quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O MONAQUISMO - DOS PRIMÓRDIOS AO SÉC. VII MARIA ESTER VARGAS *

INTRODUÇÃO

O objecto do presente estudo é o monaquismo, que constitui o grande alicerce para a expansão do Cristianismo à escala mundial. Não é nosso propósito desenvolver este tema relativamente ao período do seu grande apogeu - Idade Média -, mas sim referir-nos às suas origens e seus antecedentes, de modo a podermos compreender melhor como se chegou a um período tão áureo na vida monacal medieval. Debruçar-nos-emos, pois, sobre o tempo em que o Monaquismo nasceu, à margem da Igreja oficial, que tinha dificuldade em reconhecer o valor e a utilidade que os mosteiros poderiam ter na expansão e afirmação do ideal Cristão,1 por suspeitar que eles espalhavam doutrinas duvidosas, para depois ir ganhando terreno no seu seio, transformando-se num meio imprescindível na afirmação da doutrina de Cristo.
Focaremos, igualmente, a evolução e o percurso do monaquismo, primeiro no Médio Oriente, seguindo-se o Norte de África e, finalmente, a Europa Central e Ocidental. Tentaremos demonstrar a importância e o contributo das principais Regras que ajudaram a fornecer bases bem precisas para "uma vida monástica mais consistente"2.
Em capítulo detalhado, desenvolveremos com maior pormenor a questão do monaquismo nas Ilhas Britânicas, com especial relevo para o monaquismo celta, que teve características próprias e bem definidas.
Tentaremos demonstrar que a Cristianização das Ilhas Britânicas não foi um processo pacífico, e que a uma determinada altura estabeleceu o caos e a confusão, devido à coexistência de várias correntes da vida monástica: a Celta e a de Roma.
Deter-nos-emos no Sínodo da Whitby (673), do qual resultou "a unificação religiosa da Inglaterra sob a orientação de Roma"3, embora tenham persistido ainda alguns redutos do Monaquismo Celta, sobretudo na Irlanda.
Escolhemos este facto por considerarmos que ele culmina um período bem demarcado do Monaquismo Ocidental - o seu nascimento e implantação, que será fundamental para o período de grande apogeu da vida dos mosteiros que se lhe seguiu e que, inclusivamente, originou a criação e a difusão de novas ordens monásticas.
Quanto à metodologia de trabalho utilizada, a mesma teve por base bibliografia variada e que é indicada em secção própria, de modo a possibilitar o confronto de ideais e a superação de lacunas que uma visão unilateral obrigatoriamente teria.
Esperamos que o nosso estudo ajude a uma reflexão e a uma sistematização sobre a maneira que os homens encontraram de chegar a Deus, tentando atingir a perfeição, meditando, alheando-se das coisas terrenas através da oração, humildade e obediência. A esse modo de vida religiosa se chamou MONAQUISMO.

CONCEITO DE MONAQUISMO

Ao depararmos com o temo Monaquismo, de imediato nos surge a ideia de isolamento e de alheamento do mundo. Com efeito, o Monaquismo é um sistema de vida de consagração à causa divina, que tenta chegar a Deus passando pelo recolhimento e uma vida de dedicação e interiorização.
A esta palavra associa-se uma outra - monge -, que deriva do grego monos, (único, só). Etimologicamente, designa aquele que vive solitário, dedicando a sua vida ao serviço de Deus, dedicação essa assumida livremente e que pressupõe o cumprimento das normas estabelecidas numa Regra, baseando-se sempre nos conceitos de castidade, pobreza e obediência.
Embora tenha assumido formas diferentes, como iremos verificar, o que é certo é que o Monaquismo tem sido uma constante na vida de várias religiões, à partida completamente díspares (ex: Monaquismo Budista versus Monaquismo Cristão), revelando-se acima de tudo como "algo universal e inerente à condição dos fiéis que pretendem desenvolver a sua vida espiritual no sentido da perfeição"4.

ORIGENS DO MONAQUISMO CRISTÃO

Desde os primórdios da Cristandade que os ideais livremente assumidos de virgindade e castidade em louvor do Reino de Deus foram motivo de admiração. Essa escolha era feita "por fiéis de ambos os sexos que abraçaram uma vida de plena imitação de Cristo e que, para além dos votos referidos, praticavam a oração e a mortificação paralelamente com obras de misericórdia"5.
Como causas deste procedimento, poderemos referir a "repugnância pela imoralidade reinante"6 e, sobretudo para as mulheres, o facto de esse tipo de vida lhes proporcionar uma certa emancipação, tendo em conta a servidão social que o matrimónio assumiia na época.
É curioso realçar o facto de, na maior parte dos casos, estes votos serem feitos sem quaisquer solenidades públicas, permanecendo as pessoas no seio das suas famílias, não tendo vestuário que os distinguisse das outras pessoas.
A partir do século IV começou a ser habitual a realização de um ritual de consagração das virgens, - o velario -7 que costumava ter lugar nas grandes festas litúrgicas e na presença de fiéis.
Este tipo de consagração a Deus foi-se generalizando cada vez mais, tornando-se quase numa moda, sobretudo nos meios aristocráticos. A ilustrar esta afirmação, poderemos citar o exemplo de Paulino de Nola e Terásia, casal da nobreza imperial romano-cristã, que "se desfizeram de patrimónios imensos e assumiram uma existência de fiéis discípulos de Cristo, segundo os ensinamentos do Evangelho"8. Importante se torna referir aqui a figura de São Jerónimo, que dirigiu espiritualmente os círculos ascéticos de nobres senhoras romanas, primeiro em Roma e depois na Palestina9.
As "virgens consagradas" terão sido, na nossa opinião, o embrião da vida monástica, uma vez que a sua praxis tinha a ver com a renúncia do mundo pelo ideal de Cristo, para além do facto de já possuírem uma forma de vida consagrada, ainda que muito incipiente.

MONAQUISMO ORIENTAL

Mas onde, e quando, terá sido a origem do fenómeno normalmente designado por Monaquismo, ou Monacato, se utilizarmos a terminologia de Fortunado de Almeida10?
Ao certo, não se sabe. É comum designar-se monge aquele que segue uma Regra antiga, mas o que é certo é que, muito antes de se terem estabelecido Regras, já havia formas de vida monástica baseadas na segregação do mundo - o contemptus saeculi -, como condição prévia para a purificação interior, abrindo o caminho da contemplação divina11.
João Cassiano, que depois de passar muitos anos entre os monges da Palestina, Egipto e Constantinopla se estabeleceu na Provença e fundou dois mosteiros em Marselha, onde permaneceu o resto da sua vida, considerava que o Monaquismo já vinha do tempo dos Apóstolos12. Outros apontam para a época de Jesus. J. Allegro, no seu livro O Mito Cristão e os Manuscritos do Mar Morto aponta para o estudo dos documentos encontrados já neste século nas margens do Mar Morto e que dão testemunho da vida monástica (essénios e terapeutas) na época de Jesus Cristo, e que teriam influenciado os primeiros Cristãos. Estas comunidades espalharam-se até à Tebaida e parece ter sido nessa região - fronteira entre a Ásia e a África -, que a tradição diz ter nascido o Monaquismo Cristão13.
Com a promulgação da liberdade de culto e religião decretada pelo Édito de Milão de Constantino, ser Cristão passou a não comportar os riscos de outrora,
Alguns, desejando levar uma vida mais fervorosa, menos enredada nas preocupações do mundo, partiram para o deserto praticando aí uma vida de pobreza e humildade de acordo com os preceitos do Evangelho, tendo sido designados por Padres do Deserto.
A maior parte vivia isolada, por vezes com alguns discípulos à volta de um mestre, só voltando a encontrar-se com a comunidade para a celebração da liturgia. Muito pouco se sabe sobre a sua vida, que apenas veio até nós através dos Apotegmas - textos que nos relatam os seus actos através das suas palavras e que nos apresentam homens submetidos à tentação que se dedicam a viver o ideal de perfeição ensinado por Jesus14.
Como expoente e símbolo deste tipo de vida monástica apelidada de anacoreta ou eremita, temos Santo António do Egipto, também conhecido por Santo Antão, que influenciou directamente através do seu próprio exemplo, e indirectamente através do espírito, um grande número de aderentes ao anacoretismo, o qual se revestia de duas formas: absoluto, (solidão total) e temperado (sob a direcção de um "pai" espiritual)15.
Graças à sua acção, esta forma de Monaquismo espalhou-se pelo alto Egipto, Palestina, indo até à Síria e à Mesopotâmia.
Mas o anacoretismo não foi a única forma de vida consagrada existente nesta época.
São Pacómio, coevo de Santo António do Egipto, trouxe ao Monaquismo novos elementos de grande importância - a vida em comum e a obediência a um superior religioso: cenobitismo16.
Ainda que considerada muito grosseira, a Regra de São Pacómio17 indicava qual a natureza dos trabalhos dos monges, dando indicações precisas sobre a alimentação, os jejuns, o sono, a oração, o silêncio, instaurando a autoridade de um superior. Os discípulos começavam agora a juntar-se, a compartilhar uma vida mais comunitária, afastando-se dos extremos dos anacoretas.
Depois de São Pacómio, o Monaquismo espalhou-se pelo Ocidente, não propriamente devido à divulgação feita pelos Monges Egípcios, mas sobretudo devido às viagens que os padres do Ocidente (entre eles São Basílio de Cesareia, São Jerónimo e João Cassiano) efectuaram ao Oriente, após o que difundiram o exemplo egípcio que tanto os marcou.
Importa no entanto salientar que o Monaquismo Oriental, principalmente a corrente anacoreta, assentava num cristianismo popular, "onde dominava uma mente animista que via demónios em toda a parte e que tinha tendência para exageros"18. Assim, havia os que viviam em cima de colunas, sendo apelidados de estilistas, outros em cima de árvores, etc,, com o objectivo de reduzir a humanidade ao estado anterior ao do pecado original. Com São Pacómio nota-se já uma certa evolução, sobretudo em termos de organização, o que aliás é provado pela grande influência que viria a exercer posteriormente.

Ainda uma referência muito especial para o Cristianismo Copta que, de certa forma, foi uma consequência do Monaquismo Egípcio19. Graças à sua acção, O Cristianismo penetrou amplamente nas populações de camponeses de língua copta, principalmente porque os monges eram na sua maioria gente de condição humilde. Desde os tempos de São Atanásio, eram apoiantes acérrimos dos Patriarcas de Alexandria, a quem apelidavam de chefes religiosos e nacionais. Após o Concílio de Calcedónia (451), os monges, desconhecedores das disputas teológicas, seguiram incondicionalmente os seus patriarcas e caíram na heresia monofisista, surgindo assim outra corrente Cristã desvinculada de Roma e de Constantinopla que se foi isolando cada vez mais, sobretudo desde a conquista islâmica do século VII, passando a ser conhecida por Cristianismo Copta20.

MONAQUISMO OCIDENTAL

Herdeiro das tradições orientais, o Monaquismo Ocidental teve um papel de extrema importância na consolidação do ideal cristão.
Na Grécia, foi São Basílio, bispo de Cesareia, quem desenvolveu e organizou a vida dos ascetas, tendo escrito algumas "Regras", que ainda hoje são observadas no mundo ortodoxo.
Aliás, a fundação de mosteiros no Ocidente está sempre ligada à elaboração de um conjunto de normas orientadoras na organização dos Institutos de Vida Consagrada, utilizando a terminologia do actual Código do Direito Canónico.
Santo Agostinho de Hipona foi outro nome deste período, escrevendo, igualmente, uma Regra que viria a obter grande sucesso na Idade Média. São Martinho de Tours notabilizou-se também, através da fundação de mosteiros, entre os quais se salientam os de Ligugé e Marmoutier. Referência ainda para os nomes de Columba e Patrício, grandes impulsionadores do monaquismo celta.
Primordial se torna falar de São Bento de Núrsia - "last but not least" -, cuja Regra iria reger durante vários séculos quase todos os mosteiros do Ocidente, tornando-se numa grande personagem, senão maior, entre aqueles que fundaram mosteiros e escreveram Regras, sendo justamente chamado "Pai dos Monges do Ocidente"21 e designado Patrono da Europa.
Para além de se basear nas suas próprias experiências recolhidas nos mosteiros que fundou e onde viveu (Subiaco e Montecassino), a sua Regra, estabelecida em meados do sec. VI, inspirou-se nas que então se praticavam: as de Pacómio, Agostinho e Cassiano.
Contudo, segundo Souther, R.W., no seu livro A Igreja Medieval, "parece hoje indiscutível que São Bento copiou quase literalmente grande parte da sua Regra, incluindo algumas das passagens mais famosas acerca do ensino espiritual, da Regra de um autor anterior conhecido como Mestre"22. De acordo com a fonte citada, as duas Regras apresentam no entanto algumas diferenças, entre as quais se salientam:
REGRA DO MESTRE
REGRA DE SÃO BENTO
- muitas generalidades, com pouca prática; longas descrições da vida no Paraíso e de natureza monástica.
- aspectos demasiado particularizados para serem significativos:
Regulamentação acerca do tossir, cuspir e respirar pelo nariz por forma a não ofender os anjos.
- revela espírito impetuoso e investigador do Mestre.
- o Abade parecia preocupar-se mais com os que se fingiam doentes.
- a obediência absoluta era uma virtude apenas alcançável por uns quantos monges perfeitos.
- omitiu-se tudo isto, conservando apenas o que tinha interesse prático, resumindo tudo o mais possível e conferindo-lhe claridade.
- deu grande ênfase à rotina exacta dos ofícios diários.
- prova-se a humildade que exigia aos próprios monges.
- o abade destinava-se acima de tudo a cuidar dos doentes.
- a obediência absoluta era uma virtude alcançável por todos os bem-aventurados.

Mas como e porque é que esta Regra se tornou o expoente máximo do Monaquismo Ocidental?
Em nosso entender, isso ficou a dever-se ao facto de a Regra fornecer bases concretas e precisas para uma vida monástica, conservando, todavia, uma certa flexibilidade, pretendendo indicar um caminho para uma nova ordem e incluindo pormenores de vida diária, indicações sobre os salmos a recitar, quais os livros a ler e sobre as pessoas responsáveis pelas várias actividades, entre outros aspectos da vida dos monges. Sendo abrangente, a Regra de São Bento tem como princípio base da sua doutrina o ideal de obediência de corpo e alma:

- aos princípios espirituais contidos nos Evangelhos;
- à Regra;
- ao abade;

"Aqueles que cumprem, devem, pelo trabalho de obediência, regressar a Deus, que abandonaram devido ao pecado da desobediência"23.
A figura do abade tem grande peso na ordem beneditina, considerado o vigário de Cristo na Comunidade. Logo, a sua palavra tem que ser ouvida como se fosse a do próprio Deus. O abade vai ter na Regra beneditina um papel de consolador e encorajador, sobretudo relativamente aos que incorrem na pena de excomunhão por cauda da desobediência24. Aliás, esta ternura tão pouco habitual em regras anteriores, vai ser uma das principais características da Ordem, conferindo-lhe um sentido universal, destinada a todos os homens da Terra, misturando severidade e rigor com ternura, apoio e compreensão.
A Regra de São Bento ajudou a diluir a ideia defendida no início do séc. VI, e suportada por Santo Agostinho, segundo a qual era difícil que um bom monge se tornasse um bom clérigo. "No one can both perform ecclesiastical (clerical) duties and remain by due order under monastic rule"25.
Com efeito, a Regra possibilitou a evolução e preparação dos monges, que inicialmente eram analfabetos na sua maioria, não tendo formação adequada para exercerem funções de presbíteros. A insistência numa vida em comunidade fechada - a estabilidade era um dos princípios bases da Regra-, produzia um tipo de monge mais civilizado que podia ser aproveitado para o clero secular após uma preparação adequada.
Quando São Bento faleceu, apenas três mosteiros abservavam as suas prescrições e trinta anos mais tarde o próprio mosteiro de Montecassino era destruído pelos Lombardos.
Ao ser eleito Papa, Gregório Grande, antigo monge beneditino, encarregou-se de propagar a Regra da sua Ordem tendo em mente dois objectivos bem definidos26:

1. favorecer o monaquismo, na medida em que era melhor para a expansão do Cristianismo;
2. desenvolver uma legislação unificada sobre a qual poderia exercer maior controle.

No final do seu pontificado já uma grande rede de mosteiros beneditinos cobria a Europa, entre os quais se salientaram as abadias de Jarrow, Malmesbury e Westminster, na Inglaterra, bem como as fundações antigas reconvertidas de Lérins e Marmoutier.
Gradualmente, e com o grande incremento dado por Gregório o Grande, o ideal beneditino foi-se espalhando e alicerçando tendo absorvido até a Regra de Columba, na Irlanda.
A Península Ibérica foi também influenciada pela corrente monástica que então se vivia na Europa.
De imediato ressaltam dois nomes: São Martinho de Dume, que na segunda metade do séc. VI trouxe à Galécia a doutrina do Monaquismo Oriental; de São Frutuoso de Braga, monge visigodo propulsor de um movimento ascético que sobreviveu à invasão islâmica, tendo composto uma Regra para monges e que mais tarde originou uma Regra comum.27.
No reino visigodo cristão vários Padres Hispânicos elaboraram Regras. Entre eles, salientaram-se São Leandro, com uma Regra para Virgens, dedicada a sua irmã Florentina, e Santo Isidoro, cuja Regra se destinou ao mosteiro Honorianense, na Bética.
A vida monástica na Hispânia estava subordinada aos prelados diocesanos-bispos, que tinham o direito não só de escolher o abade dos mosteiros mas também o de corrigir os excessos cometidos contra a Regra.
Este facto demarcou o monaquismo da Espanha goda do ideal beneditino, que impunha que o abade fosse eleito pela Congregação tendo a partir desse momento papel soberano sobre toda a comunidade.
No que se refere à província da Lusitânia, um dos seus mosteiros mais antigos foi o do Lorvão, segundo Fortunato de Almeida28, sendo provável que a sua fundação date de meados do séc. VI e que, a par dos mosteiros de Dume e de São Martinho de Tibães, constitui um marco importante da vida monástica em território que posteriormente viria a ser Portugal29.

O MONAQUISMO NAS ILHAS BRITÂNICAS

A corrente monástica nas Ilhas Britânicas e, em especial, na Irlanda revestiu-se de características muito próprias que a demarcaram relativamente a outras regiões.
Com efeito, quando o Cristianismo espalhava a sua influência em ambas as margens do Mediterrâneo, a Inglaterra encontrava-se ainda sob o domínio de Roma. A lenda e a tradição falam das viagens à Bretanha (hoje Grã-Bretanha) de Paulo, Filipe e José de Arimateia, bem como da fundação cristã em Glastonbury. Contudo, tudo isto não passa de uma mera hipótese, à qual se vem juntar a ideia de que até mesmo entre os romanos, que se encontravam na Bretanha durante o período de ocupação, alguns podiam ter ouvido e aceitado a mensagem do Cristianismo30. A primeira menção a cristãos na Grã-Bretanha aparece no Tratado contra os Judeus (202), de Tertuliano, no qual se faz referência a zonas da Bretanha inacessíveis aos Romanos, mas onde já vigoravam os ensinamentos de Cristo.
Em 314, por ocasião do Concílio de Arles, três bispos representaram a Bretanha, o que denota já um avanço considerável da Igreja numa base diocesana. Anos mais tarde, em 359, alguns bispos britânicos estiveram presentes num dos maiores concílios da Igreja - o de Rimini, ainda que com uma fraca representação.
Com excepção para Santo Albano, que no dizer do Venerável Bede, é o primeiro cristão digno de registo na Bretanha, é a partir do séc. V que passa a ser possível distinguir as grandes personalidades no processo de cristianização das Ilhas Britânicas, e em especial da Irlanda. São Patrício surge então como responsável pela chamada "conversão da Irlanda", sendo reconhecido como herói nacional. Considerada uma ilha bárbara, a Irlanda nunca se integrou no Orbis Romanus31. São Jerónimo referia-se aos seus habitantes em termos pouco lisonjeiros e o espírito irlandês sempre se manifestou de um modo muito particular, envolto numa auréola de mistério e magia.
Tendo passado alguns anos da sua juventude nesta ilha, para onde tinha sido levado como escravo aos quinze anos, Patrício ficou sempre marcado pelo povo irlandês. Conseguiu escapar ao seu cativeiro e refugiou-se na Gália, onde entrou em contacto com o movimento monástico em Lérins, sob a jurisdição de São Martinho de Tours. Após ter sido sagrado bispo em Roma, regressou à sua amada Irlanda, ouvindo e correspondendo ao "chamado das crianças que ainda não tinham nascido"32. Fixando residência em Armagh, Patrício passou o resto da sua vida a lutar contra o paganismo das tribos irlandesas convertendo pessoas, baptizando e ordenando membros do clero. O seu objectivo era bastante ambicioso, pois pretendia implantar na Irlanda o sistema diocesano que tinha visto na Gália, o que não era fácil, dada a inexistência de muitas cidades que pudessem ser centros de governo, para além do facto de Patrício ter de "combater" a grande influência das escolas de bardos que proliferavam na ilha. O seu grande esforço missionário foi de tal ordem que conseguiu converter a Irlanda sem choques nem violências servindo-se do jogo de concorrência com os antagonistas e da manifestação de um poder espiritual superior33. Tal facto foi de importância capital não só para a ilha em causa, mas também para todo o Cristianismo, pois realçou e provou o seu carácter de universalidade, dado que se mostrou passível de adaptação a formas de culturas diferenciadas, dando-lhe uma nova vitalidade. A evolução da Igreja Irlandesa foi tão rápida, sobretudo em relação às instituições monásticas, que pouco se nota nela a influência secular. Aliás, consideramos ser este um ponto de oposição entre o monaquismo celta e o europeu e um dos seus traços mais característicos. Senão, vejamos:
MONAQUISMO EUROPEU
MONAQUISMO CELTA
- o bispo tinha a jurisdição dos mosteiros na sua diocese.

- o bispo tinha plenos poderes.





- tinha funções administrativas.
- o abade era a entidade soberana e muitas igrejas tinham alguns bispos entre os seus monges.
- o bispo não tinha jurisdição territorial
- o monge ascendia ao episcopado por causa da santidade da sua vida e eram-lhe atribuídos os poderes de:
- ordenação;
- confirmação;
- não tinha funções administrativas, as quais eram exercidas por um abade.

À medida que São Patrício viajava, eram fundados novos mosteiros, alguns deles tão grandes que incluíam alguns milhares de monges que aí se recolhiam com o principal objectivo de se prepararem para aumentarem o seu grupo baptizando novos monges 34. É a época do monge missionário, traço característico do monge celta, que quer levar o Evangelho a toda a parte, fazendo da sua vida uma "peregrinação" por Cristo.
Quanto à existência de Regras, não se seguia nenhuma em especial, podendo cada mosteiro adoptar a que achasse mais conveniente. Contudo, continham todas a mesma filosofia de base, que se apoiava numa grande rigidez para disciplinar e controlar o grande número de pagãos recém-convertidos. A austeridade e a rigidez tornaram-se, deste modo, numa terceira característica do monaquismo celta, apontando para a total renúncia da vida mundana, bem como de todos os prazeres dos sentidos, a favor de uma vida contemplativa de oração, com uma tendência para a vida de eremita, ainda que integrada numa comunidade. Apesar de parecer uma contradição com o que atrás referimos, não nos podemos esquecer da influência que o monaquismo oriental exerceu no monaquismo celta. Esta questão do fomento de vida contemplativa no seio da austeridade é ainda outro ponto distanciado entre este tipo de monaquismo e o beneditino, mais flexível e mais virado para a vida comunitária.
A finalidade dos dois casos era atingir a perfeição tendo Cristo como modelo, "divergindo basicamente no modo de actuação e implementação das Regras".35
Enquanto o Cristianismo na Irlanda ia progredindo, na Inglaterra tinha sido obrigado a retroceder devido às invasões anglo-saxónicas. Nas zonas conquistadas, o Cristianismo foi destruído e praticamente extinto, tendo persistido apenas em zonas mais recônditas, como as montanhas do País de Gales, para sermos fiéis ao relato de Gilda36. Tornando-se, todavia, limitado e insular, parece não ter feito grande coisa para converter os Saxões, o que para alguns historiadores, entre os quais se salienta Bede, foi um aspecto negativo da situação vivida em Gales. Mesmo assim, aparece no Séc. VI como modelo de missionarização, a par da Irlanda.
Após o falecimento de São Patrício, a vida monástica continuou a ser uma constante na Irlanda, com o mosteiro a ser o centro irradiador da organização e do trabalho. Segundo Southern37, o maior mosteiro celta era o de Bangor, em Belfast Lough. Daqui saiu São Columbano que, acompanhado por doze companheiros, atravessou a Grã-Bretanha e a Gália, indo fundar um grande mosteiro celta nos Vosgues. Posteriormente, fundou outros em Fontaines e nos Apeninos (Bobbio), onde passou grande parte da sua vida. A disciplina nestes mosteiros celtas era severa, sendo obrigatório jejuar, rezar, trabalhar e ler todos os dias.
"A monk must live under the rule of the father and in the society of many brethren, yhat he may learn humility from one, patience from another, silence from a third, gentleness from a fourth. He is not to do what he likes. He is to eat what he is told to eat, he is to have only what is given to him, he must do the work which is set him, he must be subject to those whom he dislikes. He must go to bed so tired that he will fall asleep on the way, and he must rise before he has had as much sleep as he wants. When he is ill-treated, he must be silent. He must fear the prior of his monastery as a master and yet love him as a father: he must believe that whatever order he gives as good"38.
Este tipo de vida austera e dura, levando o monge a não passar o dia confinado ao claustro, é uma das características do monaquismo celta que permite distingui-lo do europeu continental. Aliás, já Columba, que fundou o mosteiro de Iona numa pequena ilha do extremo setentrional da Escócia, tinha defendido este tipo de vida monástica. Iona converteu-se num viveiro de bispos, de onde a Boa-Nova irradiou para as ilhas Orkney, Shetland, Faeroe, e até para a Islândia,39 tornando-se também o centro de partida para a evangelização de zonas da Europa Central.
Daniel Rops chama a tal facto o "milagre irlandês"40, que consistiu numa arrancada do Cristianismo a partir de um país que acabava de ser convertido e que em pouco tempo mostrou ser fiel ao espírito de missionarização. Segundo o autor citado, a Irlanda foi, nos tempos obscuros do Cristianismo, como que uma segunda Palestina, como que um novo berço de fé.
Pode-se dizer que no que se refere à Inglaterra, o grande impulsionador da sua conversão foi São Gregório, numa fase de instabilidade político-religiosa a que o país estava sujeito. Na verdade, os invasores germânicos tinham estabelecido núcleos isolados sobretudo na zona leste do país, que cerca de cinquenta anos mais tarde se tinham reduzido a sete - heptarquia41. A Igreja ia sobrevivendo, embora de forma precária, e o encontro de Gregório com os jovens anglos no Forum Romano foi um"turning point in the History of Latin Cristianity"42 . Ao tornar-se Papa, dedicou parte do rendimento do papado a comprar rapazes da Anglia como escravos, tendo em mente a sua educação na fé cristã e o seu posterior reenvio para a Inglaterra, já na qualidade de embaixadores de Cristo. Assim começou a interferência da Igreja de Roma em terras Saxónicas. Para reforçar essa interferência, Gregório enviou um dos seus monges, Agostinho, para o convento de Célio. Ao chegar a Kent, Agostinho teve a agradável surpresa de ser muito bem recebido por parte do rei Ethelbert, cuja esposa, Berta, filha de um rei franco, já era cristã. As conversões foram tão rápidas que Agostinho foi sagrado bispo na Gália e no dia de Natal baptizou 10.000 convertidos "in and around Canterbury"43, que se tornou na mais antiga sede episcopal da Inglaterra.
O entusiasmo foi tão grande que Gregório conferiu demasiada autoridade a Agostinho, passando por cima dos bispos britânicos que tinham mantido acesa a chama do Cristianismo durante os anos em que a Inglaterra tinha regressado ao ateísmo44.
"Nunca iremos pregar a nossa fé a essa raça cruel de estrangeiros, que à traição nos despojaram da nossa terra natal" - deste modo reagia o abade de Bangor ao pedido de Santo Agostinho no sentido de praticar a caridade com os Anglos. Recusando-se então os bispos-monges celtas a cooperar com a missão de Roma e a tentar chegar a acordos sobre assuntos que distinguiram as duas correntes: celta e romana, "the chance of a united church in Britain was lost for centuries45."
Será preciso então lutar, entrando-se num período de fracassos e de êxitos, com avanços e recuos, de homens violentos e de figuras santas, como Paulino, chefe da missão romana em Northumbria, e Aidan, fundador de muitos mosteiros, entre os quais se destaca o de Whitby, sob a direcção de Hilda. Aidan deslocava-se a pé por toda a diocese pregando, baptizando, confirmando e ordenando, sempre acompanhado por monges e pelo próprio rei Oswaldo, que lhe servia de intérprete numa manifestação de declarada aliança entre a Igreja e o Estado.
Como atrás referimos, as duas correntes - celta e romana - , coexistiram nas Ilhas Britânicas, ora conseguindo posições, ora perdendo-as num "combate" em nome de Deus e com duas diferenças de fundo que iam desde a celebração da data da Páscoa à tonsura, passando pelo próprio ritual ou Liturgia.
Em meados do séc. VI, punha-se a questão de saber se a Igreja de Northumbria deveria obedecer a Roma ou a Iona, que continuava a ser base da Igreja Celta. Tal divergência impedia a unidade religiosa da Inglaterra.
Perante tal situação, o rei Oswaldo, de Northumbria, decidiu convocar uma reunião em Whitby em 664, com representantes das duas correntes, de modo a tentar chegar a um possível acordo, partindo da questão há muito polémica da marcação da data da Páscoa. Tal reunião seria de importância capital, uma vez que dela resultou a unificação religiosa da Grã-Bretanha, subordinando-a a Roma. Esta decisão ficou a dever-se sobretudo ao próprio rei, que, segundo Moorman46 agiu sensatamente pois, caso tivesse tomado outra posição, a Igreja de Inglaterra teria ficado isolada e não teria acompanhado a corrente da Igreja Católica que se espalhava pela Europa.
"The king said: Peter is the guardian of the gates of heaven and I shall not contradict him. I shall obey to his commands in everything to the best of my knowledge and ability; otherwise, when I come to the gates of heaven, there may be no one to open them, because he who holds the key has turned away."47.
A missão escocesa de Iona cessou funções tendo os monges celtas retirado para regiões mais afastadas da Irlanda onde continuaram ainda a defender os seus princípios.
O Sínodo de Whitby não pôs ponto final às divergências nem tão pouco garantiu a estabilidade religiosa imediata. Seguiu-se um período de transição, com nomes de relevo como São Cuthbert e São Teodoro de Tarso, mas importante foi o facto de, com o Cristianismo Romano, terem penetrado em Inglaterra o Latim e os elementos do Direito Romano, que libertaram o país do seu isolamento. Os mosteiros anglo-saxões serão, com efeito, os reservatórios a partir dos quais se espalharão mais tarde os valores culturais sobre o continente.
Por outro lado, ao conquistar esses povos radicalmente estranhos à civilização latina, o catolicismo romano estendia para além dos antigos limites da Europa uma nova autoridade que já nada devia ao imperador e em que o Papa aparecia como único soberano.
Libertada de qualquer ligação com os poderes civis, essencialmente por ser fundação directa do Papado, a Igreja Inglesa conduzirá os seus destinos mais livremente do que as do Continente Europeu, mantendo-se fiel à Santa Sé até ao período da Reforma.
Tudo isto, devido a esse movimento ímpar na História ao qual se chamou MONAQUISMO.
 


BIBLIOGRAFIA

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CARPENTER, S.C. The Church in England (597-1688). John Murray, 1954.
COMBY, Jean Para Ler a História da Igreja (1). Colecção Iniciação, Editorial Perpétuo Socorro, Porto, 1988.
DEANESLEY, Margaret A History of the Medieval Church 590-1500. Methuen, London, 1969.
DONINI, Ambrogio História do Cristianismo- das Origens a Justiniano. Edições 70, Lisboa, 1988.
LUCAS, Barbara Nova Enciclopédia Católica (Vol. 5). Editora Renes, Rio de Janeiro, 1969.
MOORMAN, John A History of the Church in England. London, Adam & Charles Black, 2nd Ed., 1967.
MURRAY, Bruno As Ordens Monásticas e Religiosas. PEA, Lisboa, 1986.
OLIVEIRA, P. Miguel de História Eclesiástica de Portugal. União Gráfica, Lisboa, 4th Ed., 1968.
ORLANDIS, José História Breve do Cristianismo. Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1985.
ORLANDIS, José Historia de la Iglesia I, Ediciones Palabra. Madrid, 6ª Ed., 1987.
ROPS, Daniel A Igreja dos Tempos Bárbaros. Col. História da Igreja de Cristo, Quadrante, São Paulo, 1991.
SOUTHERN, R.W. A Igreja Medieval. Col. História da Igreja II, Ulisseis, Lisboa, 1970.

OUTRAS PUBLICAÇÕES

"Cragside: O Palácio Mágico Moderno", in Suplemento do Jornal de Notícias, Porto, 23.02.92.
Facts about Ireland, Department of Foreign Affairs, Dublin, 1981, 5ª Ed.
Revista D.N. Magazine, Suplemento do Diário de Notícias, Lisboa, 19.91.92.
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* Equiparada a Assistente do 2º triénio da ESEV.

1 Bruno Murray, - As Ordens Monásticas e Religiosas, Pág. 26.
2 Jean Comby, - Para Ler a História da Igreja 1, Pág. 90.
3 John Moorman, - A History of the Chruch in England, Pág. 21.
4 Jean Canu, - Les Ordres Religieux Masculins, Paris, Libr. Asthèmes Fayard, 1959, Pág. 10.
5 José Orlandis, - História Breve do Cristianismo, Pág. 45.
6 Jean Combi, - Para Ler a História de Igreja 1, Pág. 85.
7 José Orlandis, - Historia de la Iglesia, Pág. 112.
8 José Orlandis, - vidé nota 5, Pág. 45.
9 idem.
10 Fortunato Almeida, - História da Igreja em Portugal, Pág. 51.
11 José Orlandis, - Historia de la Iglesia, Pág. 112.
12 Bruno Murray, - As Ordens Monásticas e Religiosas, Pág. 15.
13 idem.
14idem.
15 idem, Pág. 24.
16 José Orlandis, - História Breve do Cristianismo, Pág. 46.
17 Bruno Murray, - As Ordens Monásticas e Religiosas, Pég. 25.
18 Jean Comby, - Para Ler a História da Igreja, Pág. 86.
19 José Orlandis, - Historia de la Iglesia, Pág. 116/7.
20 Copta - vem de "gobt", palavra árabe derivada do termo grego "aigyptios", designação dos antigos habitantes do Egipto. In "Com Butros Ghali os Coptas saem da sombra" in D.N. Magazine, 19.01.92, Pág. 10.
21 José Orlandis, - História Breve do Cristianismo, Pág. 47.
22 R.W. Southern, - A Igreja Medieval, Pág. 229-30.
23 idem, Pág. 226.
24 idem, Pág. 227.
25 Margaret Deanesley, - A History of the Medieval Church 590-1500, Pág. 40.
26 Bruno Murray, - As Ordens Monásticas e Religiosas, Pág. 31.
27 José Orlandis, - Pequena História do Cristianismo, Pág. 47.
28 Fortunato de Almeida, - Histórtia da Igreja em Portugal, (Vol. I), Pág. 52-3
29 idem, Pág. 52.
30 John Moorman, A History of the Church in England, Pág. 4.
31 Daniel Rops, A Igreja dos Tempos Bárbaros, Pág. 218.
32 idem, Pág. 219.
33 idem.
34 idem, Pág. 217.
35 S.W. Southern, A Igreja Medieval, Pág ?
36 John Moorman, A History of the Church in England, Pág. 4.
37 S.W. Southern, A Igreja Medieval, Pág. 36.
38 idem, Pág. 36/7.
39 Daniel Rops, A Igreja dos Tempos Bárbaros, Pág. 221.
40 idem, Pág. 225.
41 idem, Pág. 237.
42 R.H. Hodgkin, History of the Anglo-Saxons, in Moorman, op. cit. Pág. 259.
43 in Moorman, op. cit., Pág. 240.
44 idem, Pág. 268.
45 idem, Pág. 21.
46 in Bede, Ecclesiastical History of the English People, Pág. 193.
47 in Moorman, op. cit., Pág. 241.

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