quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Vamos construir a globalização que nos convém


Qual o impacto dos
atentados sobre o
processo de globalização?


Há uma linha mais ou menos contínua de perseverança da globalização como futuro da história. Essa tendência é estimulada pelo progresso das técnicas e dos instrumentos de comunicação. Na Antiguidade, foram as estradas romanas; da Idade Média ao século XIX, foi a navegação marítima. Nos séculos XIX e XX, foram os barcos a vapor, o telefone, o telégrafo, o avião. Hoje em dia, é a internet.
Fernand Braudel ressaltou que a globalização capitalista modela o espaço político-geográfico. Ao redor de um centro, de uma cidade, sede de um organismo de impulsão, da Bolsa, funcionam "satélites" mais ou menos afastados. A relação centro-periferia domina esse sistema espacialmente hierarquizado. Foram os casos sucessivamente de Antuérpia, Amsterdã, Londres e Nova York. Creio sobretudo na importância de certos espaços e Estados econômico-políticos. Na Antiguidade, foi a Roma mediterrânea, da Idade Média ao século XIX, a Europa, hoje em dia, os Estados Unidos. Quase sempre surge uma saudável e racional resistência a essas hegemonias centrais.
Essa resistência pode degenerar e assumir formas extremas e condenáveis, sobretudo no caso da globalização atual, em que certos extremistas podem colocar-se como vítimas e responder com a arma do terrorismo. Sendo os Estados Unidos a potência dominante da globalização atual, os atentados de 11 de setembro foram a resposta de grupos que se apresentam como os intérpretes de populações muçulmanas que entendem a globalização dominada pelos Estados Unidos como uma opressão.
Detendo-me em dois dos principais tipos de globalização histórica, pretendo abordar de forma sucinta o que talvez pareça óbvio, mas que julgo ser útil para a reflexão e a discussão do que se pode chamar de progresso acarretado pela globalização. No fenômeno da globalização há uma idéia de resultado, de produzir qualquer coisa; mas, se há um progresso, há simultaneamente males que estão ligados às globalizações históricas e colocam em pauta os perigos da globalização atual. O que Roma ofereceu às regiões que ela dominou por séculos? Ela trouxe a paz. A pax romana é um elemento ligado à dominação romana. Por conseguinte, o espaço da globalização pode e deve ser considerado um espaço pacífico. Evidentemente, há que se perguntar o que significa essa pacificação, como ela foi obtida e o que representa a dominação mesmo pacífica que ela ofereceu. Por outro lado, a globalização romana promoveu um sentimento entre os habitantes ou, ao menos, entre a camada superior dos habitantes desse espaço mundial, de uma cidadania universal ­ cidadãos do mundo. O exemplo mais conhecido é o de Paulo de Tarso, São Paulo, esse judeu em via de se tornar cristão que afirmava com toda a força, como proteção e orgulho, "civis romanus sum", "sou cidadão romano". Em 212, o imperador Caracalla proclamou um edito atribuindo a cidadania romana a todos os sujeitos livres do império, não importando a origem étnica ou cultural. Ademais, a globalização romana resultou na formação de um espaço jurídico em que existiam, portanto, noções e práticas de direito que eram ligadas a essa pacificação e que a acompanhavam. Daí provém ainda hoje a noção de Estado de direito. Enfim (secundariamente?), há um problema que vivenciamos ainda hoje, o problema da língua, da unificação lingüística. É um terreno delicado no qual se trata de encontrar um equilíbrio entre a língua materna e a língua de comunicação e de civilizações, língua que não é superior, porém mais útil, abrangente, sociável.
Em compensação, o que se deve apontar como débito dessa globalização? Pode-se resumir afirmando que, ao termo de um longo período de vários séculos, a globalização romana se mostrou incapaz de integrar ou assimilar novos cidadãos, aqueles que ela denominou de "bárbaros" e que, não podendo ser integrados no espaço e no sistema romano, sublevaram-se contra esse espaço. A globalização provoca, em maior ou menor tempo, a revolta daqueles aos quais ela se tornou não um benefício, mas uma exploração e mesmo uma exclusão.
Quanto à colonização ligada à expansão da Europa e que acabará sob as formas do capitalismo, ela começa nos séculos XV e XVI e atinge sobretudo a África e a América. Dentre o que poderíamos chamar de progresso, deve-se mencionar que ela pôs um fim – choca-me o fato de se mencionar isso tão raramente – à crueldade das dominações e das culturas pré-colombianas na América. Os Estados astecas, os incas e até os maias eram de uma grande crueldade interna, de que o exemplo mais evidente eram os sacrifícios humanos. Da mesma maneira, tanto na América como na África, a colonização européia, apesar de suas injustiças e seus males, fez mais ou menos desaparecer as guerras endêmicas entre clãs e etnias.
Um problema muito importante no que toca à globalização diz respeito à saúde, ao estado biológico das populações. Aqui também a balança não encontra um equilíbrio. Na América, o resultado foi globalmente catastrófico. Os colonizadores trouxeram involuntariamente, salvo talvez indiretamente pela difusão do álcool, suas doenças, micróbios, bacilos, que perturbaram profundamente o equilíbrio biológico dos povos globalizados. Mas também há que se observar que essa colonização promoveu um progresso na higiene e na medicina – e isso é particularmente verdadeiro para o caso da África contemporânea. No entanto, não estou cedendo ao mito dos colonizadores franceses, em particular do século XIX e da Terceira República, ao dizer que a globalização deve proporcionar, e freqüentemente proporciona, a difusão da escola, do saber, do uso da escrita e da leitura. É certo que no outro prato da balança dois grandes males se apresentam: o primeiro é o que eu chamo de violação das culturas anteriores dos povos por meio de uma verdadeira destruição dessas culturas, e aqui entra em cena um componente da globalização que é a religião. O terreno não é apenas aquele da civilização, mas também aquele da religião. É um problema enorme em que a posição de cada um e sua sensibilidade podem levar a posições particulares, mas prefiro falar – não sou o primeiro a fazê-lo, mas não estou certo de que o faço de maneira aprofundada – do que se pode denominar, com risco de chocar certo número de meus leitores, de perigos do monoteísmo. A globalização adquiriu um caráter monoteísta. A história comprova que não raro o monoteísmo desliza para a intolerância e mesmo para a perseguição. O Deus único não se contenta apenas em caçar os deuses anteriores, ele também destrói toda a civilização que está relacionada a eles e impõe à sociedade globalizada um modelo de sociedade dominado por um poder absoluto. Em seu mais alto nível, a globalização acarreta o maior dos males que pode sofrer uma sociedade: a recusa da tolerância. Por outro lado, e aqui se trata de ordem social, para retomar um termo de Braudel, percebe-se que, depois que o aspecto econômico se torna primordial, a globalização desenvolve, cria ou até mesmo exacerba as oposições entre pobres e ricos ou dominadores. A pauperização é um mal até hoje praticamente inevitável das globalizações. Para voltar ao papel das culturas, quero sublinhar de uma vez que as globalizações não violaram apenas as culturas, mas a história. Tal questão está no cerne de minha reflexão. A expressão inventada, geralmente pelos colonizadores, "povos sem história", e retomada pelos etnólogos imersos nas próprias culturas, dizimou populações que de fato tinham uma história, geralmente uma história oral, uma história particular e que foi sem dúvida destruída. A destruição da memória, da história, do passado é algo terrível para uma sociedade. A globalização deve assumir as histórias particulares anteriores, não as eliminar.
Minha conclusão é simples e talvez banal: deve-se supervisionar, controlar e combater os perigos da globalização e fazer frutificar as potenciais contribuições positivas. Os principais perigos são, a meu ver, a dominação do econômico, o desenvolvimento da desigualdade e da injustiça social e a uniformização, a qual nunca é aceitável. Que existam compromissos sociais e políticos que façam o conjunto funcionar é admissível, mas a uniformização não é um ideal a ser proposto para a humanidade. Deve-se, portanto, desenvolver as instituições, os movimentos, os ideais que possam fazer triunfar com a globalização a partilha, a paz no respeito das diversidades. Uma globalização assassina das diversidades é nociva e catastrófica.


Jacques Le Goff
O mais eminente historiador francês da atualidade,
autor de dois livros lançados no Brasil:
a vida dos santos São Francisco de Assis e São Luís
Tradução de Fábio Duarte Joly




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