sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Outono da Idade Média, obra de Huizinga, chega ao País


Para discuti-la, o 'Estado' reuniu o francês Jacques Le Goff e o brasileiro Hilário Franco Júnior

30 de outubro de 2010 | 6h 00
Andrei Netto - O Estado de S. Paulo
Desde o Renascimento e, mais tarde, o Iluminismo, em línguas europeias como o português, o inglês ou o francês, os vocábulos "medieval" e "moderno", além de definirem duas eras distintas da História, designam uma dicotomia: de um lado, as trevas, o ultrapassado, o atraso; de outro, as luzes, o atual, o progresso. Essa visão de mundo, decretada por humanistas do século 16 e reforçada por filósofos do século 18, trazia embutida a ideia de que, ao deixar a Idade Média, seus valores e seus princípios, a Humanidade alcançava a passarela para um futuro mais justo, democrático e legítimo: a Idade Moderna.
Andrei Netto/AE
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Jacques Le Goff: historiador é reconhecido como o maior medievalista vivo

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Essa visão dos "medievalismos", cujos fragmentos de preconceito ainda perduram, começou a ser desconstruída pelas mãos do historiador americano Charles Haskins, autor de The Renaissance of the Twelfth Century, de 1927.
Antes dele, porém, outro especialista em história medieval, o holandês Johan Huizinga (1872-1945), já havia traçado em cores a vida, os valores, os hábitos e as emoções naquele período em seu clássico O Outono da Idade Média, que chega na íntegra às livrarias brasileiras, traduzida diretamente de seu idioma original.
Uma das virtudes tácitas de Huizinga em sua obra-prima é sua habilidade de relativizar as "certezas". Virtuoso de sua disciplina, o autor reconhecia as contradições da História, que ajudam, por exemplo, a entender o dualismo medieval-moderno. "É bem verdade que cada época deixa mais rastros de sofrimento do que de felicidade. Suas desgraças se tornam sua história", ponderou. No mesmo trecho, Huizinga apela à convicção "talvez instintiva" para elaborar uma equação: a soma de paz e felicidade destinadas às pessoas não pode variar muito de uma época à outra. "O brilho do final da Idade Média também não passou despercebido: ele sobreviveu na canção popular, na música, nos horizontes quietos da pintura de paisagem e nos rostos sóbrios dos retratos", escreveu, em seu tom romântico e subjetivo.
Raros são os livros de História que se tornam história, assim como poucos são os historiadores lembrados pela posteridade. Esse é o caso de Huizinga e de sua obra-prima.
Publicado em 1919, O Outono da Idade Média (Herfsttij der Middeleeuwen) derrubou as fronteiras que outros pesquisadores haviam construído entre a Idade Média tardia e o Renascimento. Para o holandês, a transição vivida no século 15, um ponto de virada da civilização ocidental, foi muito mais fluida do que supúnhamos. A Idade Média era, sim, um período de fome, doenças, miséria, ódio, mas não apenas isso. Era também tempo de prazeres, de ideais, de arte e de amor.
Para explorar os meandros, as sutilezas, os erros e acertos da obra de Huizinga, o Sabático – que na quarta-feira, em parceria com a editora do livro, a Cosac Naify, promoveu um debate na Universidade de São Paulo com os professores Lorenzo Mammì, Marcelo Cândido da Silva e Tereza Aline Pereira de Queiroz –, propôs um encontro, por assim dizer, histórico. Em Paris, o caderno reuniu o historiador francês Jacques Le Goff, 86 anos, considerado o maior especialista do mundo sobre o tema, e seu ex-orientando brasileiro, o ex-professor da USP Hilário Franco Júnior, de 61 anos. No encontro, realizado no escritório do acadêmico francês, em sua casa, no 19.º distrito parisiense, Le Goff saudou a adoção do título O Outono..., e não o da primeira versão francesa da obra, denominada O Declínio da Idade Média. "Essa é uma leitura estúpida do livro", ressaltou em diferentes momentos.
Admiradores de Huizinga, Le Goff e Hilário travaram um diálogo fascinante e revelador sobre o autor, morto em De Steeg em 1945, durante a ocupação nazista da Holanda. A seguir, a síntese do encontro, marcado pela amizade – e pelo reconhecimento intelectual mútuo.

Hilário Franco Júnior – O Outono da Idade Média desenhado por Huizinga é tão magnífico que permitiu a Philippe Wolff tentar transformar o outono em primavera. Este é o nome de um livro de 1986: O Outono da Idade Média ou a Primavera de Tempos Novos. O que eu gostaria de saber é: o fim da Idade Média, segundo Huizinga, é realmente um outono ou é uma primavera?
Jacques Le Goff – Você, como historiador, sabe que mesmo que a História só possa ser construída a partir de documentos, baseada em pilares os mais sólidos possíveis, ela é aberta, e à medida que o tempo passa, as interpretações podem variar bastante. O Outono da Idade Média de Huizinga é um livro tão interessante que passado quase um século ele continua a ser lido, traduzido e se presta a novas interpretações. É preciso dizer que o período ao qual o livro se dedica, digamos um longo século 15, talvez também seja um dos mais mal estudados na Europa, e por isso ainda há novas descobertas e interpretações. Há uma exposição em cartaz hoje, no Grand Palais, com o título France Quinze Cent, que mostra como esse período foi uma mistura do apogeu da Idade Média e de afirmação do Renascimento. Eu creio que este seja o caso de uma virada histórica que não se parece com nenhum outro, porque se trata de um belo outono. A tradução francesa antiga era uma tradução estúpida ao se referir ao declínio da Idade Média.
No entanto, Huizinga compartilhava com muitas pessoas cultas da Europa do início do século 20 a ideia de que a Idade Média acabava no fim do século 15, um período marcado pela tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453, com a tomada de Granada e com a reunificação de toda a Península Ibérica pelos reis católicos, que haviam caçado os muçulmanos, e, sobretudo, pela descoberta da América de Cristóvão Colombo, que produziu o que poderíamos chamar de primeira globalização da história. Mas eu me pergunto se o nosso conhecimento desse período e nossas interpretações não mudaram um pouco.
No que me diz respeito, eu fui voluntariamente provocador ao falar de uma longa Idade Média que se prolongou até o século 18. Continuo a pensar que há uma certa verdade na ideia de que a Idade Média vai até o fim do século 18, se observamos aspectos essenciais, como a fome, as pestes, a indústria – a economia capitalista do século 18 é uma grande virada. O que ocorre é que, na verdade, nós voltamos à visão de Huizinga, continuando ou retomando a ideia de que do fim do século 15 ao século 16 acontece um certo número de mudanças profundas, dentre as quais a descoberta da América, a Reforma na Europa. Realmente há algo de novo no século 16. Mas o que me parece novo é que, mesmo que consideremos que o fim da Idade Média acontece no fim do século 15, ela não era decadente, não era triste, mas sim soberba, até exagerada. Vemos isso com os pintores flamengos e com a riqueza econômica das cidades flamengas e italianas, em particular Veneza, antes da descoberta da América, ou na moda da época, às vezes extraordinária.
Vejo hoje um retorno a Huizinga. De outro lado, ele soube no início do século 20 fazer viver a história que ele escrevia com qualidades, dons, procedimentos que não eram nada correntes na História. Em seu livro, Huizinga se mostra o precursor de um novo tipo de História que está em pleno desenvolvimento hoje, a história das emoções, a história das paixões, lançada há cerca de 20 anos pela historiadora americana Barbara Rosenwein. E isso é O Outono da Idade Média.
Franco Júnior – Como o senhor explica a pequena posteridade do livro de Huizinga? Seria em razão de uma certa instintividade que ele explora e que é mal compreendida por certos historiadores, que se consideram grandes cientistas e que veem grandes leis históricas, ou coisas do gênero?
Le Goff – Eu creio que, na realidade, a posteridade de Huizinga foi contida em grande parte pelo nascimento e pelo desenvolvimento de uma forma de fazer a História que alcançou grande posteridade, que é a Escola dos Annales. Mas, ao contrário do que possamos pensar, a história dos Annales é sobretudo uma história econômica e social, diferente do Outono da Idade Média. De qualquer forma, acho que o sucesso dos Annales contribuiu muito para bloquear a influência de Huizinga.
Franco Júnior – Deixe-me perguntar algo mais pessoal: o senhor falava há pouco de uma longa Idade Média. O senhor se sente um pouco tributário de Huizinga, desta visão de longo termo?
Le Goff – Sim, absolutamente. Não apenas de sua visão de longa duração, mas também da ideia de alargar o domínio da História. A meu ver, entre os grandes méritos de Huizinga estava procurar fontes às quais os historiadores não se interessavam muito, seja na arte, na literatura, nos costumes. Além disso, há no Outono da Idade Média uma busca da época no coração dos homens e mulheres e um olhar muito compreensivo sobre o "parecer". Essa combinação da busca do íntimo e da procura do "parecer" me soa avançada em relação ao momento mais ambicioso do início da Escola dos Annales – algo que ela não conseguiu completar porque traçar a história universal é um objetivo utópico.
Franco Júnior – Conceitos como representação, sistema de valores, temas como o corpo, a morte, as emoções, etc., tudo está presente em Huizinga. De certa forma, tudo prenunciava a Antropologia Histórica, que o senhor desenvolveu nos anos 70.
Le Goff – Sim. E isso me permite reconhecer minha dívida em relação a Huizinga, pelas pesquisas que fiz nesse sentido, em particular sobre o corpo e as imagens. No tema das imagens tive uma grande receptividade, porque um grupo de jovens historiadores o retomou e o desenvolveu, em particular sob a direção de Jean-Claude Schmitt, Jean-Claude Bonne, de Jérôme Baschet, na França, e também na Alemanha, com Hanz Belting. (Erwin) Panofsky também pode ser incluído. Houve um esforço, do qual participei, para alargar as fontes e o domínio da História, em particular em direção ao corpo e à exploração da imagem, que são diferentes da História da Arte tradicional.

Franco Júnior – Mas há uma diferença entre a forma com que Huizinga fazia a história das imagens, das representações, e a forma como a Escola dos Annales o fazia. Qual seria essa diferença essencial?
Le Goff – Eu creio que, apesar de seu charme, o livro de Huizinga é subjetivo demais. Podemos fazer uma história dos sentimentos, mas não podemos fazer História com sentimentos. Creio que a história das imagens desenvolvida a partir da Escola dos Annales era mais próxima das fontes, com métodos de análise mais científicos em relação às práticas de Huizinga, que eram mais literárias do que científicas, ao menos em relação ao tipo de ciência que é a História.
Franco Júnior – Sua ressalva sobre a história emocional das emoções me leva a outra questão: no prefácio da primeira edição, Huizinga diz que escrever o livro foi como "observar o profundo de um céu noturno, um céu vermelho como o sangue, pesado e desértico de um cinza chumbo ameaçador. O quadro que eu tracei é mais sombrio e menos sereno do que o que eu entrevi quando comecei a trabalhar". Minha questão é: esse quadro mais sombrio é um reflexo dos séculos 14 e 15, ou da Grande Guerra, que recém-acabava e que estava presente no espírito de Huizinga?
Le Goff – Eu acredito que seja a segunda hipótese, até porque não é assim que vemos o século 14 e o século 15. Eu insisti, talvez até um pouco demais, no lado subjetivo da obra de Huizinga. Mas não se deve esquecer que a subjetividade dos historiadores transparece um pouco frente ao horror, independente de qualquer esforço de se trabalhar cientificamente. Um dos primeiros historiadores, senão o primeiro historiador a ter acentuado a subjetividade de sua obra foi Jules Michelet, que foi uma fonte dos Annales. Muito do que Huizinga pôs em O Outono está em Michelet. Há uma outra tendência da História, da qual O Outono da Idade Média talvez seja uma produção tardia: é a veia romântica. A passagem que você acaba de ler é profundamente romântica.
Franco Júnior – Em um artigo de 1986, reproduzido na edição brasileira, Peter Burke, historiador inglês, diz que O Outono... é penetrado de nostalgia e pode ser considerado um caso de medievalismo romântico à maneira de Walter Scott e Gabriel Rossetti.
Le Goff – Devo admitir que em um momento dessa conversa eu pensei em Walter Scott. Ele é uma das minhas grandes fontes de pesquisa como historiador da Idade Média e é alguém que me aproxima de Huizinga. Mas para diversos historiadores o livro de Huizinga foi um verdadeiro pioneiro em um domínio que precisa continuar a ser explorado: o da História dos valores e dos sistemas de valores. O que satisfaz, faz chorar e viver as pessoas de uma época? Esse é um domínio que ainda não produziu toda a sua riqueza. A meu ver, por muito tempo, entre 1850 e 1930, a História ficou bloqueada pela história das ideias, além, é claro, da história tradicional. Sem os outros domínios, os homens perdem suas carnes. Aliás, eis uma palavra que convém a Huizinga: há carne no Outono da Idade Média.
Franco Júnior – Mas carne viva ou morta? Porque Huizinga revela uma certa obsessão pela morte, pela história da morte...
Le Goff – Há, sem dúvida, uma certa obsessão pela morte em O Outono da Idade Média, o que tem várias fontes. Antes de mais nada, a morte é um dos valores do século 15, que foi, por exemplo, o século das danças macabras. Outra prova da fascinação de Huizinga pela morte é o seu romantismo. E outra fonte de influência é o que você citou, a Guerra de 1914-1918, na qual a Holanda foi uma das vítimas.
Franco Júnior – Por duas vezes em sua entrevista de 1975, o senhor ressaltou a semelhança entre Huizinga e Lucien Febvre. Eu me pergunto se não poderíamos fazer o mesmo em relação a Marc Bloch. Digo isso porque o subtítulo de O Outono da Idade Média é Estudo Sobre as Formas de Vida e de Pensamento, o que me lembra o célebre capítulo de A Sociedade Feudal, A Condição de Vida e a Atmosfera Mental. É possível aproximar Huizinga e Bloch? Huizinga havia lido Bloch?
Le Goff – Estou mais ou menos certo que sim. Não tenho lembranças claras, para ser sincero, mas sei que me preocupei com esse assunto, e cheguei à conclusão de que Bloch teria lido Huizinga. E eu penso que, mesmo que Lucien Febvre tenha sido mais próximo da mentalidade, da sensibilidade de Huizinga, Marc Bloch também pode ter sido influenciado, ainda que com uma certa distância. Por exemplo, esse capítulo da Sociedade Feudal, que citamos frequentemente e que foi um dos grandes trechos deste livro, não era o tema que mais o interessava.
Franco Júnior – Ah, não? Isso me surpreende...
Le Goff – O que interessava a Marc Bloch era antes de mais nada a história econômica, a história social e, eu diria, a história da mitologia. Eu acredito que qualquer que fosse o parentesco e a influência de Huizinga sobre a Escola dos Annales e sobre seus fundadores, Lucien Febvre e Marc Bloch, os Annales deram à pesquisa histórica na Europa e na França direções que os afastavam de Huizinga. E creio que esse tenha sido um fator que bloqueou, em maior ou menor proporção, a difusão do trabalho de Huizinga.
Franco Júnior – Muito interessante... Na sua entrevista, o senhor diz que O Outono da Idade Média é um livro poético e que sua poesia expressa ao mesmo tempo sua grandeza e seu limite. Nós já discutimos esse ponto. Mas, no que diz respeito aos limites de Huizinga, no fim da Idade Média havia uma forte necessidade de dar formas ao sagrado. Mesmo fazer amor era algo sagrado. Ainda assim, Huizinga dá muito pouca atenção às sensibilidades hereges, em um momento em que a Holanda era marcada por esse sentimento. A meu ver é uma das fraquezas deste livro. Qual o porquê desse desprezo?
Le Goff – Para ser franco, é algo que eu nunca me questionei, e por isso vou improvisar. Falamos bastante que é necessário conservar o título original do livro, que é o "outono", e não o "declínio". É um belo outono ensolarado. No entanto, para um protestante, é o fim de um mundo. Talvez Huizinga não tenha querido misturar em seu livro aquilo que seria o fermento de uma modernidade. As heresias, à medida que anunciavam a Reforma, referiam-se ao período posterior àquele que Huizinga queria mostrar. Mesmo que eu não aceite a tradução "declínio", tenho de admitir que Huizinga quer oferecer à Idade Média um bom túmulo. E talvez ele não tenha querido misturar o assunto.
Franco Júnior – É possível. Para encerrar, eu me permitiria fazer uma pequena provocação. O senhor me afirmou certa vez que a obra de um historiador não sobrevive a si próprio mais de 50 anos. Se Huizinga morreu em 1945, a provocação é: O Outono da Idade Média está morto?
Le Goff – Quando disse isso, devo tê-lo feito por duas razões. A primeira, que eu me referia a uma espécie de média. As obras de História, em sua maioria, sobrevivem, têm alguma influência e nos permite interpretar os fatos de outra maneira, o que as diferencia das obras mortas. Os 50 anos, eu diria, é mais ou menos o prazo de validade correto. De outro lado, eu confesso que não suporto os historiadores que evocam um tal limite como uma espécie de conjuração, na esperança de que a própria História lhes desminta. No fundo, eles esperam que ao menos uma parte de suas obras supere esse limite, que aliás não é absoluto.

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