quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Christopher Dawson continua deixando lições (II)

ZP07091910 - 19-09-2007
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Entrevista com Jaime Antúnez Aldunate, autor do livro sobre o filósofo da história
SANTIAGO DO CHILE, quarta-feira, 19 de setembro de 2007 (ZENIT.org).- Trinta e sete anos depois de sua morte, Christopher Dawson, o filósofo da história, continua deixando lições, em particular aos crentes, constata o Dr. Jaime Antúnez Aldunate, que publicou um livro.

O diretor de «Humanitas» aprofundou em seu livro «Filosofia da história em Christopher Dawson» na herança intelectual e espiritual desse anglicano britânico, nascido em 1889, que se converteria em sua juventude ao catolicismo.

Ao destacar a influência que tem este autor, Antúnez, em uma entrevista concedida à Zenit, constata que «é indicativo que um «best seller» no debate contemporâneo, como Samuel Huntington, dê início ao mais divulgado de seus ensaios – «The Clash of Civilizations» –, citando, entre outros autores modernos, Christopher Dawson».

–A história da cultura se desenha assim aos olhos de Dawson como esses manuscritos antigos que conservam sempre as marcas de escrituras anteriores, nunca inteiramente apagadas, e que se conhecem com o nome de «palimpsestos», você recorda.

–Jaime Antúnez: Nestes, nos traços deixados pelas culturas primitivas e também pelas mais desenvolvidas, figura um mundo que jaz profundamente sob a superfície da consciência, explica Dawson. Flui também desta concepção da cultura o caráter eminentemente conetivo do conhecimento histórico, da história como memória, tradição e conhecimento interior, sobretudo.

–Nesta mesma linha de considerações, pode explicar por que a distância que separa o religioso do não-religioso para Dawson, mais que em «níveis de cultura», estriba em níveis de consciência?

–Jaime Antúnez: Nosso autor demonstra, por exemplo, que quando o mistério manifestado na natureza é adorado por si mesmo, se está ainda no estágio do paganismo. Ao contrário, que quando as forças que governam a natureza permitem entrever o Deus da alma, ainda que seja ainda nas profundas escuridões da consciência, estão já outorgadas as bases para uma evolução religiosa, tal como ela se aprecia nas religiões históricas. Como se percebe, o mundo da cultura chega a existir pela cooperação entre a psique e a razão e foi, afirma Dawson, função histórica das religiões conseguir essa união. Daí suas formulações tão substanciosas: «As religiões mundiais foram os pilares das culturas do mundo, de forma que, se as eliminamos, os arcos caem e o edifício se derruba». Torna-se, por conseguinte, necessário olhar para este âmbito superior da realidade, nos dirá, para alcançar uma verdadeira compreensão das formas internas de uma sociedade e de sua cultura.

–Contudo, o próprio Dawson precisa que essa relação entre religião e cultura é também tensa e ambígua, que sua influência é recíproca e que opera em diferentes direções...

–Jaime Antúnez: Isso se observa de modo muito evidente, por exemplo, em circunstâncias de grandes mudanças culturais, pois, ainda que de modo geral a religião exerça uma influência como força unificadora na criação de uma síntese cultural e no suporte das tradições, oferece também fatores que facilitam ou impulsionam o dinamismo transformador das sociedades, podendo inclusive chegar a operar – o sentimento religioso – como força desintegradora em momentos de auge revolucionário. É bem visível que esta ambigüidade nas relações entre religião e cultura gerou fortes tensões ao longo da história.

–Hoje «caíram as barreiras das culturas-religiões e pela primeira vez na história, todo o mundo físico chega a ser um só», escreve Dawson em 1945, prevendo um fenômeno que considera anômalo e exclusivo desta época, e que a seu juízo ameaça a sobrevivência da religião e também da cultura.

–Jaime Antúnez: Essa inclinação da cultura observada por ele, originada na Europa e inspirada, ainda que não em forma exclusiva, na filosofia do Iluminismo, navega hoje mais que na força de estruturas ideológicas, «nas técnicas científicas ocidentais que proporcionam a estrutura comum da existência humana e a base sobre a qual se está formando uma nova civilização científica universal», expressa nosso autor. Que desafio adverte, no fundo, neste contexto – «unificado, organizado e controlado pelo conhecimento e as técnicas científicas» – para a religião, e em particular para as grandes religiões universais? Todas elas (as religiões) sobrevivem e continuam influindo na vida humana, mas todas elas perderam relação orgânica com a sociedade que se expressava na síntese tradicional da religião e da cultura, tanto no Oriente como no Ocidente, explica Dawson. A que temos ante nossos olhos é assim a secularização mais completa, intensa e ampla que o mundo tenha conhecido. Disso conclui que «uma cultura dessa classe não é de nenhum modo uma cultura no sentido tradicional, ou seja, não é uma ordem que reúne todos os aspectos da vida humana em uma comunidade espiritual viva».

–Como Dawson aborda o tema da «filosofia do progresso»?

–Jaime Antúnez: Já no prólogo de sua primeira obra publicada em 1928, «The Age of Gods», Dawson manifesta uma preocupação precoce pelo tema do progresso das culturas. Estabelece então que ao invés de uma lei uniforme capaz de dar conta do progresso, é necessário distinguir o que deve ser apreciado como «tipos principais de evolução social», matéria na qual sublinha a importância de fatores como o meio geográfico e a mestiçagem cultural. Não é este, contudo, o horizonte em que analisa o tema em sua obra capital, «Progresso e Religião». Ele faz aqui relação com a perspectiva ideológica que o conceito «progresso» assume na cultura moderna, principalmente a partir do Iluminismo, e suas conseqüências no campo da filosofia da história. Em coincidência com outros autores que se ocupam da análise deste período na história do pensamento – Berdiaev e Jean Guitton, por exemplo –, nosso autor observa que no século XVIII, por obra dos filósofos iluministas, se produz um tipo de suplantação do sentimento religioso de forma tal que, conservando-se uma fé em um Criador benfeitor e providente e a aceitação dos principais preceitos da moral cristã, estes conceitos são «despojados de sua dimensão sobrenatural e adaptados ao esquema utilitário racional da filosofia contemporânea». Deste modo, a lei moral é privada dos elementos ascéticos e espirituais e equiparada a uma filantropia prática, e a ordem providencial é transformada em uma lei natural mecanicista. Isso sucede, muito particularmente, com a idéia do progresso, conclui, em conseqüência do qual «a crença na perfectibilidade moral e no progresso indefinido da raça humana tomou o lugar da fé cristã na vida futura, como o fim último do esforço humano».

–Diríamos que a presença destas concepções chega até o nosso tempo...

–Jaime Antúnez: Diversos acontecimentos ao longo do século XIX e, sobretudo, as circunstâncias catastróficas que acompanharam o começo do século XX, comoveram muito profundamente a estabilidade do credo do progresso. Não resta a ele, contudo, atualidade e projeção ao problema aqui abordado. Pois ainda que seja verdade que hoje não se aceitaria essa fé no progresso nos termos formulados pelos filósofos do Iluminismo, ela permanece ainda como uma atmosfera de fundo, impregnando em boa medida a problemática de nosso tempo, «que se encontra como a meio caminho no dilema entre irracionalidade milenarista e racionalista positivista sem esperança», segundo observava o cardeal Joseph Ratzinger nos anos oitenta. Isso coincide admiravelmente com a prévia previsão de Dawson, expressa já em 1927, no sentido de que estava por nascer uma nova cultura que não reconheceria hierarquia de valores e se abandonaria ao caos das sensações, permitindo que «a mais assombrosa perfeição da técnica científica esteja dedicada a fins puramente efêmeros».

–De tudo isso flui, constata-se, uma profunda visão crítica da modernidade como cultura.

–Jaime Antúnez: Sim, porque à luz da análise que Dawson faz, é o homem e sua construção no universo o que, como conseqüência do fenômeno antes descrito, vem sendo alterado. Ainda que a nova síntese – diz em seu livro «Progresso e Religião» – é superior no relativo ao mundo físico, comparada com aquela do século XIII, no fundo é inferior, já que não abarca a realidade como uma totalidade. O homem não só perdeu seu lugar central no universo como o elo entre a realidade superior do espírito e a realidade inferior da matéria, mas «ficou em perigo de ser expulso da ordem inteligível, pois se o universo é concebido como uma ordem mecânica fechada e governada por leis matemáticas, já não há lugar nele para os valores espirituais e morais que anteriormente haviam sido considerados como a realidade suprema», observa. A conseqüência no âmbito da consciência moral e da epistemologia – considerado o homem assim como um subproduto da vasta ordem mecânica revelada pela nova ciência – seria, como o temos ante nossa vista, a ditadura do subjetivismo e do relativismo.

–Como você se lembra, no livro «Para a compreensão da Europa», Dawson dedica o capítulo X a explicar o «tour de force» que Hegel provoca na cultura ocidental com sua filosofia, cuja dinâmica parte precisamente de uma «filosofia da história». Que importância tem isso na perspectiva de seu estabelecimento «meta-histórico»?

–Jaime Antúnez: Estamos aqui frente ao intento mais nítido de subjugar a realidade, diz Dawson, «com o vigor do pensamento e incorpora-la com todas suas contradições na totalidade de uma síntese absoluta», equivalente, neste caso, ao reino definitivo do progresso. Para Maritain, Guitton e Joseph Ratzinger, como se recorda em meu livro, se está frente ao paradigma da gnose moderna. «Em última análise, a metafísica hegeliana e a filosofia hegeliana da história são o gnosticismo moderno: são puro gnosticismo» dirá sem titubeios Maritain. Esta mesma «idolização gnóstica», coincidem estes autores, será a que encontraremos em Marx, e ao mesmo tempo, em circunstâncias distintas, é a que inclusive acompanhará – explica Dawson em «A Dinâmica da História Universal» – o próprio processo contemporâneo de «ocidentalização» do mundo, com as características que ele observou. Trata-se, em definitivo, da secularização radical do estabelecimento trinitário iniciado por Joaquim de Fiore, e que por exemplo lemos hoje como intento de explicação, mais literário que metafísico, em um autor como Gianni Vattimo.

–Segundo a teoria do tempo originada em Santo Agostinho – e assumida por Dawson – se explica, você diz, uma concepção da história na qual o passado não morre, mas se incorpora à vida da humanidade, a qual possui assim uma continuidade e é dona de uma capacidade de progresso pessoal e social.

–Jaime Antúnez: Nesta perspectiva, o homem não é fruto do tempo, mas assume ante ele a função de amo e, em sentido mais amplo, de criador. Não há meta mais libertadora da história, sublinhará Dawson, que aquela que mostra em seu horizonte a escatologia cristã e a meta-história. A hipótese imanentista de uma plenitude intra-histórica é reflexo, pelo contrário, de uma compreensão reduzida ou reducionista do ser humano, que necessariamente acarretará um sacrifício da liberdade. Nas antípodas dessa perspectiva, que parte de uma visão gnóstica da história, nós nos encontramos no caso de Dawson frente a uma harmônica compenetração das noções de tempo e eternidade, apoiada em uma firme consciência humana da mortalidade e do fim.

–A atual situação que se observa no campo da cultura – não comparável com outros períodos de civilização – mais que anti-religiosa, «sub-religiosa», marginalizando a grande força dinâmica da história que é a religião, implicará como conseqüência, opina Dawson, uma desvitalização radical da sociedade. Nisso coincide com vários outros autores.

–Jaime Antúnez: Convém, em todo caso, dizer que este destaque crítico da cultura contemporânea iluminado pela obra de Dawson, não supõe um processo irreversível nem predeterminado. Como tudo o que discorre no plano do humano, sua persistência ou superação está em dependência da vontade amorosa do homem, pedra de toque na direção que a cultura adotar. Tampouco supõe, certamente, uma regressão no campo dos avanços científicos e técnicos, mas pelo contrário: assumindo-os como frutos positivos da civilização em que nascem, são estes, em sua perspectiva, outros elementos a reintegrar em um esforço de unidade espiritual da cultura. Em definitivo, no marco geral de uma cultura que vive o desafio consistente no trânsito desde visões ideologicamente fechadas, ao desvanecimento de seus fundamentos na renúncia a qualquer sentido último, a filosofia e o estudo da história realizado por Dawson adquirem um destaque muito singular. É justo inclusive dizer que se há um nome que no século XX deva ser destacado por suas contribuições à filosofia da história – e particularmente à filosofia cristã da história –, compartilhando méritos com outros como, por exemplo, Maritan e Guitton, esse é Christopher Dawson.

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