segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Trecho do livro Stalin – A Corte do Czar Vermelho, de Roy e Zhores Medvedev

Veja on-line 15 de março de 2006
Stálin nasceu com o segundo e o terceiro dedo do pé esquerdo grudados. Ficou com o rosto marcado por um ataque de varíola e, mais tarde, machucou o braço esquerdo, provavelmente num acidente de carruagem. Tornou-se um jovem pálido, atarracado e carrancudo, com olhos cor de mel e grossos cabelos pretos — um kinto, um garoto de rua georgiano. Tinha uma inteligência excepcional e uma mãe ambiciosa que desejava que ele se tornasse padre, talvez como seu verdadeiro pai. Mais tarde, Stálin jactava-se de ter aprendido a ler aos cinco anos escutando o padre Tcharkviani ensinar o alfabeto. Com essa idade, também ajudava a filha de treze anos do padre na leitura.
Em 1888, entrou para a escola dominical de Gori e, em 1894, ganhou uma "bolsa de estudos de cinco rublos" para o seminário de Tiflis, na capital da Geórgia. Stálin contou depois a um confidente: "Meu pai descobriu que junto com a bolsa eu também ganhava dinheiro (cinco rublos por mês) para cantar no coro [...] e uma vez, ao sair, eu o encontrei.
‘Meu jovem’, disse Beso, você esqueceu seu pai [...]. Dê-me pelo menos três rublos, não seja ruim como sua mãe!’
‘Não grite!’, respondeu Soso. ‘Se você não for embora imediatamente, vou chamar o guarda!’" Beso retirou-se de maneira furtiva. Ele foi morto numa briga por volta de 1910.
Às vezes, Stálin mandava dinheiro para ajudar a mãe, mas a partir de então manteve distância dela, cujo humor sarcástico e disciplina rígida se pareciam com os dele. Escreveu-se muita psicologia rasteira sobre a infância de Stálin, mas do que podemos ter certeza é que cresceu numa família pobre e influenciada por padres, vítima de violência, insegurança e suspeita, porém inspirada pelas tradições locais de dogmatismo religioso, rixas entre famílias e banditismo romântico. "Stálin não gostava de falar sobre seus pais e sua infância", mas não faz sentido exagerar em sua análise psicológica. Era emocionalmente atrofiado e carecia de compaixão, mas suas antenas eram super-sensíveis. Era anormal, mas o próprio Stálin compreendia que os políticos raramente são normais: a História, escreveu mais tarde, está cheia de "gente anormal".

O seminário proporcionou-lhe sua única educação formal. O ensino catequético e os "métodos jesuítas" de vigilância, espionagem, invasão da vida interior, a violação dos sentimentos das pessoas causavam repulsa em Stálin, mas o influenciaram tanto que ele passou o resto de sua vida refinando seus estilos e métodos. A escola estimulou sua paixão autodidata pela leitura, mas ele se tornou ateu no primeiro ano. "Fiz alguns amigos", disse ele, "e um debate acirrado começou entre os crentes e nós!" Logo abraçou o marxismo.
Em 1899, foi expulso do seminário, entrou para o Partido dos Trabalhadores Social-Democratas da Rússia e se tornou um revolucionário profissional, adotando o nome de guerra Koba, inspirado pelo herói do romance O parricida, de Alexander Kazbegi, um fora-da-lei caucasiano arrojado e vingativo. Ele combinava a "ciência" do marxismo com sua imaginação transbordante: escreveu poesias românticas, publicadas em georgiano, antes de trabalhar como meteorologista no Instituto Meteorológico de Tiflis, o único emprego que teve antes de se tornar um dos governantes da Rússia, em 1917.
"Koba" estava convencido da panacéia universal do marxismo, "um sistema filosófico" que se adequava à totalidade obsessiva de seu caráter. A luta de classes combinava com sua belicosidade melodramática. O sigilo paranóico da intolerante e idiossincrática cultura bolchevique também se ajustava a sua confiança auto-suficiente e seu talento para a intriga. Koba mergulhou nos subterrâneos da política revolucionária, que era uma mistura fervilhante e estimulante de intriga conspiratória, bizantinismo ideológico, educação acadêmica, disputas entre facções, casos amorosos entre revolucionários, infiltração da polícia e caos organizacional. Esses revolucionários provinham de todas as partes — eram russos, armênios, georgianos, judeus, trabalhadores, aristocratas, intelectuais e doidivanas — e organizavam greves, tipografias, reuniões e "expropriações". Unidos no estudo obsessivo da literatura marxista, havia sempre uma divisão entre os emigrados burgueses cultos, como o próprio Lênin, e os homens rudes de ação na Rússia. A vida na clandestinidade, sempre itinerante e perigosa, foi a experiência de formação não somente de Stálin, mas de todos os seus camaradas. Isso explica muito do que aconteceu depois.
Em 1902, Koba ganhou fama com sua primeira prisão e o exílio na Sibéria, o primeiro de uma lista de sete, dos quais escapou seis vezes. Esses exílios estavam longe da brutalidade dos campos de concentração de Stálin: os czares eram policiais ineptos. Constituíam quase umas férias de leitura em distantes aldeias siberianas, com apenas um gendarme de plantão em tempo parcial, durante as quais os revolucionários vinham a se conhecer (e odiar), se correspondiam com seus camaradas em Petersburgo ou Viena, discutiam questões abstrusas do materialismo dialético e tinham casos com as garotas locais. Quando o chamado da liberdade ou da revolução se tornava urgente, eles fugiam, atravessando a taiga até o trem mais próximo. No exílio, os dentes de Koba, uma fonte de dor durante toda a sua vida, começaram a se deteriorar.
Koba apoiou sofregamente Vladímir Lênin e sua obra seminal, Que fazer?. Esse gênio político dominador combinava as lições práticas maquiavélicas sobre a tomada do poder com o domínio da ideologia marxista. Explorando o cisma que levaria à criação de seu Partido Bolchevista, a mensagem de Lênin era a de que um partido supremo de revolucionários profissionais podia tomar o poder para os trabalhadores e depois governar em nome deles, numa "ditadura do proletariado" até que isso não fosse mais necessário porque o socialismo fora alcançado. A visão leninista do partido como "o destacamento avançado" do "exército dos proletários [...], um grupo de luta de líderes", estabeleceu o tom militarista do bolchevismo.
Em 1904, ao voltar a Tiflis, Koba conheceu seu futuro sogro, Serguei Allilúiev, doze anos mais velho do que ele, um hábil eletricista russo casado com Olga Fedorenko, uma beldade georgiana/alemã/cigana enérgica, com uma queda por casos amorosos com revolucionários, poloneses, húngaros e até turcos. Correram rumores de que Olga teve um caso com o jovem Stálin, que seria o pai de sua futura esposa Nádia. Isso é falso, pois Nadejda já estava com três anos quando seus pais conheceram Koba, mas seu caso com Olga é bem verossímil e ele mesmo pode ter sugerido isso. Olga, de acordo com sua neta Svetlana, tinha um "fraco por homens meridionais", dizendo que os "russos são grosseirões", e sempre foi carinhosa com Stálin. Seu casamento era complicado. Diz a lenda familiar que Pável, o irmão mais velho de Nádia, viu a mãe cortejar Koba. Essas ligações curtas eram ocorrências comuns entre revolucionários.
Muito antes de se apaixonarem, Stálin e Nádia faziam parte da família bolchevique que passou pelo lar dos Allilúiev: Kalínin e Ienukidze, entre outros presentes àquele jantar de 1932. Havia outra ligação especial: pouco depois de conhecer os Allilúiev em Baku, Koba salvou Nádia de se afogar no mar Cáspio. Um laço romântico, se é que chegou a haver algum.

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