano (ano 95 d.C.), na qual se mencionam “presbíteros”, “levitas” e “leigos” (laikos anthropos)[1]. Estes últimos são os simples fiéis, enquanto distintos daqueles que exercem um ministério na comunidade cristã e que por isso são “consagrados” ao serviço de Deus. É somente no século III que “leigo” passa de categoria sociológica a categoria religiosa. Na Lenda dos Apóstolos, escrita por volta de 255, lê-se: “Escutai, portanto. também vós, ó leigos, (que sois) a Igreja eleita de Deus” [2]. Este texto mostra que os leigos estavam totalmente integrados na Igreja, tanto quanto os que exerciam o ministério sagrado.

Contudo, a partir da Alta Idade Média produziu-se na Igreja uma desvalorização dos leigos, tanto do ponto de vista cultural como espiritual. A cultura teológica – e a cultura em geral – chegou a ser monopólio dos clérigos, enquanto os leigos eram chamados de idiotae e de illiterati. Devido à influência da espiritualidade monástica, os monges e os clérigos eram chamados spirituales, pois se dedicavam às realidades espirituais e à perfeição cristã, mediante a renúncia aos bens materiais e ao matrimônio; os leigos, por sua vez, eram denominados carnales, porque se dedicavam às realidades materiais e se casavam. Desse modo gerou-se uma divisão entre clérigos e leigos: estes deveriam ocupar-se somente das realidades seculares e mundanas, ao passo que os assuntos da Igreja seriam unicamente de responsabilidade dos clérigos. Como escreveu o cardeal Humberto de Silva Cândida († 1061), “Laici sua tantum, id est saecularia; clerici autem sua tantum, id est ecclesiastica negotia, disponant et provideant“ [3].

Essa distinção entre clérigos e monges, de um lado, e leigos, do outro, acentuou-se de tal maneira que o monge-jurista Graciano chegou a escrever, no seu Decretum [4], que “existem dois gêneros de cristãos” (duo sunt genera christianorum). Um deles é constituído pelos que se dedicam à oração e à contemplação: são os “clérigos e os monges” (clerici et Deo devoti); o outro é o dos leigos: a eles “está permitido” casar-se, cultivar a terra, ser juízes, pagar dízimos; “e assim poderão salvar-se, desde que façam o bem, evitando os vícios” (et ita salvari poterunt, si vitia tamen benefaciendo evitaverint). O primeiro desses “gêneros” é superior ao segundo. Os clérigos são na verdade reis (sunt reges), porquanto assumem a direção própria e a do povo à luz das virtudes; os leigos, por sua vez, formam o povo (populus), que deve ser conduzido pelos “espirituais” para levarem a cabo a sua vocação cristã. Essa divisão dos cristãos em dois “gêneros” provocou a “clericalização” da Igreja e a submissão do poder temporal a ela. De acordo com a doutrina das “duas espadas”, o Império cristão devia submeter-se ao poder espiritual: a primeira espada estaria nas mãos da Igreja; a segunda – a espada temporal –, a serviço da Igreja.

As coisas começaram a mudar no século XIII, quando passou a firmar-se o que G. De Lagarde chamou “espírito laico” [5]. De fato, com o renascimento do Direito romano, o Estado moderno surgiu como “potência pública”, dotada de um poder (imperium) soberano, independente de qualquer outro, inclusive – e principalmente – do poder religioso. Daqui surgiu o conflito entre o Estado (ou os Estados) e o Papa, entre os Comunes e as autoridades religiosas locais (ou seja: os bispos): um conflito que, embora tivesse sido muitas vezes motivado por interesses econômicos contrapostos, deve-se no fundo à afirmação da autoridade “leiga” do Município ou do Estado contra a tendência das autoridades “eclesiásticas” a intervir em assuntos civis ou a fugir dos impostos (ou de outras cargas quaisquer) mediante a instituição de imunidades. O conflito adquiriu tais proporções que acabou por criar um estado de hostilidade geral contra o clero. Tanto é assim que, no final desse século (1296), Bonifácio VIII começou a Bula que abria o seu conflito com Filipe o Belo, rei da França, com as seguintes palavras, tomadas do Concílio de Colônia (1266): “É uma antiga tradição que os leigos sejam absolutamente contrários aos clérigos” (Clericis laicos infestos oppido tradit antiquitas).


Assim começou um conflito entre a Igreja e os Estados modernos que duraria muitos séculos, provocando a separação entre Igreja e Estado, e a total laicização do poder civil.

No âmbito “clerical”, Bonifácio VIII retomou a teoria das “duas espadas” na Bula Unam Sanctam de 18.11.1302, em que afirma que “ambas estão em poder da Igreja” (in potestate Ecclesiae), mas o poder espiritual – representado pela “espada espiritual” – deve ser exercido “pela Igreja” (ab Ecclesia), enquanto o poder político – representado pela “espada material” – deve ser exercido “a favor da Igreja” (pro Ecclesia). Também acrescenta que “é necessário que uma espada esteja sob a outra, e que a autoridade temporal se submeta à espiritual” (spirituali sublici potestati) [6].

O âmbito “leigo” não se contentou apenas com reivindicar os seus direitos na Igreja: baseado no fato de “a Santa Madre Igreja estar constituída não somente por clérigos, mas também pelos leigos” – o que, aliás, é muito correto e justo – quis controlar a vida da Igreja. Jean de Paris chegou a afirmar que “se o Papa fosse culpado de crimes e escandalizasse a Igreja, caso não se corrigisse, o príncipe [na altura, Filipe o Belo, o “ungido do Senhor para a execução da justiça”] poderia excomungá-lo indiretamente [indirecte] e depô-lo” [7].

Foi Marcílio de Pádua quem, por sua vez, estabeleceu as bases do Estado “laico” moderno, ao afirmar, em 1324, que a autoridade corresponderia inteiramente ao Estado, não somente quanto às coisas “temporais”, mas também quanto às “espirituais”. De fato – continuava –, a maior parte dos poderes que a Igreja hoje se arroga foram por ela usurpados do Estado. O Estado é a única entidade dotada de poder universal, autoridade essa que, portanto, se estende também à Igreja: esta não seria instituição divina, mas apenas uma sociedade puramente humana e como tal devia estar submetida à autoridade do Estado. “A Igreja e por conseguinte todos os cristãos devem submeter-se aos príncipes seculares” (Ecclesia seu Christi fideles omnes subesse debent principibus saeculi) [8].


Os séculos XIII e XIV assistiram, portanto, ao início de um processo de laicização (ou de secularização, como se diz preferentemente no mundo anglo-saxônico) do pensamento e da vida, que foi ganhando intensidade nos séculos posteriores. Tal processo consiste, em primeiro lugar, em que as realidades mundanas se vão progressivamente separando da religião cristã, subtraindo-se ao seu influxo e à sua tutela: tanto no pensamento como na vida e no comportamento. Depois vem a afirmação da autonomia e da independência das realidades humanas: inicialmente com relação à Igreja – à sua autoridade, à sua doutrina e às suas leis morais –, mas depois também em relação ao próprio Deus. Por último, o processo culmina com a exclusão da religião de todos os âmbitos da vida humana e, portanto, com a negação de Deus e a luta contra a Igreja.

Assim, a laicização é um fenômeno sumamente complexo e de longa duração, sendo por isso difícil delinear as suas etapas e esclarecer os seus processos, muitas vezes subterrâneos, intrincados e obscuros. Pode-se dizer, em todo o caso, que com o Humanismo e com o Renascimento se produziu uma vigorosa laicização da cultura.

A partir de Nicolau de Cusa (1401-1464), de Copérnico (1473-1543) e sobretudo de Galileu (1564-1642), afirma-se a autonomia da Ciência, já que para conhecer o mundo físico – ordenado matematicamente – é suficiente recorrer aos princípios intrínsecos à Natureza: na interpretação do mundo físico, a Matemática substitui a Teologia e a Metafísica.

A laicização do Direito – propenso a declarar-se independente não só da religião cristã, mas também da moral – começa com Acúrsio (1184-1260), que afirma que o jurista não precisa saber Teologia porque “tudo já está contido no Direito” (omnia in corpore iuris inveniuntur) [9], e é plenamente formulada no século XVII por Huig de Groot (Grócio ou, em latim, Grotius), que afirma que o Direito natural seria válido “mesmo se admitíssemos que Deus não existe” (etiamsi daremus non esse Deum) [10].

Com Maquiavel, a Política adquire autonomia em relação à lei moral, já que para o homem político o que conta é o êxito, independentemente dos meios empregados para obtê-lo. Para Thomas Hobbes, Baruch Spinoza e Jean-Jacques Rousseau, o Estado é o “deus terreno”: fonte e depositário de todos os direitos humanos.

O processo de laicização cobre todos os campos: depois de atingir o seu auge no século XVII com o Iluminismo e a Revolução Francesa, desemboca, no século XIX, no imanentismo absoluto, ou seja, na negação de Deus como Ser transcendente e de todo e qualquer vínculo entre as realidades humanas e Deus. A religião converte-se em “assunto privado”: o homem ocupa o lugar de Deus, chegando a ser o ponto de referência e a medida de toda a realidade. Como afirma Karl Marx, “o homem é para o homem o ser supremo”, tanto no plano individual como no social: supremo como Humanidade (Augusto Comte), supremo como Sociedade (Marx), supremo como Estado (Hegel).

Prosseguindo essa linha, com Feuerbach, a Teologia converte-se em Antropologia; com Augusto Comte, o Positivismo materialista converte-se na “Religião da Humanidade”; o cientificismo agnóstico passa a ocupar o lugar da Metafísica; e por fim Nietzsche proclama a “morte de Deus”: o processo de laicização ao final culmina na irreligião e na luta contra a Igreja e contra o cristianismo.


Um país onde o processo de laicização adquiriu um caráter violentamente anticristão e anti-religioso foi a França, de modo especial em dois momentos da sua História: a época da Revolução Francesa e o período da Terceira República, cem anos depois.

Precedida pela exortação de Voltaire a “esmagar a infame” (écraser l’infâme) – e a “infame” era a Igreja –, a Revolução Francesa empreendeu uma obra de descristianização radical, a primeira na história do cristianismo: começou com a promulgação da “Constituição civil do clero” e a conseqüente perseguição ao clero “refratário”; depois aboliu o calendário cristão e, portanto, o domingo e as festas religiosas; por último instituiu os atos de culto à Deusa Razão e ao “Ser Supremo”.

Essa obra foi retomada e levada adiante com obstinação nos anos da Terceira República (1879-1905), quando os “laicos” – assim foram chamados – obtiveram a maioria no Parlamento e passaram a governar a França. Entre os mais famosos contam-se Gambetta, Ferry, Clémenceau, Waldeck-Rousseau, Combes e Viviani, que receberam o apoio de homens de cultura e sobretudo dos maçons do Grande Oriente da França. O propósito desses “laicos” era converter a França numa “república laica”, isto é: irreligiosa e anticristã.

Para instaurar esse reino da irreligião, dois meios foram utilizados: a laicização do ensino e a separação entre Igreja e Estado. O pai da “escola laica” foi Jules Ferry. Positivista e maçom, seu objetivo era – como ele próprio disse ao homem público Jean Jaurés – “organizar uma sociedade sem Deus”. Embora a escola laica tenha sido rapidamente implementada pelas leis de 1882 e 1886, a separação entre a Igreja e o Estado exigiu mais tempo: foi preciso esperar um momento mais oportuno, e o fenômeno só teve lugar no início do século XX, em 1904 e 1905. Émile Combes, autor da lei de separação, juntamente com o Pierre Waldeck-Rousseau, considerava-a como “o momento natural e lógico do avanço requerido rumo a uma sociedade laica, liberada de toda a sujeição clerical”. Nesse ponto, coincidia com Arthur Ranc, para quem a separação era simplesmente “um meio”: o objetivo era “a total secularização do Estado, o fim do poder da Igreja” [11].

O processo de laicização, que na França conduziu à “escola laica” e à “separação entre a Igreja e o Estado”, adotou formas de irreligiosidade e anticlericalismo na Espanha entre 1868 e 1876, em Portugal entre 1908 e 1917, e em vários Estados latino-americanos – especialmente no México – na primeira metade do século XX. Na Itália, também houve um processo de profunda laicização na segunda metade do século XIX, por obra de governos liberais apoiados pela Maçonaria.

Nos Estados Unidos, porém, a separação entre os Estados e as diversas confissões religiosas inspirou-se desde o início no princípio da tolerância, não adotando formas de irreligiosidade nem de anticlericalismo: unicamente foram proibidas as subvenções públicas a cultos e atividades religiosas, mediante a Primeira Emenda à Constituição Federal.


Qual foi a atitude da Igreja Católica diante desse processo de laicização e dos resultados que o produziu? Em 1864, o Papa Pio IX condenou a separação entre a Igreja e o Estado pela Encíclica Quanta cura, publicada juntamente com um catálogo – o famoso Syllabus – de proposições que deviam ser explicitamente rejeitadas, entre as quais a de nº 55, que diz: “Devem ser separadas a Igreja do Estado e o Estado da Igreja” (Ecclesia a statu statusque ab Ecclesia seiungendus est) e a de nº 76, que diz: “Em nossa época, já não é mais conveniente manter a religião católica como a única religião do Estado (tamquam unicam status religionem), excluindo-se todos os outros cultos” [12].

Na Encíclica Immortale Dei, sobre a “constituição cristã dos Estados” (8 de novembro de 1885), Leão XIII afirmou que a sociedade civil devia praticar um culto público, e que cometia um delito quando agia como se Deus não existisse em absoluto, ou quando prescindia da religião como se fosse algo inútil, ou quando indiferentemente admitia uma religião qualquer segundo os seus próprios gostos. Condenava, portanto, a opinião dos que consideram que as leis divinas devem reger a vida e a conduta dos indivíduos, mas não a dos Estados, sendo assim permitido afastar-se dos preceitos de Deus nas coisas públicas e legislar sem levá-los em conta: tendo por base tudo isso “surge a perniciosa conseqüência da separação entre Igreja e Estado”.

Logo no início do seu Pontificado, Pio X teve que debater-se com a lei francesa da separação, a propósito da qual afirmou: “Considerar necessária a separação entre a Igreja e o Estado é uma tese absolutamente falsa e um erro bastante pernicioso”, por ser uma injúria a Deus, fundador das sociedades humanas; por negar a ordem sobrenatural, limitando a ação do Estado à promoção da prosperidade pública; por subverter a ordem estabelecida por Deus, que exige uma harmoniosa concórdia entre a sociedade religiosa e a civil [13].

A virulência laicista francesa atenuou-se quando as relações diplomáticas entre a França e a Santa Sé foram restabelecidas em 1921, e assim Pio XI aceitou um estatuto legal da Igreja na França. No entanto, esclareceu que a sua intenção não era abolir as condenações de Pio X nem se reconciliar com as “leis laicas, pois o que Pio X condenou, Nós também condenamos; e toda a vez que por «laicidade» se entenda um sentimento ou intenção contrária a Deus ou à religião, Nós reprovamos totalmente tal «laicidade» e declaramos abertamente que deve ser reprovada” [14].

Posteriormente, Pio XI instituiu a festa de Cristo-Rei. Na Encíclica Quas Primas (11.12.1925), em que anunciava a instituição dessa festa, insistindo que “não somente os indivíduos e as famílias, mas também os chefes de Estado – em nome próprio e com todo o povo – devem render homenagem pública de respeito e submissão à soberania de Cristo”. No mesmo documento, afirmou que “a peste da nossa época é o chamado laicismo, com os seus erros e iniciativas criminosas”: a festa de Cristo-Rei seria celebrada “para reparar de alguma forma a apostasia pública gerada pelo laicismo, tão desastrosa para a sociedade”.


Nessa altura iniciou-se no pensamento cristão – sobretudo por mérito de Jacques Maritain – uma reflexão mais profunda sobre o problema da laicidade, que desembocará na distinção entre “laicidade” e “laicismo”. O ponto de partida foi a distinção – que não é separação nem oposição – entre a ordem da Natureza e a ordem da Graça sobrenatural, entre a ordem da Criação e a da Redenção. Na verdade, só existe uma ordem: a sobrenatural, à qual a humanidade foi elevada, e que consiste em alcançar a felicidade eterna no Reino de Deus mediante a obra redentora de Cristo e a graça santificante. Isto significa que a ordem da Natureza culmina na ordem da Graça, e que a ordem da Criação culmina na da Redenção. Mesmo assim, podemos distinguir dentro dessa única ordem sobrenatural uma ordem da Natureza enquanto realidade criada por Deus e dotada de consistência e autonomia próprias.

A Sagrada Escritura afirma que Deus criou o mundo e entregou-o ao homem para satisfazer-lhe as necessidades da vida. Por ter sido criado pelo amor que Deus tem ao homem, o mundo é “bom”, isto é: tem consistência e valor próprios, tem estrutura e ordem e leis próprias de desenvolvimento. Por conseguinte, o mundo tem a sua própria autonomia, cujo único limite é o fato de ele ter sido criado, isto é: a vontade criadora de Deus, que quis o mundo precisamente com essa natureza e essas leis de desenvolvimento. Mas, além disso, Deus entregou o mundo ao homem: esse ser que, por estar dotado de inteligência e liberdade, também tem autonomia decisória própria (não absoluta, como é óbvio), mediante a qual desenvolve o mundo e, portanto, humaniza-o.

Deve-se concluir que, segundo a Sagrada Escritura, Deus quis que tanto o mundo – por Ele criado – como o homem – a quem confiou o desenvolvimento do mundo – gozassem de legítima autonomia, se bem que com a necessária dependência “criatural” de Deus e a dependência da ordem moral, expressão da vontade criadora de Deus.

Em conformidade com esse ensinamento da Escritura, o Concílio Vaticano II ressaltou que a autonomia legítima das realidades terrenas “está de acordo com a vontade do Criador. Pela própria condição da criação, todas as coisas estão dotadas de fundamento próprio, verdade, bondade, leis e ordem específicas. O homem deve respeitar tudo isso, reconhecendo os métodos próprios de cada ciência e arte” [15]. Para a Fé cristã, as realidades terrenas como o Estado, a Cultura, a Filosofia, a Arte, o Direito, a Política, as ciências e a Economia, não são simplesmente meios para que se alcance o fim sobrenatural do homem (a salvação eterna) e o da História (a instauração do Reino de Deus): são valores em si mesmos e, portanto, fins em si mesmos, dotados de consistência, de bondade e de verdade próprias, não por estarem ordenados para o fim sobrenatural, mas por terem sido criados por Deus.

É claro que existe essa ordenação para o fim sobrenatural, pelo que tais valores e fins não são absolutos, e sim parciais e relativos. Isso, contudo, não impede que sejam buscados por si mesmos, e não apenas pela sua possível contribuição para o fim sobrenatural, pois são verdadeiros valores e verdadeiros fins. Isso significa que o mundo e todas as realidades nele contidas têm consistência e espessura próprias – e, portanto, leis de desenvolvimento próprias –, podendo ser ordenados com plena autonomia, com a única obrigação de se manterem fiéis à sua condição de criaturas e, por conseguinte, à vontade criadora de Deus.

Este mundo de fins e valores é o campo entregue ao homem para que nele exercite a sua responsabilidade. Para conduzi-lo aos seus próprios fins – de caráter temporal e terreno, não propriamente religioso ou transcendente –, o homem deve valer-se da sua razão e das opções atribuídas à sua liberdade. Por conseguinte, a realidade mundana confiada à razão e à liberdade do homem é por sua própria natureza “profana”, “laical”: não está sujeita à tutela e à vigilância da Igreja, como se esta fosse a única com competência para julgar os problemas do mundo e a única capaz de dar resposta a tais problemas.

Ao reconhecer a autonomia do mundo e das realidades temporais, a fé cristã afirma a sua “laicidade”, rejeitando toda e qualquer forma de integralismo religioso, ou seja: a pretensão de assumir o “mundo” na fé, convertendo-a em princípio único e exclusivo para a compreensão e para a interpretação de todas as realidades. Com outras palavras, rejeita o “totalitarismo religioso” que deseja inferir somente a partir da fé toda e qualquer resposta para os problemas da vida pública e privada e que, portanto, nega até mesmo aquela legítima autonomia relativa que os diversos âmbitos culturais devem ter em relação à Igreja, âmbitos esses que tal totalitarismo pretende por princípio submeter ao seu poder (ou pelo menos trazer para a sua esfera as atividades dos fiéis nesses âmbitos).

A Igreja certamente pode e deve pronunciar-se no campo da moral, declarando pecaminosos e ilícitos certos modos de proceder; mas isso não lhe confere – nem mesmo de iure – um verdadeiro poder de intervenção nas realidades mundanas. Pelo contrário, as declarações da Igreja são em grande parte de caráter “negativo”, isto é: indicam na maior parte das vezes apenas aquilo que não se deve fazer (por ser contrário à norma moral e, portanto, ilícito), e não aquilo que deve ser levado a cabo hic et nunc (aqui e agora). A decisão sobre o que fazer concretamente numa dada situação histórica cabe aos que se encontram inseridos na realidade mundana e que são portadores de responsabilidade autônoma.

Mesmo nos casos em que a Igreja faz proclamações solenes de princípios no campo social, formulando a sua “doutrina social”, deixa o seu exercício autônomo em mãos dos que estão comprometidos com a vida pública. Além do mais, existem também muitos problemas técnicos para os quais a Igreja não está em condições de oferecer nenhuma contribuição, e que pertencem ao âmbito da indagação do homem, independentemente de ser ou não crente.

As realidades mundanas sempre mantêm uma relação com Deus Criador e com a lei moral, mas são realidades “laicais”, “profanas”, autônomas perante a religião e a Igreja. Assim deve ser entendida a “laicidade” em sentido cristão, à qual já Pio XII se referia chamando-a “a legítima e sã laicidade do Estado” [16], e que o Concílio Vaticano II exprimiu com estas palavras:

“A Igreja que, em razão da sua finalidade e competência, de modo algum se confunde com a comunidade política nem está ligada a nenhum sistema político, é ao mesmo tempo sinal e salvaguarda do caráter transcendente da pessoa humana”.

“Cada uma no seu próprio campo, a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas uma com relação à outra. Ambas, porém, embora por título diferente, estão a serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. Tanto mais eficazmente executarão para o bem de todos esse serviço, quanto melhor cultivarem entre si a sã cooperação [...]”

“Além disso, é justo que [a Igreja] possa, sempre e em toda parte, pregar a Fé com liberdade verdadeira, ensinar a sua doutrina social, exercer livremente a sua missão entre os homens e ainda emitir juízos morais, também sobre as realidades que dizem respeito à ordem política, quando o exijam os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas” [17].

Esta é a concepção do “Estado laico” em sentido cristão, cujo “poder” é soberano e independente da autoridade eclesiástica. Quanto ao seu caráter institucional, é aconfessional e não tem competência no âmbito religioso, nem muito menos tem qualquer doutrina religiosa própria; contudo cabe-lhe assegurar a todos os súditos a liberdade religiosa, no sentido de que todo o cidadão tenha liberdade para praticar – tanto individualmente como em manifestações públicas e comunitárias – a religião que julgue ser a verdadeira segundo a sua consciência. No entanto, esse caráter aconfessional não implica indiferentismo nem separatismo religioso, pelo contrário: é preciso encontrar formas de acordo entre o Estado e as diversas Igrejas e religiões nele existentes, com vistas ao bem comum dos cidadãos e para que a prática da religião seja possível num ambiente de paz e liberdade.


Agora estamos em condições de caracterizar o laicismo e mostrar como ele se diferencia da laicidade no sentido explicado. Mas antes é preciso advertir que os partidários do laicismo não gostam de ser chamados “laicistas”: em vez “laicismo”, preferem o termo “laicidade” e que se lhes denomine simplesmente “laicos”. Assim, falam de moral “laica”, concepção “laica” da vida; falam de “laicidade” do Estado, “laicidade” da Escola, etc.

No laicismo, devem distinguir-se os princípios ideológicos e os âmbitos em que mais freqüentemente ele se exprime. Os princípios que constituem a base ideológica do laicismo são essencialmente três:

O primeiro é o racionalismo absoluto. A única fonte e medida da verdade é a razão humana: “O laico é o homem da razão; o crente é o homem da fé” (Norberto Bobbio). Por conseguinte, o laicismo rejeita toda e qualquer revelação e, portanto, toda e qualquer verdade que pretenda basear-se na revelação e dela extrair a sua validade. Por ter surgido dentro de um mundo cristão, o laicismo rejeita de modo especial a religião cristã, já que esta se baseia numa revelação divina e formula dogmas que estão em contradição – segundo os laicistas – com a razão humana. Não nega o valor simbólico de certos “mitos” cristãos, nem o valor estético de alguns ritos do cristianismo, mas nega o seu valor de verdade.

O segundo principio básico do laicismo é o imanentismo radical: não existe nada que transcenda o homem ou o mundo ou a História que o homem plasmou no decurso dos séculos, com todas as suas realidades grandes e belas e também com as suas monstruosidades. Não existe nenhum Ser – tenha o nome que se queira: Deus, o Absoluto, etc. – que tenha criado o homem e o mundo, nem que dirija a História humana, inteiramente carente de finalidade. Não existe nenhuma lei moral cujo fundamento e obrigatoriedade derivem de um Legislador supremo. Isso não significa que não existam leis e valores humanos que o homem deva seguir: significa apenas que tais leis têm sua origem no próprio homem.

Contudo, como o homem é um ser histórico, um ser que vive no tempo, as leis e os valores humanos não são realidades absolutas, sempre válidas: evoluem com o homem, com a compreensão sempre nova que ele tem de si mesmo, com as invenções e descobertas científicas que leva a cabo, e com as exigências sempre novas que ele tem de satisfazer.

Existe, pois, uma Ética leiga, racional e obrigatória, e por isso é injusto acusar o laicismo de libertinismo e imoralismo. Mas trata-se de uma Ética puramente humana: uma Ética que é expressão da autonomia do homem e que sempre está sujeita à dúvida; uma Ética não-religiosa e que portanto não está baseada em normas absolutas; uma Ética de que o homem é o único juiz e o único árbitro.

O terceiro princípio básico do laicismo é a liberdade absoluta, cujo único limite consiste em não prejudicar a liberdade dos outros e, portanto, não impedir que eles possam gozar da mesma liberdade: o “laico” é livre para fazer tudo o que não prejudique os outros nem os impeça de fazer o que desejam.

Da exposição desses princípios, conclui-se que o laicismo, do ponto de vista ideológico (não empregamos este termo em sentido negativo), é geralmente ateu ou pelo menos agnóstico: professa a autonomia absoluta em relação a Deus, à fé e à moral cristã. Não é em si mesmo contrário à religião, mas considera que ela é – e deve sempre continuar sendo – um assunto privado que não deve ter influência alguma na vida pública. Por conseguinte, rejeita vigorosamente qualquer “intromissão” da Igreja – e, portanto, da Fé e da moral cristã – na vida do Estado, na elaboração das leis e na administração pública. Os cristãos evidentemente podem participar da vida do Estado na qualidade de cidadãos, desde que procedam na sua atividade pública etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse), isto é: sem pretender fazer com que prevaleçam os seus princípios religiosos e morais.

Na elaboração das leis – apontou recentemente o político e filósofo italiano Paolo Flores d´Arcais – os católicos “deverão prescindir rigorosamente da fé e de Deus (e das palavras daqueles que pretendem interpretar a Palavra divina). Etsi Deus non daretur: esse é o fundamento de toda legislação laica” [18].

Gian Enrico Rusconi, professor de ciência política da Universidade de Turim, por sua vez, afirma que “precisamente com o fim de criar um espaço para o discurso e para a Ética pública, volta-se a propor o princípio da laicidade sob a fórmula etsi Deus non daretur. Laicidade significa debater, argumentar e agir «como se Deus não existisse», prescindindo portanto de todo o credo religioso. O crente participa com pleno direito no processo democrático de formação da vontade coletiva, mas não emprega argumentos que remetam a um princípio de autoridade exterior ao próprio processo discursivo (do tipo «como quer a Sagrada Escritura» ou «como ensina o Magistério da Igreja»)” [19].

Quanto aos âmbitos em que o laicismo se manifesta de forma preferencial, são eles – como diz o Manifesto laico de Enzo Marzo e Corrado Ocone [20] – as relações entre a Igreja e o Estado, a Escola, a elaboração das leis, o integralismo e o fundamentalismo.

O laicismo é contrário a qualquer tipo de Concordata entre o Estado e a Igreja Católica: as Concordatas seriam meios para a concessão de “privilégios” indevidos a uma associação de cidadãos como as outras, regida pelas normas que regulam as instituições de Direito privado. O laicismo é absolutamente contrário a todo o tipo de “intromissão” da Igreja e da hierarquia eclesiástica nos assuntos públicos: tais “ingerências” iriam em detrimento da autonomia e do pluralismo do Estado.

No campo do ensino, o laicismo defende que somente a escola pública administrada pelo Estado – por ser uma “instituição” estatal, tal como uma delegacia de polícia – deve ser mantida com fundos públicos, já que somente ela é pluralista e não pretende impor valores unívocos nem verdades reveladas, tal como fazem as escolas católicas: estas são e devem continuar a ser escolas particulares, e não devem ser nem indiretamente nem muito menos diretamente financiadas pelo Estado.

Por último, o laicismo é por natureza pluralista, e por isso condena todos os tipos de integralismo e de fundamentalismo, ideológicos ou religiosos. Por conseguinte, exige que todo cidadão tenha o direito de adotar livremente quaisquer opções morais ou culturais pelas quais tenha preferência, sem que ninguém possa impedi-lo baseando-se em princípios religiosos ou em normas morais com fundamento religioso: isso seria um integralismo fundamentalista, que por natureza é inimigo da liberdade e fonte de intolerâncias, de autoritarismos e de enganos.



Antes de terminar, convém destacar que nem todos os “laicos” são iguais. Existe um laicismo agressivo e rancoroso, que emprega “uma linguagem insolente, própria de um velho anticlericalismo desrespeitoso” (foi assim que Norberto Bobbio definiu a linguagem do Manifesto laico, motivo pelo qual se negou a subscrevê-lo), como se vê no número 4 da revista MicroMega (ano 2000). Mas também existe um laicismo que rejeita qualquer forma de agressividade, e que está aberto ao diálogo com os católicos sobre assuntos especialmente delicados como o aborto, as “uniões de fato” (inclusive entre homossexuais), as questões que envolvem a Genética e o financiamento de escolas católicas. Os partidários desse segundo tipo preferem empregar o termo “laicidade” em vez de “laicismo”: assim o fez Claudio Magris no seu artigo L’ultima guerra di religione (“A última guerra de religião”), publicado na edição de 6 de dezembro de 1998 do jornal italiano Corriere della Sera.

De qualquer forma, deve-se ter em mente que os três princípios básicos do laicismo acima enumerados estão presentes em todas as formas de laicismo. Isso torna o diálogo entre “laicos” e cristãos sempre problemático: o crente é um “homem de fé”, mas pode muito bem ser também um “homem de razão”, sem que por isso tenha que assumir posições laicistas.

De fato, como observou Rusconi, “na conjuntura político-cultural que se está delineando, a distinção entre católicos e «laicos» torna-se cada vez mais importante do que a distinção entre direita e esquerda” [21].



NOTAS:

(1) Epístola aos Coríntios, XL, 5
(2) Lenda dos Apóstolos, II, 26, 1. (ed. Funk, 102)
(3) Adversus simoniacos libri tres III, 9 (Migne, Patrologia - Series Latina, 143, 1153)
(4) Decretum, II Pars, Causa XII, quaest. I, c. VII
(5) Cfr. La naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Age, Lovaine-Paris, Nauwelaerts, 1956
(6) Cfr. o texto da Bula em: Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum, Barcelona, Herder, 1963, nº 873
(7) De potestate regia et papali, cap. XIII
(8) Defensor pacis, II, cap. V
(9) De iustitia et iure, I, ad.1, 10
(10) De iure belli et pacis, Paris, 1625, Proleg. § 11
(11) Cfr. De Naurois, “Laïcité”, em Encyclopaedia Universalis, vol. 9, Paris, 1980, pp. 743-747
(12) Cfr. Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum, cit., nn. 2955 e 2977
(13) Cfr. Encíclica Vehementer nos de 16-II-1906
(14) Bula Maximam gravissimanque de 18-II-1924
(15) Constituição Pastoral Gaudium et Spes, nº 36
(16) Discurso, 23-III-1958 (Acta Apostolicae Sedis 23 [1958] 220)
(17) Constituição Pastoral Gaudium et Spes, nº 76
(18) La Repubblica, 30-VIII-2000
(19) La Stampa, 25-IV-2000
(20) MARZO, Enzo e OCONE, Corrado. Manifesto laico, Bari, Laterza, 1999, 142 pp.
(21) G. E. Rusconi, “Laici e cattolici oggi” (“Laicos e católicos, hoje”) em Il Mulino, nº 388 (março-abril de 2000), pp. 209-221
      Equipe Editorial da Revista Humanitas
    Fonte: Revista Humanitas
Link: http://www.humanitas.cl
Tradução: Quadrante  

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