terça-feira, 30 de novembro de 2010

O catolicismo social no século XIX

Gustavo Corção Parece-me necessário completar nossa constelação de sinais com outro aspecto da luta da Igreja, que também tem sido objeto da mais divulgada das calúnias. Refiro-me à "questão social" e ao papel que o povo de Deus (agora os membros da Igreja) tiveram na tentativa de defender, contra a avidez de toda uma nova civilização, a causa dos pobres, e principalmente na tentativa de subtrair esse pretexto aos socialistas que, movidos por paixão de poder ou por avidez do vazio, quiseram fazer das chagas dos pobres degraus de sua dominação do mundo. Sem esquecer as condenações vindas do Magistério Extraordinário, é com apoio nas obras dos leigos que a Igreja combate o socialismo com seu magistério ordinário. Referime atrás aos movimentos em favor dos pobres no século passado, e agora creio estar ouvindo um clamor de vozes indignadas de nosso bravo século: — Assistencialismo! Paternalismo! Obras de misericórdia! Caridade! Respondeo dicendum: —• Exatameate, minhas senhoras e meus senhores: assístencialismo, paternalismo, obras de misericórdia e de caridade, mesmo porque acho matematicamente impossível, fisicamente impossível, metafisicamente impossível e moralmente impossível melhorar um pouco as asperezas do mundo sem muito assistencialismo, muito paternalismo, muitas obras de misericórdia e muitíssimas obras de santa caridade. Os socialistas apregoam que só será possível construir um mundo melhor com mudanças radicais de "estruturas" sociais, a começar, todavia, por um arrasamento total. Nós outros, católicos, acreditamos modestamente no "mundo melhor"; mas só acreditamos nesse digno e preceptivo ideal a partir de um aperfeiçoamento interior do homem, isto é, a partir do melhor aproveitamento dos dons de Deus transformados em virtudes morais e teologais, para uma vida humana mais dignamente vivida com vistas à vida eterna, pela qual e por nós Nosso Senhor Jesus Cristo padeceu. Não ignoramos que o problema do aperfeiçoamento humano, tanto na ordem de pedagogia como na das reformas sociais, deve sempre contar com a primordial autonomia do educando ou dos pobres. Sabemos que a "atividade imanente do educando" é o principal fator no dinamismo da ascensão humana. Sabemos que o melhor modo de ajudar o pobre é o de nele ativar essa atividade, ou de nele despertar o gosto de se ajudar a si mesmo, sem o qual será dificílimo ajudá-lo. Há um abismo entre essas noções e a filosofia que só vê possibilidade de ascensão humana pelo processo de "conscientização" em que a autonomia é despertada para o ódio e para a luta de classes. Karl Marx, o messias do Século do Nada, conclamou a união de todos os proletários para a luta de classes no seu manifesto de 1848 que terminava com este grito: "Operários do mundo inteiro, uni-vos!" Seria mais didático ter dito: "Operários do mundo inteiro, desunivos da humanidade comum". E é ainda Augustin Cochin, no termo da Introdução da obra atrás citada, quem nos dirá uma palavra lúcida sobre a união na revolução: As três formas de opressão que correspondem aos três estados das "sociétés de pensée" — a socialização do pensamento, a socialização da vida pública e a socialização da vida privada — não são um efeito do temperamento do indivíduo nem um acaso, mas a condição da própria existência das sociedades que armam o princípio da liberdade absoluta na ordem intelectual, moral e sensível. Toda sociedade de pensamento é opressão intelectual pelo simples fato de denunciar todo dogma como opressão. Porque ela não pode, sem_ cessar de ser, renunciar a toda unidade de opinião. Ora, uma disciplina intelectual sem objeto que lhe responde, sem ideia, é a própria definição de opressão intelectual. Toda sociedade de iguais é privilégio pelo simples fato de renunciar em princípio a qualquer direção pessoal, porque ela não pode existir sem unidade de direção. Ora, uma direção sem responsabilidade, o poder sem autoridade, isto é, a obediência sem o respeito, eis a própria definição da opressão moral. Toda sociedade de irmãos é luta e ódio pelo fato de denunciar, como egoísta, qualquer independência pessoal: porque ela não pode deixar de ligar seus membros uns aos outros, e não pode deixar de manter uma coesão social. Ora, a união sem o amor é a própria definição de ódio. E aí está como o liberalismo se transmuda em socialismo, e a mística da liberdade produz, como produziu, a opressão. O "catolicismo social" só se manterá católico enquanto mantiver, paralelo ao seu atendimento dos pobres, uma vigilante luta contra os que exploram os pobres em nome da justiça, e portanto contra os pregadores da união no ódio. O Século do Nada, Cap. III A revolução se avoluma; O Catolicismo social no Século XIX, pag 145-146, Gustavo Corção.

Ciência faz as pessoas perderem a fé?

Matéria escrita para a Revista O Mensageiro de Santo Antônio. Baixar pdf. Há alguns meses, nesta nossa coluna de ciência e religião, desmontamos a farsa segundo a qual a teoria da evolução, de Darwin, seria incompatível com a fé e provaria a inexistência de Deus. Hoje, vamos derrubar outro mito: o de que estudar ciência leva as pessoas a abandonar a religião e aderir ao ateísmo. Esta lenda, como tantas outras, surge quando alguém pega uma estatística e a torce até que ela possa dizer o que queremos que ela diga. Neste caso, o ponto de partida é verdadeiro. Pesquisas mostram que a porcentagem de ateus entre os cientistas, nos Estados Unidos, é bem maior que a porcentagem de ateus entre a população em geral. A conclusão falsa é dizer que essas pessoas deixaram de acreditar em Deus por causa de seu trabalho como cientistas, o que não é verdade. Até é possível que um ou outro tenha abandonado sua fé devido à ciência, mas nem de longe podemos imaginar que isso seja a regra, e existem duas pesquisas sobre o assunto. Um desses estudos foi feito por Elaine Howard Ecklund. Ela escreveu o livro Science vs. Religion: what scientists really think (“Ciência contra religião: o que os cientistas realmente pensam”), em que publicou o resultado de quatro anos de entrevistas com 1,7 mil cientistas de 21 universidades de ponta nos Estados Unidos. Ela confirmou o fato de que na comunidade científica a proporção de ateus e agnósticos é grande, comparada com a população em geral: apenas 36% dos cientistas entrevistados acreditavam em Deus. Mas ela também descobriu que, na maioria dos casos, a decisão entre crer ou não em Deus foi tomada antes que as pessoas entrassem na carreira científica. A família, nesse sentido, é muito mais importante que o trabalho: os entrevistados ateus costumavam vir de famílias que já não acreditavam em Deus, ou nas quais a religião não tinha muita importância (como tanta gente que se diz católica, mas não frequenta nem mesmo a Santa Missa todo domingo). Já os cientistas que tinham fé costumavam vir de famílias em que a religiosidade é considerada fundamental. A ciência, nesses casos, costuma até ter um efeito benéfico: quando o cientista vem de uma família com visões fundamentalistas, como ocorre em certos grupos religiosos comuns nos Estados Unidos, o trabalho como cientista acaba atenuando o fundamentalismo, levando a pessoa a visões mais moderadas. Uma outra pesquisa, feita no ano passado por professores da Universidade de Michigan, analisou estudantes universitários para saber qual era o impacto da faculdade na fé desses jovens. Se Elaine Ecklund descobriu que a influência da família é forte na hora de determinar a adesão dos cientistas à fé, os pesquisadores de Michigan escolheram analisar estudantes universitários porque, em muitos casos, essa é a primeira oportunidade em que o jovem se separa da família, às vezes mudando de cidade ou de estado em busca de uma boa faculdade. O que o estudo descobriu é que os cursos das áreas de Exatas e Biológicas são justamente os que menos causam estrago na religiosidade dos estudantes – exatamente o contrário do que os ateus militantes alegam, já que para eles, quanto mais se estuda Física, Química ou Biologia, menos razões se tem para crer em Deus… Mas uma outra informação é interessante e nos faz pensar: a pesquisa da Universidade de Michigan também revelou que os universitários que passam pelos cursos de Humanas e Sociais estão mais sujeitos a perder a fé. Podemos intuir motivos pelos quais isso acontece. O conceito da moda nas faculdades de Humanas é o da “pós-modernidade”. Segundo essa ideia, não existem verdades absolutas; resumindo bem, uma ideia se torna verdadeira se eu consigo convencer as outras pessoas de que estou certo. A realidade pouco importa, nesse cenário, e o conceito clássico de “verdade” é deixado de lado. Na faculdade de Jornalismo, há quase 15 anos, tive uma experiência pessoal com isso: um professor tentava nos convencer de que não existiam verdades absolutas. A ironia é que ele nos impunha esse conceito como se ele fosse uma verdade absoluta! Essa é a grande falha da pós-modernidade, mas poucos se dão conta dela. O resultado dessas ideias é o relativismo, a noção de que a verdade pouco importa, pois nem existe (existe a “minha” verdade e a “sua” verdade, é o que dizem). E pensar assim faz muito mal para a fé – não é à toa que o Papa Bento XVI aproveita toda ocasião possível para condenar o relativismo. Por outro lado, as ciências exatas não se deixam contaminar pelo relativismo. No trabalho de um cientista não importam as opiniões, e sim a verdade como ela é. Uma molécula de água tem dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, não interessa o que os outros pensem a respeito. A verdade objetiva não só existe, como pode ser encontrada por meio de testes e experiências. É claro que corre-se o risco de cair no extremo oposto, o cientificismo, o “fora da ciência não há salvação”: a ciência explica tudo, a ciência pode tudo, o que não tiver comprovação científica deve ser descartado. Mas essa é uma armadilha mais fácil de desarmar que o relativismo. Em um famoso debate com Richard Dawkins, o matemático John Lennox perguntava ao autor de Deus, um delírio se sua esposa o amava. Diante da resposta positiva, Lennox perguntou se Dawkins tinha evidência disso – no sentido científico da palavra. Vários domínios da vida humana não dependem de comprovação científica, mas nem por isso os descartamos como inúteis. No entanto, é exatamente isso que os cientificistas querem fazer com a religião. Ainda assim, acredito que passar a aceitar a fé ainda é mais fácil para um cientificista que para um relativista. Apesar do que acabamos de ver sobre a influência das ciências exatas e das ciências humanas sobre a fé dos universitários, é possível entender por que, nos Estados Unidos, a proporção de ateus entre os cientistas é maior que entre a população em geral. Muitas famílias religiosas têm os dois pés atrás em relação à ciência. Se os pais acreditam que a ciência faz a pessoa perder a fé, obviamente eles não encorajarão seus filhos a optar pela carreira científica. Esse espaço será ocupado por pessoas que acreditam em outras coisas, ou que não acreditam em nada. É um círculo vicioso que, se não for quebrado, irá removendo lentamente dos laboratórios aqueles que sabem equilibrar fé e ciência. Então, caro leitor, se os seus filhos demonstram alguma vocação para essa área e ao mesmo tempo têm fé, não os desanime: provavelmente é de cientistas como eles que o mundo precisa. Marcio Antonio Campos é Jornalista e Editor da Gazeta do Povo, onde mantém o Blog Tubo de Ensaio.

A fé na criação e a Teoria Evolucionista

Joseph Ratzinger em “Dogma e Anúncio” Quando, em meados do século XIX, Charles Darwin desenvolveu a idéia da evolução de todos os seres vivos, questionando assim radicalmente a concepção tradicional da constância das espécies criadas por Deus, desfechou uma revolução da imagem do mundo que em alcance não fica atrás daquela que para nós está ligada ao nome de Copérnico. Apesar da revolução copernicana que destronou a Terra, alargando sempre mais para o infinito as dimensões do Universo, no conjunto, tinha ficado de pé o arcabouço firme da antiga imagem do mundo, o qual continuava a ser afirmado sem mudança, principalmente em relação ao limite temporal de seis mil anos calculado segundo as cronologias bíblicas. Algumas observações podem ilustrar a naturalidade hoje quase inimaginável com que então se retinha o quadro temporal estreito da imagem bíblica do mundo. Quando Jacó Grimm publicou em 1848 sua “História da língua alemã”, para ele a idade de seis mil anos da humanidade era uma suposição incontestada e que não necessitava de exame. W. Wachsmuth exprime o mesmo com grande certeza na sua reconhecida “História geral da cultura”, aparecida em 1850, e que nesse ponto não se distingue em nada da história geral do mundo e dos povos que Cristiano Daniel Beck havia publicado em 1813, em segunda edição. Poderíamos multiplicar os exemplos sem dificuldade. Bastam estes para mostrar em que horizonte estreito se movia, ainda faz cem anos, a nossa imagem da história e do mundo, até que ponto estava inabalada a tradição, tirada da Bíblia, de uma concepção desenvolvida inteiramente a partir da história judeu-cristã da salvação. Que revolução devia significar que agora, depois da precedente ampliação imensa do espaço, uma igual remoção dos limites tocava ao tempo e à história. Sob muitos aspectos, as consequências de tal processo até são mais dramáticas do que o podiam as da revolução copernicana. A dimensão do tempo toca o homem de modo incomparavelmente mais profundo do que do espaço. Mesmo hoje a concepção do espaço é relativizada e mudada mais uma vez, perdendo sua figura passível de definição firme e sendo submetida à história, à temporalidade. O homem aparece como o ser que se originou em transformações infinitas, as grandes constantes da imagem bíblica do mundo recuam para distancias incomensuráveis – a noção fundamental da realidade se altera: o devir toma o lugar do ser, a evolução o da criação, a ascensão o da deterioração. No quadro dessas considerações, não podemos percorrer todo o conjunto de problemas aqui implicados; queremos apenas debater a seguinte questão: as idéias fundamentais da criação e da evolução podem subsistir uma ao lado da outra contra a aparência inicial, sem que o teólogo entre num compromisso pouco honesto, declarando, por motivos táticos, supérfluo o terreno impossível de defender, depois de pouco antes o ter declarado com todo o volume da voz uma parte insubstituível da fé. O problema tem diversos planos que devem ser distinguidos e tratados separadamente. Em primeiro lugar, há um aspecto relativamente superficial que só em parte tem natureza verdadeiramente teológica: a idéia da constância das espécies, que reinava antes de Darwin, tinha-se legitimado a partir da idéia da criação; ela via cada espécie particular como um dado da criação, existente desde o começo do mundo em virtude da ação criadora de Deus, como algo individual e diverso ao lado de outras espécies. É claro que o pensamento da evolução colide com essa forma de fé na criação e que essa modalidade da fé hoje se tornou insustentável. Mas, com este esclarecimento, a cuja significação e problemática voltaremos mais tarde, ainda não está apreendido todo o âmbito do conceito da criação. Somente se cancelamos todas as criações particulares, substituindo-as pela idéia da evolução, é que se torna visível a diferença real entre as duas concepções; vê-se que cada vez é uma outra forma de pensamento, outro ponto de partida espiritual, outra problemática que constitui o fundamento. A ampliação do conceito de criação, até as formas particulares da realidade, pôde encobrir por muito tempo essa diferença mais profunda, assim como o problema propriamente de que se trata. A fé na criação se pergunta pelo fato do ser como tal; o seu problema é por que existe alguma coisa e não temos o nada absoluto. O pensamento evolucionista, pelo contrário, porque existem precisamente essas coisas e não outras, donde receberam sua determinação e como coexistem com outras formas. Portanto, filosoficamente se diria que o pensamento evolucionista se acha no nível dos fenômenos, ocupa-se com os seres do mundo que ocorrem realmente, enquanto a fé na criação se move no nível ontológico, questiona num plano anterior às coisas individuais, admira o milagre do ser mesmo, procurando dar-se conta do “é” enigmático que predicamos universalmente de todas as realidades que ocorrem. Também se poderia dizer que o conceito da criação se refere à diferença entre o nada e o algo; a idéia da evolução, pelo contrário, àquela entre o um e o outro. A criação caracteriza o ser na sua totalidade como vindo de outro; a evolução, pelo contrário, descreve a construção interna do ser, procurando o donde específico das diversas realidades existentes. Pode ser que para o naturalista a problemática da fé na criação apareça como uma questão ilegítima, à qual o homem não pode responder. De fato, a transição para a consideração evolutiva do mundo representa o passo para aquela forma positiva da ciência que se limita conscientemente àquilo que é dado, apreensível, verificável pelo homem, removendo do âmbito da ciência como estéril a reflexão sobre as verdadeiras razões da realidade. Nesse sentido, a fé na criação e a idéia da evolução não só designam dois campos diversos de problemas, mas duas formas diferentes de pensar. Será também daí que provém a problemática que se sente entre ambas, mesmo quando se torna visível a possibilidade em princípio de se unirem. Com isso nos encontramos já num segundo nível de problemas. Aprendemos a distinguir dois aspectos da fé na criação: a sua forma concreta na idéia da criação de todas as espécies particulares por Deus e a sua base propriamente dita. Constatamos que o primeiro aspecto, isto é, a forma na qual a concepção criadora se tinha concretizado praticamente foi eliminado pela idéia da evolução; aqui o crente deve deixar-se instruir pela ciência, no sentido de que o modo como ele concebia a criação pertencia a uma imagem pré-científica do mundo, a qual se tornou insustentável. Quanto ao fundamento propriamente dito, na pergunta da passagem do nada para o ser apenas tomamos conhecimento da diferença das formas de pensar; quanto às suas últimas características, a teoria da evolução e a fé na criação pertencem a mundos espirituais absolutamente diversos, não se tocando em nada imediatamente. Que devemos pensar dessa neutralidade aparente? Este é o segundo nível da problemática que agora devemos aprofundar. Não é tão fácil avançar aqui, porque a comparação de modos de pensar e o problema de seu possível relacionamento têm sempre alguma coisa de muito delicado. Devemos procurar colocar-nos acima dos dois modos de pensar, indo assim parar facilmente numa terra conceitual de ninguém, na qual se parece suspeito aos dois lados, e logo se tem a impressão de estarmos sentados entre duas cadeiras. Contudo, devemos fazer a tentativa de avançar tateando. Em primeiro lugar, poderemos constatar que a problemática do pensamento evolucionista é mais limitada do que a da fé na criação. Logo a teoria da evolução, de nenhum modo, pode incorporar em si a fé na criação. “Desse modo, ela pode com razão designar a idéia da criação como inaproveitável para si: dentro do material positivo, para cuja elaboração ela está fixada pelo seu método, a idéia criadora não pode ocorrer. Ao mesmo tempo, entretanto, deve deixar aberta a questão de se a problemática ulterior da fé não é justificada em si é possível. A partir de determinada concepção da ciência poderá considerá-la como extracientífica, mas não pode baixar uma proibição, em princípio, de que o homem não se possa voltar, por exemplo, para a questão do ser como tal. Pelo contrário, tais questões últimas serão sempre indispensáveis para o homem que existe precisamente em face do último, não podendo ser reduzido ao comprovável cientificamente. Assim, fica o problema de se a idéia da criação, por ser mais ampla, pode acolher no seu espaço o conceito da evolução ou se, pelo contrário, isso contradiz ao seu ponto básico de partida. À primeira vista razões diversas parecem sugerir essa última alternativa; afinal, os naturalistas e os teólogos da primeira geração que pensavam assim não eram nem tolos nem maus. As duas partes tinham certamente suas razões a que se deve atender, se não se quer chegar a sínteses precipitadas, sem consistência ou desonestas. As objeções que surgem são de natureza muito variada. Antes de tudo, pode-se dizer que a fé na criação era formulada como fé na criação das diversas espécies e na pressuposição de uma imagem estática do mundo; agora que isso se tornou insustentável não se pode livrar sem mais desse lastro e se torna no seu conjunto inaproveitável. Essa objeção, que hoje já não nos parece muito séria, se torna mais insistente, se nos lembrarmos que também atualmente a fé deve considerar indispensável a criação de ao menos um ser determinado: do homem. Se o homem for apenas um produto da evolução, também o espírito é um efeito do acaso. Mas, se o espírito se originou por evolução, a matéria é a origem primeira e suficiente de tudo o mais. E, se isso é assim, Deus Criador e criação desaparecem por si mesmos. De que modo, porém, se poderá conservar fora da cadeia da evolução o homem, um entre muitos seres, por mais diferente e grande que seja? Agora se vê que a criação dos seres particulares e a própria idéia da criação, contudo, não podem ser separadas sem mais, como poderia parecer de início. Aqui parece se tratar de um princípio. Ou todas as coisas são produto da evolução e então o homem também o é. Ou, pelo contrário, não o são. Essa segunda alternativa está eliminada, logo permanece a primeira, e isso, como acabamos de ver, parece pôr em questão toda a idéia da criação, porque suprime o primado e a superioridade do espírito, coisas que de forma alguma devem ser consideradas uma suposição fundamental da fé na criação. Houve quem procurasse livrar-se desse problema dizendo que o corpo do homem seria produto da evolução; o espírito não o seria em caso algum: a este Deus mesmo teria criado, pois o espírito não pode sair da matéria. Essa resposta, que parece ter a seu favor que, de fato, o espírito não pode ser tratado com o mesmo método da ciência natural com o qual se pode seguir a história dos organismos, no máximo satisfaz à primeira vista. Logo se deverá continuar a perguntar: é possível dividir assim o homem entre os teólogos e os naturalistas – a alma para uns, o corpo para os outros – ou não é isso inadmissível para ambos? O naturalista crê ver como aos poucos se constitui toda a estrutura do homem; também encontra um campo psíquico de transição no qual, aos poucos, o proceder humano ascende do animal, sem que possa traçar uma linha clara, para a qual, é verdade, também lhe falta o material – o que muitas vezes não se concede suficientemente. Em contrapartida, se o teólogo está convencido de que o espírito é que dá forma também ao corpo, cunhando-o de ponta a ponta como corpo humano, de modo que o homem só é espírito como corpo e só corpo como espírito e no espírito, também para ele essa divisão do homem perde qualquer sentido. Com efeito, o espírito então criou o seu corpo como algo novo, anulando assim toda a evolução. Como se vê, para ambos os lados, o tema criação e desenvolvimento parece levar a um rigoroso ou/ou que não permite mediações. Mas, segundo nosso estado atual de conhecimento, parece que isso significaria o fim da fé na criação. Assim tornou a estar completamente anulada a bela harmonia que parecia delinear-se já no primeiro plano do questionamento; vemo-nos, de novo, no ponto inicial. Como poderemos avançar? Bem, tocamos antes levemente um plano intermédio, que primeiro parecia de pouca importância, mas que agora, não obstante, se poderia revelar como o centro da questão e o ponto de partida de uma resposta defensável. Até que ponto a fé está ligada à admissão da criação das diversas realidades do mundo por Deus? Essa pergunta, algo tanto superficial, pode ser reduzida a um problema geral que poderá representar o centro de toda a nossa questão: a idéia de um mundo em formação pode ser conciliada com o pensamento bíblico fundamental da criação do mundo pelo Verbo, com a redução do ser a um sentido criativo? A idéia do ser expressa nisso pode coexistir internamente com aquela de devir como a propõe a teoria da evolução? Nessas perguntas está contida ao mesmo tempo outra de pronunciado caráter básico, aquela pela relação entre imagem do mundo e a fé em geral. Será bom começar por aí, pois na tentativa de pensar ao mesmo tempo com fé na criação e cientificamente, quer dizer, de modo evolucionista, evidentemente se atribui à fé uma outra imagem do mundo do que aquela que até agora podia valer como imagem do mundo propriamente dita da fé. Em si, nesse processo, até está o núcleo de todo o problema ao redor do qual giram nossas considerações: priva-se a fé da sua imagem do mundo que parecia ter sido a fé mesma, sendo esta referida a outra imagem. Pode-se fazer isso, sem destruir a sua identidade? – é exatamente nosso problema. Aqui ao mesmo tempo poderá surpreender e tranquilizar o fato de que essa pergunta não surge pela primeira vez na nossa geração. Pelo contrário, os teólogos da Igreja antiga por princípio se viram em face do mesmo problema, pois a imagem bíblica do mundo, como está expressa nos relatos da criação no Antigo Testamento, de nenhum modo era a deles; no fundo, parecia-lhes exatamente tão pouco científica como a nós. Quem fala simplesmente de uma imagem antiga do mundo se encontra num grande erro. De fora, talvez nos possa parecer uniforme; para aqueles, porém, que viviam dentro dela, eram decisivas as diferenças que nós hoje encaramos como irrelevantes. Os relatos antigos da criação exprimem a concepção do mundo do Oriente antigo, principalmente da Babilônia; os Padres da Igreja viviam na época helenista, para a qual essa concepção parecia mítica, pré-científica, inadmissível em todos os aspectos. Deveria servir de auxílio a eles, como a nós, o fato de que a Bíblia é na realidade uma literatura que abrange um período de todo um milênio. Ela se estende desde a imagem do mundo dos babilônios até a do helenismo, pelo qual estão condicionados os textos da literatura sapiencial sobre a criação, em que se encontra delineada uma concepção do mundo e do processo da criação inteiramente diversa dos textos da criação do Gênesis que nos são tão familiares, mas que da sua parte também não são uniformes: o primeiro e o segundo capítulo desse livro dão imagem em grande medida opostas do decurso da criação. Isso, porém, significa que já dentro da Bíblia a fé e a imagem do mundo não são idênticas; a fé se serve de uma concepção do mundo, mas não coincide com ela. Na evolução da Bíblia, esse desenvolvimento formava evidentemente uma realidade óbvia irrefletida: só assim se pode explicar que tenham sido mudadas as formas intuitivas da imagem do mundo, nas quais era moldada a idéia da criação, e isso não só nos diversos períodos da história de Israel, mas também dentro de um e o mesmo espaço de tempo, sem se ver aí um perigo para o que propriamente se pensava. A compreensão dessa amplitude interna da fé desapareceu apenas quando começou a impor-se a assim chamada exegese literal, perdendo-se a capacidade de ver a transcendência da palavra de Deus em todas as suas modalidades particulares de expressão. Ao mesmo tempo – às voltas do século XIII -, também a imagem do mundo se tornou rígida de um modo não conhecido antes, embora na sua forma básica absolutamente não fosse um produto do pensamento bíblico, mas pelo contrário só com dificuldade pudesse ser conciliada com os dados fundamentais da fé bíblica. Não seria difícil descobrir as raízes pagãs dessa concepção do mundo, que mais tarde foi tida como a única cristã. Também se podem ver facilmente os remendos colocados sobre ela e que mostram como a fé a tomou a seu serviço, sem se poder tornar idêntica a ela. Mas aqui não podemos nos ocupar com isso; devemos limitar-nos à pergunta positiva sobre se a fé na criação, que sobreviveu a tantas mudanças da imagem do mundo, agindo ao mesmo tempo como fermento de crítica sobre elas e impelindo o desenvolvimento, pode continuar a existir como uma afirmação racional também no tempo da compreensão evolutiva do mundo. Está claro que a fé, que não era idêntica com nenhuma das imagens anteriores do mundo, mas respondia a uma pergunta que leva para além das concepções do universo, embora a seguir se tenha concluído com elas, também não se pode nem se deve identificar com a nossa imagem do universo. Seria tolo e falso declarar sub-repticiamente a teoria da evolução como um produto da fé, embora também a fé tenha contribuído para que se desenvolvesse aquele horizonte de pensamento no qual se podia originar o problema da evolução. Mais tolo ainda seria considerar a fé como uma espécie de ilustração da teoria da evolução, fazendo que esta seja confirmada por aquela O plano das perguntas e respostas da fé é absolutamente outro, como constatamos antes; tudo de que se pode tratar é verificar se a questão humana básica para a qual ela está ordenada também sob as suposições mentais presentes pode ainda ser respondida legitimamente do modo como faz a fé na criação e de que maneira assim também a imagem evolutiva do mundo pode ser entendida como expressão da criação. Para alcançarmos alguma coisa, devemos examinar mais exatamente tanto o relato da criação como a idéia da evolução; infelizmente aqui ambas as coisas podem ser feitas apenas sumariamente. Perguntemos, portanto, partindo da evolução: como se entende propriamente o mundo, se o concebemos de modo evolutivo? Nesse ponto, é essencial o fato de que o tempo e o ser entram em uma relação fixa: o ser é tempo, não apenas tem tempo. Só no devir ele existe e se descobre, tornando-se ele mesmo. Consequentemente o tempo está entendido de modo dinâmico, como movimento do ser, que por sua vez está orientado para um fim: não circula sempre no mesmo ponto, mas avança. Embora se discuta a possibilidade de se aplicar o conceito de progresso à cadeia da evolução, principalmente porque não se dispõe de uma medida neutral, que permitiria dizer o que propriamente deve ser considerado melhor ou menos bom e quando, por conseguinte, se pode falar seriamente de progresso. Mas a posição que o homem ocupa em face de toda a realidade restante o autoriza a considerar-se a si mesmo ponto de referência pelo menos em relação à pergunta por si mesmo: enquanto se trata dele mesmo, está autorizado, sem dúvida, a tal. Ora, orientando-se desse modo, a direção da evolução e o seu caráter de progresso são incontestáveis em última análise, embora quanto a isso não esqueçamos que nessa evolução há becos sem saída e que seu trajeto está longe de se mover em linha reta. Também voltas são um caminho, e também por voltas se chega à meta, como o mostra também a evolução mesma. A questão de se o ser, entendido deste modo como caminho, isto é, a evolução como um todo, tem um sentido, é verdade que fica aberta, não podendo ser decidida dentro da teoria da evolução mesma; para ela, isso é uma questão estranha ao método, embora para o homem vivo seja a questão básica do todo. Hoje a ciência natural, com conhecimento acertado de seus limites, declara que essa pergunta, indispensável para o homem, não é intracientífica, podendo ser respondida apenas no quadro de um “sistema da fé”. O fato de que muitos julguem que o “sistema cristão da fé” não se presta para isso, devendo-se achar um novo, não nos precisa ocupar aqui, porque aquelas pessoas fazem uma afirmação fora da sua própria decisão sobre a fé e fora da sua ciência. Com isso, porém, já estamos na situação de dizermos precisamente o que significa a fé na criação, em relação à compreensão evolutiva do mundo. Em face da questão fundamental, que não pode ser respondida pela teoria da evolução mesma, a saber, se aqui há sentido, ou não, a fé exprime a convicção de que o mundo como um todo, como diz a Bíblia, vem do LOGOS, isto é, da razão criadora, representando a forma temporal da realização de si mesma. Vista com base na nossa concepção do mundo, a criação não é um início distante, nem um começo dividido por vários estádios, mas se refere ao ser como temporal e em processo de devir: o ser temporal, como um todo, é abarcado pelo único ato criador de Deus, que, apesar de sua fragmentariedade, lhe dá sua unidade na qual, ao mesmo tempo, se fundamenta o seu sentido que não podemos reconstruir no nosso cálculo, porque não vemos o todo, sendo nós mesmos apenas partes. A fé na criação não nos fala da natureza do sentido do mundo, mas apenas do fato dele: por todo esse movimento ascendente e descendente do ser em formação, realiza-se livremente e sob o risco da liberdade o pensamento primordial criador do qual essa realização tem o seu ser. Assim, a nós hoje talvez se nos torne mais claro aquilo que a doutrina cristã da criação sempre afirmou, mas não deve ser concebida segundo o modelo de um artesão que faz diversos objetos e sim à maneira segundo o qual o pensamento é criativo. E, ao mesmo tempo, se vê que o todo do movimento do ser (não só o seu começo) é criação e que do mesmo modo o todo (não só aquilo que vem depois de outra coisa) é realidade e movimento de si mesmo. Resumindo tudo isso, podemos dizer: crer na criação significa entender na fé o mundo em devir, revelado pela ciência como um universo racional proveniente do intelecto criador. Dessa maneira, está já delineada claramente a resposta à pergunta pela criação do homem, porque aí temos a decisão básica sobre a posição do espírito e do sentido no mundo: o reconhecimento do mundo como realização de si mesmo, de um pensamento criador, supõe que se deva reduzi-lo à criatividade do espírito, ao CREATOR SPIRITUS. Em Teilhard de Chardin encontramos a seguinte observação lúcida: “O que distingue um materialista de um espiritualista já não é absolutamente (como na filosofia fixista) o fato de que ele admita uma transição entre infra-estrutura física e a superestrutura psíquica, mas apenas que põe o ponto definitivo de equilíbrio do movimento cósmico na parte da infra-estrutura, quer dizer da decomposição”. Sem dúvida, poder-se-ão discutir as particularidades dessa formulação; mas o ponto decisivo me parece acertado lucidamente: a alternativa materialismo-determinada do mundo, acaso ou sentido, hoje se nos apresenta na forma da questão sobre se é possível considerar o espírito e a vida nas suas formas ascendentes apenas um bolor casual na superfície da matéria (quer dizer do ser que não se entende a si mesmo) ou a meta do devir; ou se, pelo contrário, temos de olhar a matéria como a pré-história do espírito. Escolhendo-se a segunda alternativa, está claro que o espírito não é um produto casual de desenvolvimentos materiais, mas antes, a matéria um momento na história do espírito. Isso, porém, é apenas uma expressão da afirmação de que o espírito foi criado e não é somente um puro produto da evolução, mesmo que apareça na forma da evolução. Chegamos assim no ponto no qual se responde à pergunta sobre o modo como a afirmação teológica da criação pode subsistir juntamente com uma imagem evolutiva do mundo, e que forma ela deve tomar numa concepção evolutiva do universo. Tratar desse ponto nas suas particularidades ultrapassaria o quadro desse ensaio; devem bastar algumas indicações. Em primeiro lugar, dever-se-ia lembrar que também a criação do homem não significa um começo distante, mas em ser Adão estende a cada um de nós: cada homem se refere diretamente a Deus. A fé não afirma mais quanto ao primeiro homem do que quanto a cada um de nós e vice-e-versa, quanto a nós não afirma menos do que quanto ao primeiro homem. Cada homem é mais do que o produto da massa hereditária e do ambiente, nenhum resulta só de fatores intramundanos que podem ser calculados; o mistério da criação envolve a cada um de nós. Além disso, dever-se-ia mencionar a verdade de que o espírito não acede à matéria como algo estranho, como uma segunda substância; conforme o que ficou dito, o surgimento do espírito significa antes que um movimento progressivo chega à meta que lhe foi marcada. Finalmente, dever-se-ia dizer que precisamente a criação do espírito é a que menos imaginar como uma atividade artesanal de Deus que aqui, de repente, começaria a manobrar no mundo. Se a criação significa dependência do ser, a criação particular não é outra coisa do que uma dependência particular do ser. A afirmação de que o homem foi criado por Deus de um modo específico, mais direto do que as coisas da natureza, significa, em expressão um pouco menos figurada, simplesmente que o homem foi querido por Deus de um modo específico: não só como um ser que existe, mas como alguém que conhece a Deus; não só como uma estrutura que Deus pensou, mas como existência que, da sua parte, O pode pensar. Esse modo específico como Deus quis e conheceu o homem é que chamamos sua criação especial. A partir daqui, poder-se-á estabelecer uma verdadeira diagnose sobre o modo da humanização: A ARGILA SE TORNOU HOMEM NO MOMENTO EM QUE UM SER, PELA PRIMEIRA VEZ, EMBORA DO MODO MAIS IMPERFEITO, PODE FORMAR O PENSAMENTO DE DEUS. O PRIMEIRO TU QUE – POR MAIS BALBUCIANTE QUE TENHA SIDO – FOI DITO A DEUS POR BOCA HUMANA DESIGNA O MOMENTO NO QUAL O ESPÍRITO SURGIU NO MUNDO. Assim foi transposto o Rubicão da humanização, pois não é o uso de armas ou do fogo, nem novos métodos de crueldade ou de aproveitamento das coisas que constituem o homem, mas sim sua capacidade de se relacionar imediatamente com Deus. É isso o que diz a doutrina da criação especial do homem; nisso é que está o centro da fé na criação como tal. Nisso também está a razão por que o momento da humanização absolutamente não pode ser fixado pela paleontologia: A HUMANIZAÇÃO É O SURGIMENTO DO ESPÍRITO, que não se pode cavar com a pá. A teoria da evolução não elimina a fé; tampouco a confirma. Mas ela a provoca a que entenda mais profundamente a si mesma, ajudando assim ao homem a entender-se a si mesmo e a tornar-se mais e mais aquilo que é: O SER QUE DEVE DIZER ETERNAMENTE TU A DEUS.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Palestra congresso juventude

Igreja, O que pensa sobre empréstimos a juros e sobre a usura? - EB

Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estêvão Bettencourt, osb
Nº 6, Ano 1958, p. 247
"Que pensa a Igreja a respeito de empréstimos a juros e sobre a usura?"Não foram condenados pelos teólogos antigos e medievais?
E que são os Monti di pietà fundados por um franciscano? Podem-se justificar?"
1. No tocante aos juros e à usura, convém antes do mais, propor um esboço histórico da questão.
Desde que a moeda entrou no uso dos povos, surgiu à tendência a emprestá-la com juros ou com emolumentos resultantes do próprio empréstimo. Os legisladores e filósofos antigos; em consequência, tiveram que estabelecer princípios e tomar medidas que impedissem toda ganância neste setor.
Os gregos parecem ter praticado comumente os empréstimos a juros; Platão e Aristóteles, porem, nos séc. V e IV a.C. os impugnaram, sendo que os argumentos de Aristóteles se tornaram clássicos na Idade Média (cf. Platão, Leis V 741; Aristóteles, Política I 10). Em Roma a usura era praticada, dando, porém, lugar a graves abusos que as leis procuravam coibir ameaçando severas penas para os transgressores (cf. Tácito, Annales VI 16). A legislação do Imperador bizantino Justiniano (+ 565), embora declarasse imoral a usura, limitou-se a restringir as concessões feitas por leis precedentes (13 C. 4,32; 1 C. 7,46).
No povo de Deus, a Lei de Moisés recomendava (sem jamais o impor formalmente) o empréstimo entre israelitas (cf. Lev 25,35-37; Ex 22,24; Ez 18,8; 22,12). O salmista enumerava, entre as condições para se ter acesso ao santuário de Javé, a abstenção de usura. (cf. Sl 14,1-5). Em se tratando, porém, de um devedor estrangeiro, a Lei facultava ao israelita a cobrança de juros (cf. Dt 28, 19s).
No Evangelho Jesus não toca diretamente o problema do empréstimo a juros, mas recomenda de maneira geral a prática desinteressada da caridade, mesmo para com os inimigos: "Se emprestais àqueles de quem esperais receber, que mérito tereis?... Amai vossos inimigos, praticai o bem e emprestai sem esperar coisa alguma de volta" (Lc 6,34s).
Desenvolvendo estas idéias, os escritores cristãos, os doutores da Igreja e os concílios, em termos assaz claros e fortes, tomaram posição contrária aos juros.

Na Idade Média S. Tomaz (+ 1274) num estudo minucioso condenava os juros, baseando-se na tese de que pelos juros se vende duas vezes o mesmo objeto (cf. (Suma Teol. II/II 78, 1-4). A legislação da Igreja medieval corroborava tal sentença; tenham-se em vista as Decretais dos Papas Alexandre III (1159-81) e Urbano II (1185-87), assim como os cânones dos concílios ecumênicos do Latrão III (1179) e de Lião II (1274). O concílio universal de Viena (França) em 1311 chegou a equiparar a um herege quem ousasse negar que o empréstimo a juros é pecado (cf. Denzinger Enchiridion 479).

Não se poderia, porém, deixar de notar que essas condenações pressupunham ser a praxe dos juros extorsiva e acabrunhadora para os pobres. Não visavam circunstâncias especiais, que pudessem legitimar a cobrança de moderada taxa suplementar.
As primeira vozes a se insurgir perentoriamente contra o ponto de vista negativo foram as de Calvino (+ 1564) e Carlos du Moulin (+ 1566), enquanto Lutero reprovava os juros. O primeiro, negando que o dinheiro seja um bem improdutivo, comparava-o a um campo ou uma casa, bens férteis para o seu proprietário; daí deduzia que, assim como não é pecado alugar uma casa, também  não será iníquo emprestar dinheiro a juros; só se poderia falar de pecado em casos de taxas exageradas.
Um século mais tarde, C. Saumaise (+ 1653) reforçou a posição de Calvino, afirmando dois princípios: o uso do dinheiro pode ser vendido; o preço desse uso deve ser determinado pela vontade livre dos interessados. A nova tese foi angariando adeptos cada vez mais numerosos entre católicos e protestantes, que apelavam para novos costumes comerciais e novas modalidades de contratos da era moderna. O Papa Inocêncio XI em 1679 ainda condenou sentenças diretamente favoráveis aos juros (cf. Denzinger, Ench. 1190s). Nos decênios seguintes foram-se sucedendo as opiniões antagônicas sobre o assunto, com vantagem, porém, para a tese da felicidade, que se ia tornando cada vez mais comum. O estado de coisas provocou nova intervenção pontifícia: a cidade de Verona fizeram um empréstimo a juros de 4%; o fato foi referido em memorial ao Papa Bento XIV por um de seus amigos; o Pontífice então, que era grande jurista, resolveu empreender estudo aprofundado da questão e, após madura deliberação, escreveu a encíclica "Vix pervenit" de 1º de novembro de 1745: acentuou mais uma vez as razões contrárias aos juros; reconhecia, porém, que, no caso alguém sofresse conseqüências penosas do empréstimo de dinheiro, poderia a este título exigir justa compensação. Contudo a controvérsia não cessou, e a praxe dos juros se foi alastrando cada vez mais, até que, a partir do século passado, o problema tomou nova configuração e conseqüentemente mereceu nova solução, a solução vigente em nossos dias.
Note-se ainda que no fim do séc. XVIII a Assembléia Constituinte Francesa introduziu na linguagem oficial dos juristas a distinção entre juros (intérêts, Zins)  e outra (usure, Wucher), distinção hoje comumente adotada; fala-se de juros quando se cobra taxa legal (reconhecida pelo Estado), ao passo que a usura significa extorsão.
2. Examinemos agora os princípios a ser aplicados na solução do problema.
Observe-se, antes do mais, a distinção entre bens férteis e bens estéreis. Os primeiros acarretam vantagens para quem os usa, sem que por isso se destruam; tais são os campos, os animais de carga, as árvores frutíferas, os instrumentos de trabalho, etc. Os bens estéreis, ao contrário, são os que só implicam emolumento para quem os emprega, mediante destruição de si mesmos; consomem-se, quando utilizados; tenham-se em vista, por exemplo, os alimentos, o carvão, o óleo para a iluminação, etc.
Feita essa distinção, note-se o seguinte: em se tratando de bens estéreis, praticamente não tem cabimento a distinção entre a substância e o uso dos mesmos; o seu uso não pode ser objeto de uma avaliação ou de um preço independente do preço da respectiva substância; quem empresta um bem estéril, concedendo a outrem o uso desse bem, concede-lhe também o direito de destruir; por conseguinte, quem recebe um bem estéril emprestado, é obrigado a devolver o equivalente em quantidade e qualidade. Quem exigisse mais do que isto, violaria a justiça comutativa, porque praticamente venderia o objeto duas vezes. - Pode acontecer, porém, que quem empresta um bem estéril, venha com isso a sofrer algum prejuízo: ou deixa de auferir um lucro que lhe tocaria caso não emprestasse, ou padece real diminuição do valor de seu capital ou corre sério risco de perder o objeto emprestado. Em tais casos, quem empresta tem o direito de exigir uma compensação; esta, porém, lhe será dada não por efeito do empréstimo como tal, mas por motivos extrínsecos ao mesmo.

Quantos aos bens férteis, pode-se separar da sua substância o uso dos mesmos. Este, portanto, pode-se tornar objeto de estimação e contrato próprios, de sorte que quem os toma de empréstimo seja obrigado não somente a restituir o objeto como tal, mas também a pagar uma quantia correspondente à utilização do objeto.
Trata-se agora de saber em qual das duas categorias se coloca o dinheiro.
Os antigos e medievais o classificavam entre os bens estéreis; por isto tinham, por ilícita a exigência de alguma taxa correspondente ao uso do dinheiro emprestado. No máximo, admitiriam a compensação esporádica, motivada por elementos contingentes e extrínsecos ao objeto emprestado. A aplicação dos princípios fazia-se, pois, segundo rigorosa lógica.
Nos tempos modernos, os princípios conservam seu pleno vigor. Os moralistas, porém, são obrigados a reconhecer que o andamento da economia vigente é muito diverso do dos séculos passados, de sorte que, a partir do séc. XIX, já se pode dizer que o dinheiro se tornou um bem fértil, não podendo mais ser considerado bem improdutivo como na Idade Média; quem tem dinheiro em mãos, tem sempre, na vida moderna, a possibilidade de o fazer render; múltiplas empresas lucrativas se lhe oferecem, onde o dinheiro pode ser vantajosamente colocado; quando mais não seja, quem tem dinheiro em mãos, tem crédito para desenvolver seus negócios. Ao passo que na Antigüidade não havia razão para dar valor econômico à posse atual do dinheiro, hoje tal valor não pode ser denegado. Ademais a desvalorização crescente do dinheiro na era moderna faz que a mesma quantia não represente o mesmo valor tempos após o empréstimo; a justiça, pois, exige que quem empresta receba um pouco mais do que emprestou, para não ser lesado. São estes fatores que atualmente dão fundamento ao direito a juros ou a uma compensação financeira correspondente ao fato mesmo de alguém se privar provisoriamente do uso do seu dinheiro. Atendendo a estas circunstâncias novas, a Igreja, sem derrogar aos princípios expostos, não condena a praxe dos juros, mas, ao contrário, a tem por justa.
A partir do século passado as Congregações do Santo Ofício e da S. Penitenciaria tem explicitamente reconhecido a legitimidade dos juros moderados.
3. Monti di pietà eram institutos fundados na Idade Média para emprestar dinheiro em troca de objetos penhorados cobrando uma taxa mínima correspondente às despesas de manutenção dos ditos institutos. Visavam defender os indigentes contra a extorsão dos usuários.
O primeiro Monte di pietà teve origem na cidade de Florença (Itália) em 1358, por obra de franciscano Francesco da Empoli; faliu, porém, em breve por falta de experiência administrativa. A maioria dos Monti di pietà  foi fundada na segunda metade do séc. XV; notório é o de Perúsia, estabelecido em 1642 com o dinheiro proveniente de esmolas recolhidas por Frei Barnabé de Terni (o que bem demonstra que os Monti di pietà foram a princípio concebidos como instituições de caridade). Os Papas do séc.XV aprovaram repetidamente tais obras, pois tinham finalidade evidentemente altruísta.
Alguns teólogos da época, porém desaprovavam a cobrança da exígua taxa destinada a cobrir as despesas da manutenção dos Monti di pietà (era preciso remunerar os funcionários que trabalhavam nessas casas). Tinham-na na conta de juros. O agostiniano N. Bariano publicou mesmo o opúsculo "De monte impietatis" (Cremona 1496), em que julgava a praxe escandalosa. Um Capítulo Geral dos Franciscanos Observantes reunido em Florença no fim do séc. XV aprovou após vários debates a cobrança da pequena contribuição; o concílio ecumênico do Latrão V em 1512-17 ratificou  o uso.
Os Monti di pietà,  a partir de 1572, foram sendo fundados fora da Itália. Aos poucos, porém perderam seu caráter (inegável, durante muito tempo) de obra estritamente caridosa; de tal modo ampliaram suas atividades que se converteram em autênticas casas de crédito, sujeitas às vicissitudes da especulação e dos negócios.
           

Idade Média, período de obscurantismo? - EB

Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 5, Ano 1958, p. 213
"A Idade Média terá sido, em virtude da predominância da religião católica, um período de obscurantismo?"
A Idade Média é por vezes considerado qual "noite de mil anos" que se abateu sobre a civilização, constituindo, pela barbárie e ignorância de seus homens, verdadeira mancha no decorrer da história.
É o que, conforme alguns autores, a própria designação "Idade Média" deveria incutir. Esta foi forjada pelos humanistas do séc. XVI, que com tal denominação queriam caracterizar o período da língua latina que vai da Idade Clássica antiga ao Renascimento da mesma no séc. XVI; entre duas épocas áureas estaria uma fase intermediária ou "média", fase apagada ou decadente na história do idioma latino. Em 1688, o historiador alemão Cristóvão Keller (Cellarius) na sua "Historia Medii Aevi" (História da Idade Média) adotou pela primeira vez o nome no setor da história da civilização - o quedava a entender que o período decorrente entre a Idade Antiga e a Renascença foi igualmente uma época apagada e decadente.
Nem todos os autores, porém, concordam com tal modo de ver. O historicismo do século passado tinha a Idade Média na conta de período de realizações construtivas.
1. O período antigo ou greco-romano da civilização termina com a ruína do Império Romano, o qual cedeu aos golpes da invasões bárbaras (Roma caiu em 476). A Europa e a África Setentrional foram ocupadas pelos germanos invasores, que, após haver derrubado as instituições antigas, eram incapazes de reconstruir a vida social, pois careciam de valores culturais correspondentes. Ora, tendo desaparecido a figura do Imperador no Ocidente, a única autoridade capaz de tomar as rédeas da situação européia dos séc. VVII era a autoridade eclesiástica: o Papa, então, os bispos e os monges se puseram a preservar  da perda total os valores da civilização greco-romana, utilizando-os na confecção de nova síntese cultural.
Não há dúvida de que a Religião Católica foi altamente benemérita neste trabalho de reconstrução criaram-se valores e instituições de vulto no início e no decurso da Idade Média. Detendo-nos apenas na história da educação e da cultura, devemos mencionar que foram os clérigos e monges que asseguraram o ensino primário nas escolas catedrais, monacais e palatinas (isto é, erguidas respectivamente junto a uma igreja catedral, a um mosteiro, a um palácio de rei).
Eis alguns documentos a propósito:
Teodulfo, bispo de Orléans no séc. VIII, promulgou a seguinte lei: "Os sacerdotes mantenham escolas nas aldeias, nos campos; se qualquer dos fiéis lhes quiser confiar os seus filhos para aprender as letras não os deixem de receber e instruir, mas ensinem-lhes com perfeita caridade. Nem por isto exijam salário ou recebam recompensa alguma a não ser por exceção, quando os pais voluntariamente a quiserem oferecer por afeto ou reconhecimento" (Sirmond, Concilia Galliae II 215).
Este decreto passou verbalmente para as legislações eclesiásticas da Inglaterra Freqüentemente os concílios regionais dos séc. XIII/XI repetiram semelhantes normas. O III concílio ecumênico do Latrão em 1179, por sua vez, lavrou o seguinte cânon:
"A Igreja de Deus, qual mãe piedosa, tem o dever de velar pelos pobres aos quais pela indigência dos pais faltam os meios suficientes para poderem facilmente estudar e progredir nas letras e nas ciências. Ordenamos portanto que em todas as igrejas catedrais se proveja um benefício (rendimento) conveniente a um mestre, encarregado de ensinar gratuitamente aos clérigos dessa igreja e a todos os alunos pobres" (can. 18, Mansi XXII 227s).
O IV concílio ecumênico do Latrão (1215) renovou este decreto.
Também o ensino superior na Idade Média se ministrava por iniciativa, ou ao menos sob a tutela, de bispos e príncipes cristãos. As primeiras Universidades foram fundadas por volta de 1100. Constituem uma das criações mais originais e valiosas da Idade Média: no período greco-romano cada filósofo e cada mestre de ciências tinham sua escola - o que implicava justamente no contrário de uma Universidade. Esta na Idade Média reunia mestres e discípulos de várias nações, os quais constituíam poderosos focos de erudição. Até 1440 foram erigidas na Europa 55 Universidades e 12 Institutos de ensino superior, onde se ministravam cursos de Direito, Medicina, línguas, artes, ciências, Filosofia e Teologia. Em 1200 Bolonha contava dez mil estudantes (italianos, lombardos, francos, normandos, provençais, espanhóis, catalães, ingleses germanos, etc.). O Papa Clemente V no concílio de Viena em 1311, mandou que se instaurassem nas escolas superiores cursos de línguas orientais (hebreu caldeu, árabe, armênio, etc.), o que em breve foi executado em paris, Bolonha, Oxford, Salamanca e Roma.
Poder-se-iam multiplicar dados deste gênero. Estes, porém, já dão a ver que a Idade Média não foi alheia à cultura justamente em virtude da influência da Igreja que nela se exerceu.
2. É preciso, porém, reconhecer uma particularidade da ciência medieval: os homens da época careçam do aparato técnico necessário a experiências e investigações precisas; o seu horizonte geográfico e astronômico também era bastante restrito. Sendo assim, a ciência medieval era levada não raro a julgar s fenômenos segundo a sua aparência e pouco habilitada a exercer o senso crítico. Outra conseqüência da penúria de meios de observação é que os cientistas medievais procediam por dedução mais do que por indução; não podendo formular as leis da natureza na base de experiências exatas físico-químicas, os medievais as formulavam recorrendo a princípios especulativos, abstratos, dos quais julgavam poder deduzir a explicação dos fenômenos da natureza. Este trabalho, porém, eram em alta escala sujeito a erro: os medievais não raro julgavam (e nisto se enganavam) que a Bíblia Sagrada podia ser utilizada para elucidar não somente questões teológicas, mas também temas de ciências profanas, de sorte que, na falta de outros critérios, apelavam para a Escritura a fim de resolver problemas de ordem biológica, astronômica etc. (haja vista o que ainda no séc. XVII se deu no caso "Galileu", do qual trata "Pergunte e Responderemos" nº 4/1958 qu. 12).
Deve-se sublinhar que tal atitude se devia em grande parte à falta de instrumentos precisos para a investigação da natureza (falta bem compreensível na Idade Média, já que o homem só aos poucos progride na conquista do mundo que o cerca). Não seria justo dizer que os cristãos medievais tinham medo da ciência empírica e que as autoridades eclesiásticas travavam os estudos a fim de evitar conflitos de ciência e fé; entre os pioneiros dos avanços científicos medievais contam-se eclesiásticos, monges e cristãos de valor, como Sto. Alberto Magno  O.P. Rogério Bacon O.F.M., João Peckam O.F.M. (arcebispo de Cantuária), Dietrich de Freiberg O.P., Jordão Nemorário, Guilherme de Moerbeke O.P....
Muito significativo é um dos últimos depoimentos sobre o assunto, proferido em 1957 por um grupo de estudiosos que, sem intenção confessional alguma, escreveram a história da ciência antiga e medieval:
"Parece-nos impossível aceitar a dupla acusação de estagnação e esterilidade levantada contra a Idade Média latina. Por certo a herança (cultural) antiga não foi totalmente conhecida nem sempre judiciosamente explorada;... mas não é menos verdade que de um século para outro - mesmo de uma geração a outra dentro do mesmo grupo - há evolução e geralmente progresso.
A Igreja... na Idade Média salvou e estimulou muito mais do que freou ou desviou. Por isto, embora só queira apelar para a Antigüidade, a Renascença é realmente a filha ingrata da Idade Média" (La science antique et médiévale, sous la direction de René Taton, Presses Universitaires de France. Paris 1957, 581s).
Em particular com referência ao fato de que só a partir de fins do séc. XIII se começaram a fazer dissecações e observações em cadáveres humanos, dizem os mencionados estudiosos:
"Como quer que seja, não se poderia aceitar a opinião um tanto simplista segundo a qual a Igreja teria sido a grande responsável da estagnação dos estudos de anatomia" (ibd. 580).
Estes testemunhos tão insuspeitos levam a concluir que as crenças cristãs dos homens medievais não prejudicaram a cultura humana, antes a favoreceram, apesar das conseqüências errôneas que em matéria de ciências os medievais julgavam por vezes dever deduzir da sua fé. De o observador muito maior atenção à outra faceta da cultura medieval: a capacidade humana de especulação filosófica parece ter atingido então o auge da sua clareza e agudez, criando as famosas Sumas de lógica, ontologia metafísica da Idade Média. Estas obras, continuando as dos grandes pensadores gregos (principalmente de Aristóteles), até hoje são monumentos perenes, não ultrapassados, da cultura humana. É, sem dúvida, este aspecto positivo que merece preponderância numa apreciação objetiva da Idade Média.

Ateísmo e Ciência? - EB

Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 299 - Ano 1987 - p. 146
 Em síntese: Ao invés do que muitos pensam, a mensagem cristã se prende estritamente ao uso da razão e ao estudo das ciências experimentais. É preciso banir a suspeita de divórcio entre aquela e estas. Verdade é que o estudo não prova a verdade intrínseca das proposições de fé, mas serve para alicerçar a crença. A onda de antiintelectualismo vigente nos últimos decênios prejudica a vida cristã; esta se torna, em conseqüência, algo de subjetivo, sentimental, inconsistente e sujeito a perder sua identidade. As proposições de fé se dirigem à inteligência humana e não apenas ao coração. - A inteligência foi dada por Deus ao homem para que este não só descubra as verdades acerca do mundo contingente e material, mas também chegue ao conhecimento de Deus como Princípio e Fim de todas as coisas.
Especialmente os resultados das ciências naturais - e da própria astronomia - interessam grandemente aos cristãos. A Bíblia não ensina proposições de ordem científica sobre a constituição e a origem do mundo e do homem; a sua doutrina é de índole sapiencial ou teológica, de modo que nunca se poderá dizer que há antagonismo entre a mensagem bíblica e as ciências naturais.
Houve épocas em que se  julgava haver total incompatibilidade entre a ciência e a fé; quem estudasse o mundo, não poderia crer em valores transcendentais. Em nossos dias, embora esta posição se vá dissipando, persiste a convicção, em muitos, de que a fé e a ciência, mesmo não sendo antagônicas, nada têm que ver uma com a outra; a fé seria uma posição assumida gratuita ou emotivamente pelo estudioso de ciências naturais. Ora esta cisão entre saber científico e saber religioso do homem desfigura um e outro e leva a conclusões muito errôneas. - Eis por que procuraremos, nas páginas seguintes, examinar o problema com exatidão.
A revolução cosmológica moderna
Em meados do século XX descortinou-se aos cientistas uma  visão do universo assaz diferente da que as gerações passadas tinham concebido: os contemporâneos tomaram consciência de que o universo é um sistema que tem sua evolução, sua história e, por conseguinte, também está em constante regime de envelhecimento.
Os antigos gregos imaginavam o mundo como algo que não tivera início nem teria fim, algo sem evolução nem desgaste; seria divino e incriado. A escola de Parmênides (séc. VI/V a.C.) concebia esse algo divino como estático, fixo, ao passo que Herácllito de Éfeso (576-480 a.C.) o entendia como algo sujeito a constantes pulsações do uno ao múltiplo  e do múltiplo ao uno ou algo sujeito ao eterno e monótono retorno. - Também sabemos que, para os antigos, o universo se reduzia ao nosso sistema solar; ao contrário, hoje se afirma que o universo é um "gás de galáxias", um gás do qual  cada molécula é uma galáxia.¹ A nossa galáxia compreende cerca de cem bilhões de estrelas; o nosso sol é uma destas. Este gás de galáxias está em regime de expansão, isto é, comporta-se como um gás que invade novos  espaços e se dilata; ao mesmo tempo se desgasta e envelhece, conforme o segundo princípio de termodinâmica ou a lei da entropia (ou da degradação) formulada por Carnot ( 1832) e Clausius (+ 1888). -  Esta lei ensina que a energia motriz ou dinâmica se converte em calor (ou energia térmica), mas o calor não se converte de nove em movimento. Em conseqüência, o universo posto em expansão tende a se estagnar ou estabilizar.
Entropia é palavra grega que significa involução; é o contrário da evolução. A evolução cósmica, física e biológica é o crescimento irreversível e acelerado da informação  (ou das estruturas moleculares) da matéria inanimada e da vida. Ora a entropia é a tendência natural de todas as estruturas físicas, químicas e bioquímicas a voltar atrás se não recebem novas informações; decompõem-se e desfazem-se quando não re-alimentadas. - Numa palavra, todos os seres materiais estão sujeitos a esta lei.
Mais precisamente vejamos como se dá a evolução da matéria, que constitui o universo.
A formação da matéria
A matéria não é uma realidade isenta de origem e composição, como julgavam os atomistas gregos  Demócrito (460-370 a.C.) e Leucipo (séc. V a.C.), mas conhece etapas de formação.
1) Recuando até os primórdios do universo, podemos dizer que a matéria se reduzia à sua forma mais simples ou a partículas: destas as mais numerosas eram os eletrônicos e suas antíteses, os positrônios; havia também partículas sem massa, como os fotônios, os neutrinos e os anti-neutrinos.
2) A partir de tais partículas, formou-se o primeiro átomo, o mais simples, que é o de hidrogênio. Depois deste, formou-se o de hélio.
3) A seguir, formaram-se as estrelas, que são  massas de hidrogênio, que se transforma lenta, mas irreversivelmente, em hélio. No interior das estrelas é que se formam os núcleos mais pesados ou os elementos de composição mais complexa.
4) A formação dos elementos químicos não é indefinida; ela produz uma centena de átomos, e  pára. Segue-se a formação de moléculas, que resultam da estruturação de átomos em equilíbrio. As moléculas, por sua  vez, se compõem e associam entre si nas chamadas "macro-moléculas". Estas também se combinam umas com as outras, de modo a dar as "moléculas-gigantes".
5) As  moléculas-gigantes, que apareceram na face da Terra há cerca de três bilhões e meio de anos, são mensagens genéticas; são telegramas ou informações que governam a construção dos corpos vivos, desde os mais simples até os mais complexos. A estrutura desses seres vivos está inscrita em tais moléculas.
6) Mas também a evolução das moléculas não é indefinida. Ela se encerra com a formação de cinco moléculas-gigantes fundamentais: a adenina, a guanina, a timina, a citosina e a uracil. As quatro primeiras se combinam três a três. Estas cinco moléculas servem para se escreverem todas as mensagens genéticas (ou as estruturas básicas) do ser vivo, desde os monocelulares até o homem (que é relativamente muito recente sobre a face da Terra). Formam enormes cadeias arquitetônicas, das quais resultam as proteínas, com seus vinte aminoácidos fundamentais.
7) Depois da evolução dos átomos e das moléculas, começa a evolução dita "biológica". Como as evoluções anteriores, também a biológica não é indefinida; termina com a formação de alguns sistemas biológicos principais - o que vem comprovado pelo fato de que há milhões de anos não se vê o surto de novos grupos zoológicos, nem se poderia indicar a partir de que tronco se daria hoje a evolução dos viventes.
Vê-se, pois, que o universo é um sistema em evolução irreversível, dirigida para composições sempre mais complexas e também ... mais imprevisíveis; de fato, quem examina o universo em alguma das fases de sua evolução, não tem dados para predizer o futuro dessa evolução; o passado é sempre mais pobre do que o futuro dentro dos quinze bilhões de anos que conhecemos de sua história.
8) Voltemos a considerar os elementos mais simples que compõem a matéria. Cada estrela é uma massa de hidrogênio, que se transforma lenta, mas irreversivelmente em hélio. Quando  esta transformação está totalmente realizada ou acabada, a estrela torna-se estrela morta, uma anã branca, constituída por "matéria degenerada".
9) Disto se segue que nenhuma estrela - nem o nosso sol - pode ser eterna. Não são compatíveis entre si o conceito de evolução e o de eternidade, pois evolução diz "começo e transformação", ao passo que a eternidade é a negação de começo e transformação. Sendo, pois, comprovada a evolução do universo, fica comprovado também que ele teve começo. Nenhuma galáxia é eterna, nem o conjunto das galáxias é eterno, pois todas se acham em evolução. Em vez de falar de eternidade do sol ou do universo (como faziam os antigos), a  ciência contemporânea assinala as datas aproximadas de origem das estrelas e das galáxias.
Uma vez esboçadas estas linhas de cosmologia contemporânea, procuremos ver como se comporta o ateísmo diante das conclusões da ciência.
Que diz o ateísmo a propósito?
Enunciaremos duas posições do  ateísmo frente às ciências cosmológicas.
Os antigos gregos e o século XIX
Na sua carência de conhecimentos de astronomia, os antigos pensadores gregos (os pré-socráticos, Platão, Aristóteles, Plotino e outros...) afirmavam que o universo é divino; os astros seriam substâncias divinas, isentas de evolução, de história, de envelhecimento; o universo não teria início nem fim, mas seria o Ser  Absoluto.
Esta posição é insustentável aos olhos da ciência moderna. Não obstante, no século XIX era defendida por pensadores como Marx e Engels. Este, por exemplo, restaurou a concepção dos antigos gregos: o universo estaria em movimento cíclico eterno; o universo seria o Ser Absoluto, para o qual não se deve procurar começo nem fim nem envelhecimento. O princípio de Carnot-Clausius, que estabelece a entropia ou a degradação da energia, foi ignorado conscientemente por Engels. Friederich Nietzsche (+  1900) fez o mesmo: retomou o tema mitológico do eterno retorno, difundido não só na civilização grega, mas em outras culturas antigas; em nome desse mito, rejeitou com horror a idéia de um universo cuja história fosse linear, progressiva e irreversível; aliás, para Nietzsche, o universo  é um  caos destituído de toda forma. Augusto Comte (+ 1857), outro ateu do século XIX, proibiu aos seus discípulos o estudo da análise do espectro, mediante o qual se pode perceber a composição física e química das estrelas.
Como se vê, o problema para os pensadores ateus do século  XIX era o de integrar os dados das ciências experimentais na sua filosofia concebida abstratamente ou preconceituosamente. Em vez de reconhecer as conclusões filosóficas a que levavam as pesquisas cosmológicas, distanciaram-se destas, proclamaram o ateísmo pré-concebido como dogma ou como a única filosofia científica possível. O ateísmo foi, sim, o dogma do século XIX.
No século XX: divórcio entre ciência e ideologia
A cosmologia contemporânea, estudada sem preconceitos, não se concilia com o ateísmo. Com outras palavras: o ateísmo, do ponto de vista científico, é inconcebível ou impensável. Ele só pode ser professado e proclamado nas escolas e nas Universidades por quem não queira levar em conta as conclusões das ciências cósmicas modernas. Por isto nota-se que famosos pensadores ateus do nosso século  nutriram desprezo pelas ciências naturais.
Com efeito. Tal foi o caso de Jean-Paul Sartre, que pretendia ignorar as ciências experimentais e desdenhava a pesquisa das realidades físicas e biológicas. Martin Deidegger, existencialista, também menosprezava os estudos experimentais. Diga-se o mesmo a propósito de Albert Camus (1913-1960), para quem o mundo é absurdo.
Entre os filósofos marxistas da Cortina de Ferro, que naturalmente professam o ateísmo, instaurou-se uma crise quando os cientistas ou físicos quiseram desenvolver as conseqüências da lei da entropia. Esta contradizia às premissas do ateísmo, que, para subsistir, tem de admitir a eternidade  da matéria ou, ao menos, deve ignorar as conclusões das ciências físicas contemporâneas. Foi optando por esta alternativa que muitos resolveram o problema na Rússia, na Polônia, na Romênia (na França também...); julgam que é impossível uma Filosofia da Natureza ou uma filosofia das ciências experimentais e a ontologia marxista; para eles, o marxismo se reduz a uma filosofia da história, ao passo que para Marx, Engels e Lenin ainda era uma filosofia da natureza ou uma ontologia, que admite o universo envolvido num processo cíclico, para o qual não havia necessidade de procurar explicação da causa remota, pois o universo se explicaria por si mesmo. - Aliás, é interessante notar que tanto Engels como Nietzsche e Heidegger se referem freqüentemente aos mais antigos filósofos gregos (Heráclito, Parmênides, Xenófanes, Anaximandro); outros ateus se apoiam em Demócrito e Leucipo, atomistas gregos, todos eles falhos no tocante à investigação científica, mas tidos como válidos para eliminar o conceito de um Deus distinto do mundo e Criador deste. Também a filosofia panteísta dos estóicos é evocada pelos autores ateus modernos, pois esta admite o Logos (a Razão) imanente no universo, Logos que tornaria o universo inteligente e harmonioso sem o recurso a um Deus Criador; assim, mais uma vez, o universo com suas leis se explicaria por si mesmo.
Vê-se, pois, que o conflito fundamental entre o ateísmo moderno e o monoteísmo (que tem suas raízes no pensamento hebreu) vem a ser o confronto entre uma cosmologia que faz do universo um Absoluto, que não precisa de explicação ulterior, e uma filosofia que relativiza e dessacraliza o universo, reduzindo-o à categoria de mera criatura de um Ser Supremo distinto do mundo e do homem. Quem terá razão neste confronto? - A resposta só pode ser deduzida da observação da realidade objetiva, observação despojada de qualquer preconceito e guiada unicamente pela evidência das ciências experimentais. Ora quem segue este método, verifica com muita clareza que os antigos filósofos gregos e os seus discípulos modernos não tinham nem têm razão.
Resta agora perguntar:
Por que há tanto ateísmo hoje?
Apontaremos duas grandes causas de tal fenômeno.
Preconceito contra a Metafísica
A Metafísica é a reflexão que se estende para além das coisas físicas ou naturais; é o estudo que procura não somente as causas próximas, mas as causas remotas ou as causas das causas, e assim vai penetrando dentro do recôndito do que é ou do Ser; atinge o Invisível através do visível. Se, por exemplo, vejo  um raio, sinto a necessidade de explicá-lo; pesquisando cientificamente, chego à conclusão de que é o efeito de um choque elétrico; mas minha mente pode não se dar por totalmente satisfeita com esta resposta e, por conseguinte, indago ulteriormente: donde vem a eletricidade?... Porque existe ela? Quem lhe deu a existência? Assim aos poucos vou cultivando a metafísica (meta = além; physiká = as coisas naturais).
A Metafísica foi muito estimada pelos pensadores até a época moderna. Immanuel Kant (+ 1804) quis dar-lhe um golpe mortal, afirmando que só conhecemos fenômenos sem poder penetrar nas suas causas; não atingimos a realidade em si mesma ou como tal. Augusto Comte (+ 1857) tomou posição semelhante, recusando todo conhecimento que ultrapasse o das ciências empíricas. Friederich Nietzche (+ 1900), Sigmund Freud (+ 1939) e seus discípulos também proclamaram a morta da metafísica. - Tal negativa influenciou não somente os materialistas, mas também os cristãos; vários destes, embora reconheçam a existência de Deus e dos valores transcendentais, julgam que estes não podem ser atingidos pela razão, mas unicamente pela fé. A crença em Deus e nas verdades religiosas seria algo alheio ao setor da razão; seria uma espécie de convicção que não se poderia justificar ou explicar racionalmente. Assim há pensadores cristãos que são kantianos e nos dizem que a análise metafísica do mundo e da natureza é impossível; a afirmação da existência de Deus nada teria que ver com o estudo da natureza e do universo; não seria possível uma filosofia da natureza. Tais pensadores cristãos se encontram assim com os marxistas e os freudianos, e esse encontro é geralmente fatal para eles, isto é, implica muitas vezes a perda mesma da crença em Deus. Com efeito; sem fundamento na lógica e nas categorias da razão, qualquer opção é meramente subjetiva e arbitrária, carente de solidez e incapaz de se transmitir de maneira convincente.
A recusa da filosofia da natureza leva ao velho materialismo do século passado, o qual afirmava que, destruído o cérebro a consciência humana e se tem a morte absoluta, ou ainda... que a destruição do corpo humano é a destruição da própria pessoa.
Na verdade, o que é impossível é destruir a Metafísica ou não cultivar a Metafísica. Com efeito; já Aristóteles (+ 322 a.C.) dizia: "Se é preciso filosofar, filosofemos. Se não é preciso filosofar, filosofemos ainda para provar que não é preciso filosofar". O que significa: negar a Metafísica ainda é fazer Metafísica. Negar a finalidade do universo ou negar Deus é afirmar que o mundo é regido por mecanismos e, em última análise, pelo acaso. Ora quem postula tais mecanismos, de certo modo está praticando a Metafísica ou está admitindo algo que a ciência não prova. Quanto ao recurso ao acaso, é a capitulação da razão; o acaso é o nome "ilustrado" ou "bonito" que o homem dá à sua ignorância, pois não existe acaso como sujeito ou não existe o "Sr. Acaso"; este é apenas o cruzamento, para nós imprevisto, de causas que têm sua finalidade e sua razão de ser vem especificadas (pelo fato de não termos previsto essas causas se encontrariam, surpreendemo-nos e dizemos que isto se deu por acaso).
Preconceitos contra a fé cristã
Numa atitude antiintelectualista, muitos se fecham em preconceitos contra a fé; deixam-se guiar não pela razão, mas por sentimentos, "opções" ou displicência. Julgando que a análise objetiva e racional do fato religioso é impossível ou não merece ser feita, assumem atitudes arbitrárias, que tais pensadores não saberiam justificar aos seus próprios olhos.
É certo que, da parte das pessoas de fé - digamos: ... dos cristãos -, tem havido motivo para certa aversão à fé; assim as falsas interpretações da Bíblia, a piedade adocicada ou sentimental, os contra-testemunhos decorrentes da fragilidade humana... Muitos confundem o Cristianismo com aberrações teóricas ou práticas que são apresentadas ao público; julgam que, para ser cristão, é preciso renunciar à inteligência ou à cultura. Grande número desses pensadores que se dizem ateus, na verdade não desdizem à fé no verdadeiro Deus (que eles não conhecem), mas rejeitam as distorções da autêntica noção de Deus.
Tal situação requer, do lado dos cristãos, uma revisão do testemunho que dão ao mundo a fim de o expurgar de deformações e, do lado dos ditos "ateus", o uso da razão, a fim de que possam ter conceito mais claro da mensagem da fé e saibam distinguir do acidental  o essencial ou das facetas contingentes a verdade perene professada pela fé.
Conclusão
Ao invés do que muitos pensam, a mensagem cristã se prende estritamente ao uso da razão e ao estudo das ciências experimentais. É preciso banir a suspeita de divórcio entre aquela e estas. Verdade é que o estudo não prova a verdade intrínseca das proposições de fé, mas serve para alicerçar a crença. A onda de antiintelectualismo vigente nos últimos decênios prejudica a vida cristã; esta se torna, em conseqüência, algo de subjetivo, sentimental, inconsistente e sujeito a perder sua identidade. As proposições de fé se dirigem à inteligência humana e não apenas ao coração. - A inteligência foi dada por Deus ao homem para que este não somente descubra as verdades acerca do mundo contingente e material, mas também chegue ao conhecimento de Deus como Princípio e Fim de todas as coisas.
Especialmente os resultados das ciências naturais - e da própria astronomia - interessam grandemente aos cristãos. A Bíblia não ensina proposições de ordem científica sobre a constituição e a origem do mundo e do homem, a sua doutrina é de índole sapiencial ou teológica, de modo que nunca se poderá dizer que há antagonismo entre a mensagem bíblica e as ciências naturais.
A propósito muito nos valemos do estudo de Claude Tresmontant: L'Ateismo in questa fine del ventesimo secolo dal punto di vista scientifico e razionale, publicado na coletânea L'Ateismo: natura e cause, pp. 127-155. Milano 1981.

¹ Gálaxia é a maior aglomeração de matéria que conheçamos: contém gás, estrelas, poeira e planetas. As galáxias começam a existir como imensas nuvens de gás, cuja  condensação produz as estrelas.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Caso Galileo


Por francisco razzo, 14 de julho de 2010 15:43
Felizmente vem sendo divulgada uma série de textos e vídeos sobre a verdadeira polêmica entre Galileu e a Igreja. Um dos mais importantes lançados recentemente no Brasil foi Galileu: Pelo copernicanismo e pela Igreja de Annibale Fantoli. Ou obras como Galileo, Science and the Church de Jerome J. Langford. e Galileo: Heretic de Pietro Redondi.
A imagem tosca e romantizada de um Galileu pintado como mártir da Ciência, que lutou contra a obscuridade de uma época liderada pela ignorância da Igreja Católica caiu por terra, apesar da insistência do mercado editorial em publicar obras ridiculamente tendenciosos, no entento essa imagem, hoje, só continua habitar a mentalidade de um bando de presunçosos anti-cristãos que desconhece história, história medieval e, sobretudo, história da ciência.
Qualquer pessoa bem informada sabe que o caso de Galileu não tem nada a ver com a imagem propositadamente pintada  sobre o conflito entre Fé e Ciência. Essa é mais uma mentira inventada a fim de ridicularizar o Cristianismo como um todo. Artimanha suja, estratégia estúpida de quem não está nenhum pouco interessado com a verdade histórica.
Galileu, sempre foi homem Católico e homem de Ciência. E suas descobertas científicas sempre estiveram a serviço da Igreja, que sempre o apoiou. O conflito, na verdade, se deu no âmbito pessoal e por razões que nada tem exatamente com ciência diante da fé. Galileu nunca foi contra os Dogma da Igreja e a Igreja nunca condenou Galileu por ele ter ido contra seus Dogmas. Galileu não morreu queimado,  não foi torturado ou morto pela Inquisição.

Galileu e a fé


Novo livro mostra que, em vez de livre pensador, o astrônomo italiano era católico e tentou conseguir a bênção de um papa para tirar a Terra do centro do Universo
Pablo Nogueira

Além de ser considerado o pai da ciência moderna, Galileu Galilei (1564-1642) entrou para a história como protagonista de um processo que opôs ciência (as descobertas astronômicas) e fé (as crenças da Igreja). Novos estudos revelam que essa história é bem complexa e envolveu até a relação pessoal entre o astrônomo e o papa da época. Em seu livro "Galileu - Pelo Copernicanismo e pela Igreja", o físico e historiador italiano Annibale Fantoli esmiuça as pesquisas históricas mais recentes sobre o caso que afetou até a maneira pela qual a Igreja interpreta a Bíblia. O autor conversou com Galileu.
O CATÓLICO: É errado pensar que Galileu era um livre pensador. Ele era católico e queria ser visto como tal. O seu objetivo era tornar a Igreja mais aberta à visão de mundo proposta por Copérnico. A Igreja apoiava as idéias sobre astronomia propostas por Aristóteles [filósofo grego] e Ptolomeu [astrônomo grego]. Aristóteles dizia que os corpos celestes, planetas e estrelas, eram feitos de uma matéria especial, que seria incorruptível e, por isso, imutável. Quando um amigo de Galileu, o cardeal Barberini, foi escolhido como o papa Urbano VIII, o astrônomo foi tomado por uma grande esperança de que o modelo copernicano poderia ser adotado pela própria Igreja. Por isso ele foi a Roma conversar com o papa e obteve permissão para escrever um livro apresentando os dois sistemas [batizado de "Diálogo sobre os Dois Sistemas Máximos do Mundo"]. Obteve a permissão, mas com a condição de não tomar uma posição como definitiva. Deveria apenas mostrar os prós e os contras de cada uma. Como crente na Igreja, o resultado do processo, que resultou na ordem para que abjurasse publicamente as idéias de Copérnico, foi um resultado muito, muito doloroso.
DRIBLANDO A BÍBLIA: O "caso Galileu" aconteceu porque a Igreja se baseou numa interpretação literal da Bíblia. No livro, há muitas passagens que sugerem que a Terra está parada, enquanto o Sol se move. Mas Galileu escreveu duas cartas famosas - uma para seu amigo Castelli e outra para Cristina, mulher do duque da Toscana - nas quais procurou demonstrar como o sistema copernicano e a Bíblia poderiam ser conciliados. Nelas afirmou que o livro segue o senso comum das pessoas. Nós realmente temos a impressão de que o Sol se move pelo céu ao longo do dia. Ele argumentava, no entanto, que não havia uma necessidade real de interpretar o texto bíblico literalmente. E, aos poucos, os desdobramentos do caso mostraram isso à Igreja. No final do século 19, o papa Leão XIII escreveu uma encíclica afirmando que a Bíblia não deveria ser interpretada literalmente. Ele havia adotado a visão de Galileu, sem no entanto mencioná-lo. O caso serviu para a Igreja como uma lição sobre a interpretação das escrituras.
O PAPA E O "DIÁLOGO": Quando o papa Urbano VIII era ainda o cardeal Barberini, tinha uma relação muito boa com Galileu. Barberini não fazia uma oposição clara às idéias de Copérnico, nem se opunha à possibilidade de que, com sua pesquisa, Galileu um dia pudesse provar que o sistema copernicano estava correto. Mas, mesmo quando ainda tinham boas relações, o cardeal havia recomendado ao astrônomo que fosse prudente em relação ao modelo heliocêntrico [o Sol como centro]. O papa Pedro V havia declarado que o sistema copernicano era contrário às escrituras. A congregação responsável pela elaboração do índex [lista de livros considerados heréticos pela Igreja] expediu um decreto público sobre isso. Mesmo assim, Galileu continuou defendendo as idéias de Copérnico. Então recebeu a visita de outro cardeal, Belarmino, que o admoestou a não falar assim publicamente. Por isso, quando Galileu viu seu amigo Barberini elevado a papa, foi a Roma pedir a permissão para que pudesse escrever o livro.

Quando "Diálogo sobre Dois Sistemas" foi publicado, Urbano notou que Galileu não havia seguido a sua orientação. Pelo contrário. O texto defendia claramente a superioridade do sistema copernicano sobre o tradicional. O papa ficou furioso e sentiu-se traído. Por isso, Galileu foi chamado a Roma e, posteriormente, condenado.
TORTURA NUNCA: Quando foi julgado, Galileu tinha 70 anos, e a prática do Tribunal do Santo Ofício não era a de indicar a tortura de pessoas tão idosas. Nós temos todos os documentos originais que registram tudo o que aconteceu no último interrogatório do processo. Se a tortura houvesse ocorrido, haveria algum registro. Os documentos mostram que ele passou pela Territio verbalis, que era uma ameaça verbal de tortura. Hoje temos quase certeza de que ele não foi fisicamente torturado.
"E PUR SI MUOVE": A história de que ele teria dito "E pur si muove" (e, no entanto, ela se move) após a abjuração é falsa. Surgiu no século 19. Essa seria uma atitude muito, muito perigosa. A abjuração o livrou da acusação de suspeita de heresia. Mas, se ele voltasse a defender o sistema copernicano, seria declarado relapsus, isto é, alguém que voltou a se envolver com heresia. E naqueles dias qualquer relapsus ia para a fogueira.
A BÊNÇÃO, JOÃO DE DEUS: Após a morte de Galileu, o duque da Toscana sugeriu a construção de um memorial em sua homenagem. Logo o papa Urbano VIII fez saber que não era uma boa idéia erigir um monumento para alguém que sustentara idéias tão perigosas para a Igreja, e o duque desistiu. Posteriormente, o papa morreu, mas a oposição da Igreja impediu que o monumento fosse construído. No século 17, o trabalho de Isaac Newton ajudou a consolidar o sistema copernicano, e ele logo passou a ser usado universalmente pelos astrônomos. Mas a Igreja manteve os livros de Copérnico e de Galileu no índex de obras proibidas até o século 19. A Igreja sabia que havia cometido um erro, mas não queria admitir, para não chocar os cristãos.
E, quando os livros saíram do índex, não houve anúncio oficial. Só no último quarto do século é que o papa João Paulo II reconheceu que houve excessos no processo e admitiu não só a grandeza de Galileu no plano científico, mas sua capacidade de enxergar longe no plano teológico.
VÁ FUNDO
>>>Para ler

Galileu - Pelo Copernicanismo e pela Igreja, Anibbale Fantoli. Loyola. 2008