quinta-feira, 18 de novembro de 2010

São Bernardo: uma testemunha do seu tempo perante Deus



Por Daniel-Rops

São Bernardo de Claraval nasceu em Fontaines, França, no seio de uma família nobre, em 1090 e faleceu em Claraval em vinte e um de agosto de 1153. Aos vinte e dois anos ingressou no mosteiro cisterciense de Citeaux, seguido por todos os seus seis irmãos e mais trinta jovens da nobreza que quiseram seguir o seu exemplo. Três anos depois Santo Estevão enviaria o jovem Bernardo, o terceiro a deixar Citeaux, à frente de um grupo de monges para fundar uma nova comunidade no Vale do Absinto, o Vale da Amargura, na Diocese de Langres. Bernardo o chamará de Claire Vallée, o Claro Vale, Clairvaux (Claraval), em 25 de julho de 1115, e os nomes de Bernardo e Claraval não mais se separariam. O presente artigo é um trecho do capítulo dedicado por Daniel-Rops ao Santo no terceiro volume da sua História da Igreja de Cristo.

O DEFENSOR DA FÉ

São Bernardo defendeu a lei de Cristo não somente no plano do comportamento moral, mas também no plano doutrinal, e com a mesma energia. A sua atitude foi muitas vezes mal interpretada; chegaram até a ver nele um arrebatado, um fanático, pronto a desencantar pretensos erros e a combater ferozmente os que lhe pareciam defendê-los. Mas as testemunhas que descrevem assim o abade de Claraval são suspeitas. Berengário de Poitiers, por exemplo, diz dele que tinha “a alma cheia de rancor”, mas, sendo discípulo de Abelardo, é possível que fosse ele próprio quem cedesse ao rancor...

Apresentaram-no também como um torturador zeloso em atear fogueiras, um predecessor de Torquemada. É verdade que concordou em que os hereges fossem entregues ao braço secular e queimados – o que, é preciso dizê-lo, era a opinião mais difundida no seu tempo. Mas ele próprio explicou a atitude que a Igreja deve assumir perante o erro: não deve recorrer às armas sem mais nem menos, mas usar de todos os meios possíveis para convencer os que erram. Se eles persistem no erro, isto é, se se tornam um perigo público, então que se deixe “morrer os que preferem morrer a voltar para Deus”.

Veremos o que foi nesta época a fermentação dos erros, como se desenvolveram doutrinas confusas, de tendências neomaniqueístas, sobretudo no Languedoc, com os albigenses. Alertado em 1143 pelo seu amigo Evervin, preboste de Stanfeld, São Bernardo iniciou uma vigorosa polêmica contra os partidários dessas doutrinas, principalmente Pedro de Bruys e Henrique de Lausanne. Em 1145, acompanhou o legado Alberico ao Sul, pregou com algum êxito e obrigou Henrique de Lausanne a fugir da discussão, impressionando as multidões com o seu exemplo e os seus milagres, mas sem participar de qualquer das violências insensatas que se desencadearam antes mesmo que a propagação da heresia exigisse a dolorosa “cruzada dos albigenses”.

Bernardo, portanto, não só não foi um fanático, como chegou até a mostrar, numa ocasião bem característica, que a defesa da verdade cristã não poderia desvincular-se da defesa da caridade. Quando estava em andamento a segunda Cruzada, um religioso da sua Ordem , chamado Rodolfo, suscitou com a cumplicidade de certos nobres um movimento popular anti-semita, que se espalhou por Colônia, Mogúncia, Worms, Spira e Estrasburgo. Informado do que se passava, Bernardo deixou rapidamente Flandres, onde se encontrava pregando a Guerra Santa, e correu ao Reno para impedir o massacre dos judeus.

Houve um caso, porém, em que ele pôde parecer um fanático, e não somente um fanático, mas o típico monge “obscurantista” que se opõe ao progresso: foi o célebre duelo contra Abelardo.

Não teria sentido apresentar São Bernardo como um ignorante. Toda a sua obra testemunha uma imensa erudição, que não resiste ao prazer de citar Estácio, Ovídio e Lucano ao correr da pena. Étienne Gilson diz com toda a razão que São Bernardo “renunciou a tudo, menos à arte de bem escrever”. A sua obra literária é de uma riqueza extraordinária, tanto em quantidade – com não menos de trezentos e trinta e dois sermões e catorze tratados, sem falar de uma correspondência de que possuímos ainda mais de quinhentas cartas –, como em qualidade, em variedade e numa elegância por vezes requintada. A sua Vida de São Malaquias, que nos ensina tantas coisas curiosas sobre a Irlanda do século XII, o seu imenso Comentário ao Cântico dos Cânticos, com noventa e seis sermões de uma fecundidade inesgotável, os seus tratados dogmáticos tão seguros sobre o Conhecimento de Deus e sobre A graça e o livre-arbítrio, as suas peças polêmicas tão mordazes, e o seu testamento espiritual, o De consideratione, do qual tiramos atrás a sua definição dos deveres dos Papas, são elementos extremamente diversos que nos dão a conhecer o orador e o escritor. Aliás, longe de desprezar a inteligência e as suas atividades, não dizia ele com bom humor: “Não convém que a Esposa do Verbo seja estúpida”?

Acontece, porém, que, na ordem das faculdades do conhecimento, São Bernardo deixava essas atividades da inteligência em segundo plano. Para ele, não era nem pela dialética nem pela ciência que se pode atingir o único objeto do conhecimento que merece ser atingido. Como o seu amigo Guilherme de Saint-Thierry, pensava que “o amor humilde de um coração puro vale mais do que a razão e as suas pesquisas sutis”. Antes de compreender e explicar o dogma, é preciso vivê-lo... Esta é a essência do seu tratado sobre o Conhecimento de Deus.

O princípio sobre o qual não transigia era, pois, o de que a fé vivida é superior a todo o esforço da inteligência, e foi para defendê-lo que entrou em conflito com Abelardo <1079-1142>. Evocaremos mais adiante este homem extraordinário, uma das figuras mais admiráveis do pensamento medieval. Mas do eremitério de Nogent-sur-Seine, onde vivia com alguns discípulos, partiam idéias que dificilmente se conciliavam com o princípio que acabamos de formular. Não que o grande filósofo fosse um ateu, um livre-pensador, pois nessa época palavras como essas careciam de significado. Tinha uma fé viva e falava de Cristo com uma ternura que o próprio São Bernardo não teria desaprovado. Mas esse homem sentia-se devorado pela paixão de pensar, como outros são devorados pelas paixões carnais. Dizia de si mesmo que não podia ficar impassível perante um problema: era preciso encontrar-lhe uma solução. Semelhante atitude, aplicada aos mistérios da fé, arriscava-se a provocar catástrofes. Se se tivesse prestado ouvidos a esse paladino da razão e do espírito crítico, que teria sobrado das afirmações claras do dogma, dos princípios da fé? Apenas alguns temas para discussões sutis, em que cada qual teria divagado a seu bel-prazer. Por uma evolução que seria mais tarde a do racionalismo, ter-se-ia chegado a suprimir qualquer distinção entre o que pertence à razão e o que a ultrapassa, entre o saber humano e a Revelação.

Basta sabermos que era esse o fim visado pelos ensinamentos de Abelardo – aliás, só mais ou menos conscientemente visado –, para compreendermos os motivos que levaram São Bernardo a combatê-lo. Um dia, o seu amigo Guilherme de Saint-Thierry remeteu-lhe a Teologia cristã de Abelardo, dizendo-lhe simplesmente: “O vosso silêncio é um perigo”. A princípio, o abade de Claraval tentou esquivar-se, argumentando que era muito pouco dialético para enfrentar o melhor esgrimista da dialética. Mas em 1140, no meio de um grupo de estudantes que a sua voz atraíra a Cister, encontrou um aluno de Abelardo e apercebeu-se da influência nefasta do filósofo. O seu primeiro passo foi procurar agir diretamente sobre o mestre, mas este, que estava no auge da fama, resistiu; cortando as varas com que iriam bater-lhe, exigiu a convocação de um concílio diante do qual defenderia as suas teses. O concílio teve lugar nesse mesmo ano de 1140, em Sens, e São Bernardo compareceu a ele.

Os dois adversários viriam a tomar atitudes bem diferentes. Um era intelectual, seguro de si, do seu pensamento e dos seus métodos dialéticos; pulverizaria o monge borgonhês em dois tempos. O outro era um espiritual, uma alma repleta de Deus, que não procurava a glória pessoal e só queria dar testemunho da Palavra. Abelardo via no concílio uma espécie de academia, diante da qual poderia entregar-se à esgrima das idéias; Bernardo considerava-o um tribunal que devia julgar um suspeito. Por isso, o cisterciense não permitiu que o seu adversário escolhesse o terreno e atacou-o impetuosamente desde o primeiro momento. Afirmou que precisamente os assuntos que Abelardo pretendia discutir não eram assuntos passíveis de discussão. A fé ou se aceita ou se recusa; o dogma é um bloco e não pode ser desmanchado ao gosto de cada um. Surpreendido por esse ataque, desconcertado, esmagado logo de entrada sob uma saraivada de citações extraídas da Escritura, identificado sucessivamente com Ário, Nestório e Pelágio, Abelardo sentiu que o terreno lhe fugia debaixo dos pés e vacilou.

Nesse duelo, o homem do seu tempo, o cristão medieval típico, era incontestavelmente São Bernardo. Representava a tendência característica da época, segundo a qual o passado é o elemento exemplar e decisivo em si, e a fé é o alfa e o ômega; já o seu adversário encarnava um movimento audaciosa e, talvez, temerariamente progressista. É verdade que as idéias de Abelardo viriam a desempenhar mais tarde um papel importante na evolução do pensamento cristão; mas, hic et nunc, constituíam um perigo para aquela sociedade cujo padrão era uma fé mais rígida. Há casos em que se pode ser culpado simplesmente por estar excessivamente adiantado em relação ao tempo.

Vencido, Abelardo tentou apelar do concílio para o Papa, mas não teve tempo de chegar a Roma. Adoeceu em Cluny e a condenação romana acabou de abatê-lo. Avisado do que se passava, São Bernardo correu imediatamente para junto do adversário, a fim de que não levasse para o túmulo a dor acerba dos golpes que recebera. Por intervenção de Pedro o Venerável, os dois homens trocaram o ósculo da paz. Pouco depois, transferido para o priorado de São Marcelo, junto de Châlon-sur-Saône, o antigo mestre do Quartier latin era surpreendido “pelo visitante angélico, na santa oração e no temor do Senhor”.


O HOMEM DE AÇÃO

Para dar a Cristo o seu pleno testemunho, São Bernardo saíra, pois, da sua cela e lançara-se na batalha dos homens. Ao proceder assim, pensava cumprir o seu dever. “Nunca me lamentarei”, escreveu ele, “de ter interrompido uma meditação repousada, se vir germinar numa alma a semente da Palavra”. Isto explica que esse contemplativo tenha sido paradoxalmente, desde 1127 até à sua morte, sempre por montes e vales, uma “avezinha desplumada, sempre exilada do seu ninho”, e que tenha desempenhado um papel de primeiro plano em todos os grandes acontecimentos da sua época.

Não é que sentisse qualquer prazer nisso, nem que procurasse ocasiões para figurar como vedete. Ao contrário, quando era chamado a intervir, resistia, hesitava, esperava, refletia e queria saber com detalhes por que tinham recorrido a ele. E se, por fim, aceitava, era para obedecer às ordens de um superior, por caridade para com os seus irmãos e para com a Igreja, ou por fidelidade à verdade e à justiça. Podia sentir-se despedaçado entre o seu ideal monástico e a ação obsessiva a que se lançava, mas sabia muito mais ao certo que, procedendo assim, era fiel àquilo que Deus esperava dele e que obedecia à sua vocação. São Bernardo não foi um homem de ação apesar de ser um místico, mas porque era um místico.

No jargão do nosso tempo, dir-se-ia que o grande abade foi um homem “engajado”, comprometido, no sentido de que assumiu riscos e enfrentou as mais perigosas barafundas. Mas esse “engajamento” que, para tantos, esconde por trás de uma agitação estéril o vazio da alma, para ele era conseqüência lógica desse outro compromisso, mais decisivo, que assumira quando, aos vinte e um anos, batera à porta de Cister. E se chegou a ser, como dizem, um “homem de Estado”, um homem político, toda a sua ação temporal se resumiu em fazer triunfar os princípios da verdade e da eqüidade.

Seria impossível enumerar todos os casos em que a intervenção de São Bernardo veio a ser decisiva. As ocasiões que teve de agir podiam ser grandes ou pequenas, mas, a partir do momento em que os princípios de Cristo eram violados, jamais pensava que estivesse perdendo o tempo. E, quando entrava em ação, era verdadeiramente o homem de Deus, livre de qualquer ressentimento, de qualquer preconceito pessoal <...>.

Dois grandes acontecimentos da época revelam até que ponto chegava o prestígio do santo. O primeiro foi o cisma de Anacleto, tristemente célebre. A forma como São Bernardo interveio é tão característica do seu estilo e tão reveladora da sua influência que vale a pena contar o episódio em pormenor.

O papa Honório II está à beira da morte. As famílias Pierleone e Frangipani agitam-se no seio do Sacro Colégio. Arrastam o moribundo até o mosteiro de São Gregório e expõem-no à multidão, que se agita. O papa expira na noite de 13 para 14 de fevereiro de 1130, e seis cardeais, que haviam permanecido no mosteiro, elegem Gregório de Sant´Angelo, partidário dos Frangipani, que toma o nome de Inocêncio II. Outros cardeais confirmam a escolha, mas o cardeal Pedro Pierleone, homem aliás notável e popular em Roma, denuncia imediatamente a rapidez do processo, agrupa os seus amigos e faz-se eleger sob o nome de Anacleto II. Os dois papas são sagrados em 23 de fevereiro, um em Santa Maria Novella e o outro em São Pedro. Mas, como político hábil que sabe distribuir ouro com arte consumada, Anacleto força o seu rival a deixar Roma e Inocêncio vai para a França.

A Cristandade está com duas cabeças. Canonicamente, o conflito é insolúvel, porque as duas eleições estão manchadas de irregularidades. Os países dividem-se conforme os seus interesses. Luís VI convoca um concílio para que delibere sobre os méritos dos dois pretendentes, e manda chamar o abade de Claraval. Bernardo hesita, mas uma visão divina convence-o a comparecer. Ei-lo, pois, árbitro da Igreja universal. Invoca argumentos de três espécies a favor de Inocêncio II: é moralmente mais digno; foi eleito pela parte “mais saudável” do Sacro Colégio, a maioria dos cardeais-bispos, aos quais o decreto de Nicolau II confere, desde 1059, um papel eminente na eleição do Pontífice; e foi sagrado pelo bispo de Óstia, segundo a tradição. O concílio aceita a sentença e Luís VI proclama a sua fidelidade a Inocêncio.

Mas de que serve essa decisão, se a Cristandade permanece dividida? Bernardo quer ligar os outros Estados cristãos a Inocêncio II. Encontra-se com o rei da Inglaterra, Henrique I Beauclerc, e vence as suas reticências. Na Alemanha, paralelamente, São Norberto, então arcebispo de Magdeburgo, traz Lotário <1070-1137, rei do Sacro Império Romano Germânico de 1125-1137> para a boa causa: o papa e o rei da Germânia encontram-se em Liège em março de 1131. O príncipe conduz o cavalo de Inocêncio e multiplica os sinais de reverência; será para melhor preparar o terreno das reivindicações de natureza demasiado política? Bernardo “opõe-se a isso como uma parede”, diz o seu biógrafo, e Lotário promete reconduzir o papa a Roma. Entretanto, Inocêncio passa por Claraval, onde partilha da humilde refeição dos monges. Em Reims, Bernardo está ao lado do papa quando Aragão e Castela lhe prestam adesão. Depois, intervém na Aquitânia, onde o duque Guilherme, arrastado pelo bispo Gerardo de Angoulême, reconhecera Anacleto. O seu sucesso, porém, é efêmero; Gerardo volta a estar por cima e obtém a sé de Bordeaux. Bernardo fustiga-o com dura ironia e convence os seus sufragâneos a excomungá-lo.

Entretanto, Inocêncio chega à Itália, onde Lotário enceta operações militares. Em janeiro de 1133, chama Bernardo para reconciliar Gênova e Pisa, cujo entendimento é indispensável para neutralizar Rogério II da Sicília que, desejoso de aumentar o seu poder, se declarara pragmaticamente partidário de Anacleto. O cisterciense torna-se diplomata; prepara a paz, e o povo de Gênova acolhe-o triunfalmente. Lotário, que se encontra a pouca distância de Roma, fica sem dinheiro, e Bernardo pede subsídios ao rei da Inglaterra e consegue-os. Por fim, em 30 de abril, Inocêncio entra na Cidade Eterna e, em 4 de julho, coroa Lotário. Bernardo volta a toda a pressa para o seu querido mosteiro, julgando ter concluído a sua tarefa.

Contudo, em setembro, privado do apoio do exército imperial e assediado pelos soldados de Anacleto, que ocupam o castelo de Sant´Angelo, Inocêncio tem que deixar Roma outra vez. Bernardo volta a entrar em cena e, ao chegar às terras de Guilherme da Aquitânia, diz-lhe: “Só existe uma Igreja: é a arca que contém a salvação do mundo; fora dela, por um justo juízo de Deus, tudo deve perecer, como nas horas do Dilúvio”. Depois de uma missa, a que teve de assistir fora da igreja, pois estava excomungado, Guilherme reconcilia-se com Inocêncio. É o fim do cisma na França.

Mas a situação continua grave porque o antipapa Anacleto acaba de coroar o normando Rogério II como rei da Sicília. Paralelamente, Lotário, em conflito com os Hohenstaufen, vê-se impossibilitado de empreender uma nova expedição ao sul dos Alpes. É preciso, portanto, regularizar os assuntos alemães e Bernardo corre para lá. Em princípios de 1135, atravessa o Reno e aparece em Bamberg, onde o imperador recebe a submissão dos seus inimigos. Depois, passando os Alpes em pleno inverno, desce à Itália, em direção a Pisa, onde Inocêncio II convocou um concílio para calcular os seus partidários. “São Bernardo”, diz um historiador da época, “foi a alma do concílio”.

Anacleto é excomungado e as terras de Rogério feridas de interdito. Delegados de Milão trazem a adesão da grande metrópole, contanto que seja confirmada a deposição do orgulhoso arcebispo Anselmo. O concílio concorda e manda Bernardo à Lombardia para prevenir qualquer incidente. À sua passagem, a multidão agita-se, todos querem vê-lo, ouvi-lo, tocá-lo e cortar um pedaço da sua túnica. Oferecem-lhe um arcebispado, mas ele recusa. Por caminhos de montanha, escoltado por pastores, regressa a Claraval.

Terminou tudo? Ainda não. Trabalhava no Cântico dos Cânticos, quando recebeu um novo apelo do papa e se dirigiu à Itália pela terceira vez. O exército de Lotário conquistara quase toda a Península, mas Anacleto ocupava firmemente certos bairros de Roma e Rogério era inexpugnável na Sicília. Surgem conflitos entre o papa e o imperador a propósito da Apúlia e do cargo de abade de Monte Cassino. Bernardo soluciona esses problemas e chega até a governar a famosa abadia por algum tempo. Depois, em outubro de 1137, como Lotário, decepcionado e doente, tivesse voltado para o Norte, Bernardo concorda em negociar diretamente com Rogério. Está também muito mal de saúde; ele próprio se compara ao “pálido espectro da morte”. No entanto, corre para Salerno, a fim de encontrar-se com o rei da Sicília e com Pedro de Pisa, o canonista, que apresenta a defesa de Anacleto. As exortações do santo em prol da unidade da Igreja não convencem o rei, mas comovem o canonista, que vem prostrar-se aos pés de Inocêncio.

Mas aproxima-se o fim. Lotário morre em 4 de dezembro e Anacleto em 25 de janeiro de 1138. Alguns obstinados, entre os quais o normando, fazem eleger um novo antipapa, Vítor IV. Este, porém, horroriza-se com o seu sacrilégio e, uma noite, foge do palácio, procura Bernardo e implora a clemência de Inocêncio II. Estava salvo, portanto, tudo aquilo que Bernardo defendera. Pouco lhe importava que Rogério II, vitorioso sobre o exército pontifício e tendo o papa à sua mercê, lhe extorquisse uma absolvição e o reconhecimento da sua coroa. Bernardo só teria desejado que o pontífice vencedor não abusasse do seu triunfo. Aconselhou moderação, mas não conseguiu impedir as represálias que atingiram os partidários de Anacleto e o próprio Pedro de Pisa. O seu último ato foi protestar com veemência, mas sem resultado.

Nessa luta de oito anos, em que esteve em jogo nada menos do que a unidade da Igreja, Bernardo foi o grande combatente e o verdadeiro vencedor. No entanto, no auge das honrarias e do triunfo, a que aspirava o interlocutor dos monarcas, a figura central de tantas assembléias? Única e exclusivamente à austera tranqüilidade da sua cela. “Volto a toda a pressa”, escreve ele ao prior de Claraval, “e levo uma recompensa: a vitória de Cristo e a paz da Igreja”.

Foi também a vitória de Cristo – e só ela – que Bernardo teve em vista em outra ocasião em que a sua ação se tornou decisiva: a segunda Cruzada. Não há quem não conheça a grandiosa cena: o monge de vestes brancas que, do terraço de Vézelay, fala a uma multidão entusiasmada na Páscoa de 1146, reacendendo a chama sagrada e lançando a Cristandade no segundo episódio da batalha pelo Santo Sepulcro.

Havia já quase meio século que, depois de tantos sofrimentos e à custa de tanto heroísmo, os barões de Godofredo de Bulhões tinham tomado Jerusalém. Mas, depois do triunfo de 14 de julho de 1099, tornara-se patente a fragilidade da conquista; o feudalismo levara para a Terra Santa os seus hábitos de indisciplina. No final de 1144, Zenghi, governador turco de Mossul, tendo-se tornado senhor de Alepo, tomava dos cristãos a cidade de Edessa, posição avançada que vigiava o caminho para a Mesopotâmia; e no ano seguinte, seu filho, Nur-ed-din, voltava a tomar Edessa, libertada por algum tempo, e chacinava todos os seus habitantes. A Cristandade ficou transtornada com os gritos de dor que lhe chegavam do Oriente.

O rei Luís VII sonhou então com uma grande iniciativa que o levasse à celebridade. Uma primeira assembléia reunida em Bourges mostrou-lhe, no entanto, que o entusiasmo da nobreza já não era como o do século anterior. Avaliavam-se agora muito melhor os riscos e sabia-se o que é que a aventura do Oriente representava em dinheiro e em sangue. Mas o que por vezes faltava a Luís VII em prudência, sobrava-lhe em coragem. Marcou um encontro com todos na colina de Vézelay e chamou São Bernardo.

O abade de Claraval era partidário da Cruzada, sem dúvida, e, como sempre, por razões profundas, de ordem espiritual. No entanto, era um homem demasiado ponderado para não adivinhar as dificuldades da empresa. Quis contar com uma ordem do papa. Eugênio III – o antigo monge de Claraval, que naquele momento enfrentava motins e intrigas romanas – demorou um certo tempo a decidir-se, mas depois assinou a bula e Bernardo entrou em ação. Pelos resultados, podemos imaginar o que foi o apelo do santo. As multidões, sacudidas até à alma, reclamaram a honra de alistar-se sem mais delongas. Faltou pano para as cruzes que cada um queria coser imediatamente nas próprias vestes, e Bernardo teve que distribuir pedaços da sua túnica entre os que o escutavam. Depois, prolongando a ação iniciada em Vézelay, começou a percorrer as províncias para mobilizar o exército.

Visitou a Borgonha, Lorena e Flandres. Mandou dizer ao conde da Bretanha: “Vamos, generoso soldado, cingi os vossos rins; não abandoneis o vosso rei, o rei dos francos. Que digo? Não abandoneis o Rei dos céus, pelo qual o rei dos francos empreende uma viagem tão laboriosa”.

Chegando às margens do Reno para conter os massacres anti-semitas, aproveitou a ocasião e convidou Conrado III e os alemães para a Cruzada. Em 27 de dezembro de 1146, conseguia que o soberano comandasse o corpo germânico e entregava-lhe solenemente o estandarte sagrado. Ao mesmo tempo, em Saint-Denis, Eugênio III entregava ao próprio Luís VII o bordão de peregrino.

Que esta segunda Cruzada foi organizada com uma leviandade espantosa e teve como resultado um fracasso é infelizmente a pura verdade. Mas São Bernardo não teve nada que ver com os erros cometidos por Luís VII e Conrado III. Sofreu muito com isso e, no De consideratione, sentiu a necessidade de justificar o seu comportamento, acrescentando que o insucesso não devia ser atribuído à Providência, mas aos erros dos cristãos. E concluiu com estas palavras admiráveis: “Recebo de bom grado os ataques da maledicência e os dardos envenenados da blasfêmia, para que não cheguem a Deus. Concordo em perder a honra, desde que não se toque na glória divina”. A prova de que o seu prestígio não foi atingido é que Suger, no momento em que a morte o surpreendeu, amadurecia o projeto de uma Cruzada de desforra, cujo comando efetivo queria confiar ao cisterciense. Nessa manifestação da Cristandade em ação, São Bernardo foi, como em tudo, um elemento motor, um homem decisivo.

A imensidão da sua atividade deixa-nos estupefactos, sobretudo se nos lembrarmos das condições em que viveu. As viagens, naquele tempo, estavam muito longe de ser seguras e cômodas. Podemos imaginar esse homem franzino, extenuado pelos jejuns, indo por etapas intermináveis de Paris à Sicília, de Roma a Flandres e do Languedoc ao Reno? É possível imaginá-lo atravessando os Alpes a cavalo, em pleno inverno? O seu estado de saúde era sempre precário. Dormia mal e tinha o estômago tão avariado que se via na necessidade de “reconfortá-lo sem cessar com um pouco de líquido, pois o seu organismo continuava a rejeitar inexoravelmente todos os sólidos”. Além disso, as mãos e os pés inchavam-lhe por menos que nada...

O ambiente moral em que desenvolveu a sua ação não foi mais fácil. Não nos esqueçamos de que este santo, em cuja presença as dificuldades pareciam esfumar-se, trabalhou no meio de uma humanidade em que imperavam a astúcia, a violência, a ambição de poder e o interesse, tal como nos nossos dias. Teve que vencer resistências e intrigas, mas de tudo saiu vencedor.

Tudo isto prova não somente a sua santidade, mas a sua genialidade. Ter até esse ponto o sentido dos homens e dos acontecimentos; ser capaz de levar a bom termo tantas tarefas diferentes; saber dirigir a imensa rede dos seus irmãos de hábito, de modo a estar sempre devidamente informado e a conseguir que se cumprissem as suas instruções; manter uma correspondência gigantesca com todas as figuras de proa na Cristandade do Ocidente, sem nunca deixar de ser o homem de pensamento, de oração e contemplação que conhecemos – eis o testemunho irrecusável de um valor único. “Não conseguiremos avaliar a sua grandeza”, diz Pascal, “observando apenas um dos extremos; é preciso olhar simultaneamente para os dois e abranger o que se contém entre eles”.

Parte da admiração que se deve ao guia recai sobre a sociedade que se deixou guiar. Uma vez que Bernardo era um homem sobrenatural, considerava-se normal acatarem-se as suas ordens em questões que, nos nossos dias, seriam ciosamente reservadas aos “especialistas”: política, diplomacia, a própria economia. E, porque era um santo, que não dispunha de outras armas além da sua palavra e podia ser detido à sua passagem pelo mais medíocre fidalgote, os seus ditames e vereditos eram acolhidos pelos soberanos mais altos. A sociedade dos nossos dias, que mais do que nunca considera a força como a ultima ratio, bem poderia refletir sobre esta lição.

Daniel-Rops
Daniel-Rops (pseudônimo literário de Henri Petiot) nasceu em Épinal, em 1901, e faleceu em Chambéry, em 1965. Foi professor de História e diretor da revista Ecclesia (Paris), e tornou-se mundialmente famoso sobretudo pelas obras de historiografia que publicou: a coleção História Sagrada, que abrange os volumes O povo bíblico (1943), Jesus no seu tempo (1945) e os onze tomos desta História da Igreja de Cristo (1948-65). Também foi autor de diversos ensaios, obras de literatura infantil e romances históricos, entre os quais destacamos Morte, onde está a tua vitória? (1934) e A espada de fogo (1938). Foi eleito para a Academia Francesa em 1955.

Fonte: História da Igreja de Cristo, Vol. III: A Igreja das catedrais e das cruzadas
Tradução: Quadrante
Link: http://www.quadrante.com.br/
 

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