quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O homem do papa

As memórias do cardeal Agostino Casaroli são
a prova de que marxismo não rima com cristianismo

Mario Sabino
Durante a Guerra Fria, a Igreja Católica comeu o pão que o diabo amassou na metade da Europa dominada pelos comunistas. Lastreados no ateísmo da ideologia marxista, os regimes satélites da União Soviética tentaram destruir uma instituição que representava um foco de resistência dentro da Cortina de Ferro. Além de restringir o direito à liberdade de culto (violência que atingiu todas as religiões), seus líderes prenderam e confinabam padres e bispos, fecharam seminários, confiscaram mosteiros e aterrorizaram integrantes de organizações laicas ligadas à Igreja. De 1945 ao final dos anos 50, o Vaticano assistiu impotente às perseguições promovidas pelos comunistas na Polônia, Checoslováquia, Hungria, Romênia, Alemanha Oriental, Iugoslávia e Bulgária. Só no início da década de 60, quando as relações entre Estados Unidos e União Soviética começaram a degelar, é que se abriram brechas para intervenções da cúpula católica no Leste Europeu.
Nesse contexto cheio de sombras, o cardeal italiano Agostino Casaroli ajudou a acender as primeiras faíscas de esperança. Ele foi o Henry Kissinger de três pontífices: João XXIII, Paulo VI e João Paulo II. Na linha de frente de extenuantes negociações com os comunistas, reconquistou metro a metro territórios ao inimigo – façanha que talvez divisões militares não fossem capazes de realizar, se o papa as tivesse. Antes de morrer, em 1998, aos 83 anos, Casaroli deixou um manuscrito no qual relata sua riquíssima experiência diplomática. Dele se originou Il Martirio della Pazienza – La Santa Sede e i Paesi Comunisti (O Martírio da Paciência – A Santa Sé e os Países Comunistas), recém-publicado na Itália pela editora Einaudi.
Comunista embriagado – É um livro que merece ser lido em especial pelo pessoal da batina que insiste em militar nas hostes da esquerda. Ele coloca por terra a idéia de que Casaroli era simpático ao comunismo, como decerto também acreditam os padres de passeata brasileiros. O cardeal tinha perfeitamente claro que cristianismo e marxismo eram antípodas, impossíveis de ser conciliados, já que no programa do segundo estava prevista a destruição do primeiro. A sua atitude para com os regimes filossoviéticos – "abominável desolação", escreveu – não era de transigência, mas de paciência. Como fica evidente na obra, sua tática era recuar um passo para caminhar dois, muitas vezes dando a impressão de que fazia o jogo de Moscou. Exemplo disso é um episódio ocorrido em 1973, quando o papa Paulo VI (aconselhado por Casaroli, embora este não o diga explicitamente) aposentou o então primaz da Hungria, cardeal Joszef Mindszenty, símbolo da resistência católica. O ato de força, que causou comoção na época, afrouxou as tensas relações entre o Vaticano e o governo húngaro, levando à reconstrução de importantes dioceses naquele país.
Não era raro que o cardeal cumprisse missões secretas no Leste Europeu. Certa vez, na embaixada americana em Budapeste, ele travou um diálogo com Mindszenty dentro de um cubículo cujas paredes eram forradas de material à prova de escuta eletrônica. Em outra ocasião, encontrou-se com uma alta autoridade eclesiástica da Checoslováquia num hotel fuleiro, onde ambos conversaram por intermédio de bilhetes. No livro, Casaroli também menciona casos como o do monsenhor checo Stepan Trochta, que morreu de ataque cardíaco depois de ser ameaçado durante seis horas por um dirigente comunista embriagado. Il Martirio della Pazienza trata de momentos dramáticos, mas o tom é sempre sereno, bem ao estilo discreto de seu autor. "Há quem goste de tocar trompas. Eu me limito a soar o violino", disse Casaroli, quando era secretário de Estado de João Paulo II. É de violinistas que o mundo precisa.
 

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