segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Catolicismo, protestantismo e capitalismo


Por francisco razzo, 21 de outubro de 2010 13:30
Nos últimos anos, um grupo de estudiosos (sendo que a maioria deles poderia ser chamada de “católicos de direita”) decidiu revisar a interpretação padrão sobre a ascensão da economia e do capitalismo. Essa interpretação padrão diz que tanto o pensamento econômico como as políticas econômicas laissez-faire, que estimularam o capitalismo, desenvolveram-se como fruto de uma rejeição aos grilhões do catolicismo medieval. O espírito moderno das pesquisas científicas derrotou o dogmatismo escolástico e permitiu o surgimento de um espírito largamente individualista e racional; a rejeição à autoridade da Igreja levou a um individualismo generalizado em todos os campos; a ética e o espírito calvinista, que enfatizava o valor positivo do trabalho árduo, da parcimônia, e da ação de ganhar dinheiro, levou ao florescimento do capitalismo, ao passo que os católicos reprovavam solenemente esta ação de ganhar dinheiro. E, por fim, a interpretação padrão diz ainda que a economia laissez-faire cresceu apenas na atmosfera protestante da Grã-Bretanha (Adam Smith, etc.)
Entretanto, há um outro lado da moeda, e interpretações divergentes, particularmente nas áreas da filosofia política (o direito natural, por exemplo) e do pensamento econômico, têm surgido nos últimos anos. Para fins de leitura sobre essa Nova Escola, eu sugeriria: Joseph A. Schumpeter, History of Economic Analysis (Nova York, 1954), especialmente as páginas 73-142; Marjorie Grice-Hutchinson, The School of Salamanca (Oxford, 1952); Emil Kauder, “Genesis of the Marginal Utility Theory,” Economic Journal (Setembro de 1953); Kauder, “Retarded Acceptance of the Marginal Utility Theory,” Quarterly Journal of Economics (Novembro de 1953), e “Comment” (Agosto de 1955); e Raymond de Roover, “Scholastic Economics: Survival and Lasting Influence from the 16th Century to Adam Smith,” Quarterly Journal of Economics (Maio de 1955).
Esses revisionistas pouco fizeram diretamente contra um dos alicerces da abordagem tradicional – A Ética Protestante, de Max Weber – mas fizeram muito por vias indiretas. Recomenda-se as críticas à Weber feitas por H. M. Robertson, Aspects of Economic Individualism (Londres, 1933). Robertson e outros mostraram, por exemplo, que o capitalismo realmente começou a prosperar, não na Grã-Bretanha, mas nas cidades italianas do século XIV, ou seja, em áreas decididamente católicas. De fato, o ponto principal da crítica revisionista, em todas as áreas, é a coesão das idéias – que o capitalismo, o liberalismo, o racionalismo, o pensamento econômico, etc. começaram bem antes de Smith et al., e sob auspícios católicos; e que os desenvolvimentos posteriores se baseavam em – e em alguns casos retrocediam de – posições católicas anteriores.
Emil Kauder, de fato, joga a tese de Weber[1] contra seus próprios seguidores ao atacar Smith e Ricardo, acusando-os de terem sido influenciados pelo protestantismo ao desenvolverem a “teoria do valor-trabalho”. Schumpeter também se inclinava para essa direção. A força dessa nova e importante tese é a seguinte: ao invés de dizer que Hume e Smith desenvolveram a teoria econômica quase que partindo do zero, mostra-se que a ciência econômica começou a ser realmente desenvolvida, lenta porém seguramente, ao longo dos séculos, pelos escolásticos e por católicos italianos e franceses que foram influenciados pelos escolásticos; que a abordagem econômica feita por eles era, de maneira geral, metodologicamente individualista, e enfatizava a teoria da utilidade, a soberania do consumidor e as precificações via mercado, e que Smith acabou atrasando o pensamento econômico ao injetar a doutrina puramente britânica da teoria do valor-trabalho, jogando dessa forma a ciência econômica para fora dos trilhos por cem anos. Nesse ponto, posso acrescentar que a teoria do valor-trabalho gerou muitas conseqüências nefastas. Ela, é claro, pavimentou o caminho, de maneira lógica, para Marx. Além disso, sua ênfase na tese de que “custos determinam os preços” estimulou a idéia de que são os empresários ou os sindicatos que aumentam determinantemente os preços, e não a inflação da oferta monetária feita pelo governo. E, ademais, a ênfase em “valor objetivo e inerente” dos bens levou a tentativas “cientificistas” de se mensurar valores, estabilizá-los através de manipulações governamentais, etc.
A interessante tese de Kauder está dividida em duas partes: uma, que diz que o relato acima representa o curso histórico dos eventos no pensamento econômico; e a outra, que diz que a razão para o esquecimento da teoria da utilidade e sua conseqüente substituição por uma teoria de custo-trabalho foi influenciada pelo protestantismo, em oposição ao espírito católico.
Kauder afirma, primeiramente, que a teoria da utilidade foi desenvolvida em grande escala primeiro por Aristóteles, e depois pelos escolásticos, particularmente os negligenciados escolásticos espanhóis de fins do século XVI e começo do século XVII. A maioria dos historiadores tem ignorado esses escolásticos tardios e sua influência, ao menos até recentemente. A idéia dominante é a de que os escolásticos desapareceram junto com a Idade Média, e o intervalo de tempo entre esse período e o atual foi preenchido apenas pelos mercantilistas. Os mercantilistas, no entanto, eram estatistas panfletários sempre que julgavam conveniente, e contribuíram menos para a economia e para o liberalismo do que os escolásticos tardios. (Ver DeRoover)
A ênfase aos valores subjetivos dos indivíduos e da utilidade também foi continuada pelos grandes filósofos políticos protestantes (Hugo) Grócio e (Samuel) Pufendorf, que foram diretamente influenciados pelos escolásticos espanhóis (e também, como veremos abaixo, no campo do direito natural), e pelos economistas italianos de Volterra (meados do século XVI), Davanzatti (fins do século XVI), Montanari (Fins do século XVII), e principalmente Galiani (por volta de 1750). A teoria foi posteriormente desenvolvida por Turgot e Condillac, católicos franceses (meados do século XVIII). Na época destes três últimos, Kauder afirma que o “paradoxo do valor” (ouro vs. ferro) havia sido resolvido pela teoria da utilidade desenvolvida por eles. No entanto, a dupla Smith-Ricardo jogou fora a conclusão e restabeleceu o problema do paradoxo do valor. (Posso acrescentar que a resultante abordagem holística feita por Smith e Ricardo era sutilmente socialista, uma espécie de quarta via: ela estabeleceu o costume de se separar a Distribuição da Produção, e de se falar apenas em grupos de fatores, e não em fatores individuais – ou seja, trabalho ao invés de trabalhadores).
E Kauder vai em frente e mostra que os teóricos do valor e utilidade subjetivos eram católicos franco-italianos, enquanto que os teóricos do valor-trabalho – Petty, Locke e Smith – eram protestantes britânicos. Kauder atribui esse fato precisamente à ênfase calvinista na divindade do trabalho, em contraposição ao pensamento católico, que considerava o trabalho apenas como um meio de ganhar a vida. Os escolásticos, então, estavam livres para concluir que o “preço justo” era essencialmente o preço competitivo definido pelo mercado, ao passo que os britânicos, influenciados pelos protestantes, tinham a dizer apenas que o preço justo é o preço “natural” em que “a quantidade de trabalho trocada por cada bem é a mesma”. Já De Roover mostra que ambos os escolásticos tardios espanhóis Domingo de Soto e Luis de Molina denunciaram como falaciosa a máxima do beato (John) Duns Scot, que dizia que o preço justo é igual ao custo de produção mais um lucro razoável. É fato que Smith e Locke foram influenciados tanto pela corrente escolástica, que eles adquiriram através de seus treinamentos filosóficos, como pela ênfase calvinista na divindade do trabalho. Também é verdade que Smith acreditava que a livre concorrência eventualmente levaria os preços de mercado para perto do “preço justo”, mas é evidente que um perigo já havia sido introduzido – perigo esse que foi totalmente explorado por Marx (e que, de fato, ainda perdura nas teorias de concorrência imperfeita, que são similares à crença em algum mundo mais justo onde reinam os preços “naturais” e “ótimos”). Por outro lado, os discípulos de São Tomás de Aquino, os tomistas, sempre centraram seus estudos econômicos no consumidor, considerando-o a “causa final” aristotélica do sistema econômico, e que o objetivo final do consumidor é a “moderada busca pelo prazer”. Já no século XIX, diz Kauder, as influências religiosas sobre o pensamento econômico não eram importante. No entanto, ele aponta a importância das estritas raízes evangélicas de Alfred Marshall. O pai de Marshall era um evangélico rigoroso, e os evangélicos eram severos calvinistas-revivalistas. Talvez seja por isso que Marshall resistiu à teoria da utilidade, e insistiu em reter ao máximo a teoria ricardiana do custo, a qual perdura até hoje como resultado.
Contudo, gostaria de adicionar alguns comentários. Os mais “dogmáticos” adeptos do laissez-faire no século XIX não foram os economistas britânicos, mas sim os economistas (católicos) franceses. Bastiat, Molinari, etc. foram muito mais rigorosos do que os sempre pragmáticos liberais ingleses. Ademais, a fina-flor da teoria laissez-faire foi desenvolvida pelos católicos fisiocratas, que foram influenciados diretamente pelo conceito das leis e dos direitos naturais.
E isso me leva à segunda grande influência dos católicos escolásticos – a teoria das leis e dos direitos naturais. Certamente o direito natural era um grande obstáculo ao absolutismo estatal, e começou com o pensamento católico. Schumpeter mostrou que o direito divino dos reis era uma teoria protestante. A teoria das leis e dos direitos naturais também fluiu dos escolásticos até os filósofos morais franceses e britânicos. A conexão foi obscurecida pelo fato de que muitos dos racionalistas do século XVIII, sendo amargamente anti-catolicismo, se recusaram a reconhecer seu débito intelectual para com os pensadores católicos. Schumpeter, de fato, afirma que o individualismo começou com o pensamento católico. Assim: “a sociedade foi tratada (por Santo Tomás de Aquino) como uma questão completamente humana, e mais ainda, como uma mera aglomeração de indivíduos que ocorre por causa de suas necessidades mundanas… o poder do monarca derivava-se do povo… por delegação. O povo é soberano e um monarca indigno poderia ser deposto. Duns Scot chegou ainda mais perto de adotar uma teoria do contrato social do estado. Este… argumento é notavelmente individualista, utilitarista e racionalista …”[2] Schumpeter também enfatiza a defesa da propriedade privada feita por Tomás de Aquino e menciona em particular o espírito anti-estatizante do escolástico Juan de Mariana, 1599. Ainda sobre eles, Schumpeter também fala sobre a adoção do preço de mercado como sendo essencialmente o preço justo, a teoria da utilidade, o valor subjetivo, etc. Ele diz que, enquanto Aristóteles e Scot acreditavam que o preço normal de concorrência era o preço justo, os escolásticos tardios espanhóis identificavam os preços de mercado com qualquer preço concorrencial, como no caso de Luis de Molina. Eles também tinham uma teoria para o padrão-ouro, e se opunham ao enfraquecimento da moeda. Schumpeter ainda diz que de Lugo desenvolveu uma teoria sobre os riscos dos lucros empresariais, a qual, é claro, só foi completamente desenvolvida na virada do século XX e depois.[3]
Apesar de que a teoria dos direitos naturais, do século XVIII, era muito mais individualista e libertária do que a versão escolástica, há definitivamente uma continuidade. O mesmo vale para o Racionalismo, sendo a razão o principal artifício usado por Tomás de Aquino, e sendo essa mesma razão combatida pelos protestantes, que colocavam suas ideologias – e sua ética – em uma base mais emocional, encarando-a como sendo uma Revelação direta.
Podemos resumir o Argumento pelo Catolicismo da seguinte maneira: (1) o laissez-faire de Smith e as idéias do direito natural advêm dos escolásticos tardios e dos fisiocratas católicos; (2) os católicos desenvolveram a utilidade marginal, a economia do valor subjetivo e a idéia de que o preço justo era o preço de mercado, ao passo que os protestantes britânicos desenvolveram uma perigosa e altamente estatista teoria do valor-trabalho, influenciados pelo calvinismo; (3) alguns dos mais “dogmáticos” teóricos do laissez-faire foram católicos: desde os fisiocratas até Bastiat; (4) o capitalismo começou nas cidades italianas católicas do século XIV; (5) direitos naturais e outras visões racionalistas descenderam dos escolásticos.
Também recomendaria, como um exemplo um tanto assustador de como uma influência protestante-calvinista pode levar a uma filosofia de socialismo altruísta, a leitura do ensaio “T. H. Green and His Audience: Liberalism as a Surrogate Faith”, Review of Politics (Outubro, 1956), de Melvin Richter.
Conquanto seja algo tangente a este memorando em particular, também recomendaria fortemente Erik von Kuehnelt-Leddihn, Liberty or Equality (Caldwell, Id., 1952), sendo que o ponto principal do livro é a tese de que o catolicismo promove um espírito libertário (ainda que “anti-democrático”), ao passo que o protestantismo promove o socialismo, o totalitarismo e o espírito coletivista. Um exemplo é a afirmação de Kuehnelt-Leddihn de que a crença católica na razão e na verdade tende ao “extremismo” e ao “radicalismo”, enquanto a ênfase protestante na intuição leva a uma crença em concessões, em pesquisas de opinião, etc.
A opinião do Professor von Mises sobre a tese de Max Weber deve ser mencionada: Weber inverteu o verdadeiro padrão causal, isto é, que o capitalismo veio primeiro e que os calvinistas adaptaram seus ensinamentos à crescente influência da burguesia. Weber relatou que os fatos ocorreram em ordem contrária.
Não estou preparado para dizer que a causa protestante deve ser descartada completamente e que a visão católica deve ser adotada completamente. Mas parece evidente que a história é bem mais complexa do que a versão padrão nos faz crer. Certamente, os Revisionistas oferecem uma excelente corretiva[4]. Quanto às questões específicas sobre a teoria da utilidade e Adam Smith, posso fazer um endosso aos revisionistas. Por muito tempo tenho sentido que Adam Smith tem sido consideravelmente sobreestimado como sendo um inflexível adepto do laissez-faire.
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Notas (todas fornecidas pelo editor)
[1].    Consulte Randall Collins, um sociólogo weberiano, que também inverteu a tese de Weber ao mesmo tempo em que usava os métodos de reconstrução histórica do prórpio Max Weber; ver Weberian Sociological Theory (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1986), onde Collins escreve: “A cristandade foi a principal revolução weberiana, que criou as formas institucionais pelas quais o capitalismo pôde surgir. A reforma Protestante representou apenas uma crise particular ao fim de um ciclo de longo prazo; ela deu início a um segundo movimento, que nós erroneamente vemos como sendo o primeiro.” (pág. 76)
[2].    Joseph A. Schumpeter, History of Economic Analysis (Nova York: Oxford University Press, 1954) pp. 91-92.
[3].    Ver principalmente, Alejandro A. Chafuen, Faith and Liberty: The Economic Thought of the Late Scholastics (Lanham, MD: Lexington Books, 2003).
[4].    Rothbard mais tarde desenvolveu essa linha de ataque em grandes detalhes; ver Murray N. Rothbard, Economic Thought Before Adam Smith: An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, I (Cheltenham, UK: Edward Elgar, 1995), p. 31-175.

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