IDADE MÉDIA - O QUE NÃO NOS ENSINARAM .... VEJA!
Data 24/03/2008 04:36:00 | Tópico: Defesa da FéAutor:Régine Pernoud
Fonte: Revista : “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Nº : 240 - Ano : 1979 - Pág. 520
Fonte:
http://www.exsurgedomini.xpg.com.br/Em
síntese : O livro de Régine Pernoud em foco sugere ao leitor uma
revisão do conceito pejorativo de Idade Média que comumente é propalado.
Tal noção se deve, em parte, a preconceitos de pensadores dos
séculos XVI e seguintes, os quais, movidos por premissas anticatólicas e
anticristãs, tinham interesse em denegrir a Idade Média. Esta não foi
perfeita (pois nada do que é humano é isento de falhas); todavia não foi
bárbara nem obscurantista, como freqüentemente se diz, mas teve gestos e
valores que suscitariam rubor no homem moderno.
Assim, por
exemplo, a escravatura romana extinguiu-se no começo da Idade Média para
ceder ao regime do servo da gleba (que respeitava os direitos do
pequeno camponês); todavia foi restaurada no século XVI nas terras da
América, onde vigorou o colonialismo.
Régine Pernoud julga que o
cultivo do Direito Romano (que teve início no século XI em Bolonha)
contribuiu poderosamente para, aos poucos, desfazer as instituições e os
costumes da Idade Média Ascendente; o Direito Romano finalmente
fundamentou o menosprezo da mulher e outros males que tomaram pleno
vulto a partir do século XVI.
O presente artigo tenta reproduzir a tese da autora e ilustra-a mediante exemplos e dados colhidos no livro em pauta.
Comentário:
Régine Pernoud é especialista em estudos medievais. Sua primeira obra,
“Lumière du Moyen-Age”, publicada em 1945, mereceu-lhe o prêmio
Fémina-Vacaresco de Crítica e História. Em 1978, a autoria editou “Pour
en finir avec le Moyen-Age”, obra que lhe valeu o prêmio sola-Cabiati da
cidade de Paris e a consagração da crítica como sendo uma das mais
notáveis conhecedoras da Idade Média. Tal obra foi traduzida pra o
português com o título “A Idade Média: o que não nos ensinaram”. Visto
que convida o estudioso a rever as concepções comuns relativas à Idade
Média, vamos, a seguir, propor as linhas mais características desse
estudo, acompanhadas de conclusão final.
1. Idade Média: preconceitos e lendas
A autora, no capítulo I, lembra o conceito que geralmente se tem até nossos dias com relação à Idade Média.
Esta
eqüivaleria a mil anos de obscurantismo: ... obscurantismo intelectual,
moral, cultural... A grande maioria das pessoas que falam sobre a Idade
Média, nunca a estudaram devidamente. Mas apenas a conhecem por “fama”,
fama esta que não corresponde aos resultados das pesquisas
historiográficas dos últimos cento e cinqüenta anos.
Para ilustrar este fato, a autora cita alguns episódios:
Certa vez Régine Pernoud recebeu telefonema de uma documentarista da TV, das mais especializadas em programas históricos.
“Parece-me, disse-me ela, que a senhora tem dispositivos. Terá, por acaso, alguns que representem a Idade Média ?
- ???
- Sim, que dêem uma idéia da Idade Média em geral: execuções, massacres, cenas de violência, fome, epidemias ...
Não pude deixar de rir” (p. 105s).
Conta ainda R. Pernoud:
“Era
encarregada do Museu da França nos Arquivos Nacionais, há pouco tempo,
quando chegou uma carta perguntando: “Poderia informar-me a data do
tratado que marca oficialmente o fim da Idade Média ? “Havia ainda uma
pergunta complementar: “Em que cidade se reuniram os diplomatas que
prepararam esse tratado?
... O autor pedia uma resposta rápida,
pois, dizia ele, precisaria desses dois dados para uma conferência que
pretendia fazer em data muito próxima” (p. 9).
Em suma, é
freqüente ouvirem-se observações como “Não estamos mais na Idade Média”
ou “É um retorno à Idade Média” ou “É uma mentalidade medieval”. Aliás, a
própria designação “Idade Média” implica um juízo pejorativo sobre os
mil anos em pauta.
Significa, sim, que entre a antigüidade
greco-romana e o Renascimento da mesma no século XVI tenha havido um
período neutro, sem cultura nem valores, mas torpe ou bárbaro. Note-se,
aliás, que a divisão da história em três grandes períodos (Idade Antiga,
idade Média e Idade Moderna) foi proposta, pela primeira vez, pelos
humanistas dos séculos XV/XVI; só no século XVII foi introduzida em
livros didáticos de História Universal1. Não há dúvida, os humanistas
renascentistas tencionavam caracterizar a Idade Média como fase de
escuridão e estagnação cultural.
Em nossos dias, porém, há
estudos que dissipam tal imagem da Idade Média. O fato, pois, de
continuarem em voga as concepções pejorativas sobre tal período deve-se a
certa rotina, que não se justifica. É o que Régine Pernoud observa:
“Há
pouco tempo, um programa de televisão apresentava como histórica a
frase famosa: “Matai-os todos, Deus reconhecerá os seus!” durante o
massacre de Béxiers em 1209. Ora, há mais de cem anos (exatamente em
1866), em erudito demonstrou, acima de qualquer dúvida, que a frase não
poderia ter sido pronunciada, já que não a encontramos em nenhuma das
fontes históricas da época, mas apenas no Livro dos Milagres, Dialogus
Miraculorum, um, cujo título fala por si mesmo sobre o que pretende
dizer, composto aproximadamente sessenta anos depois dos fatos pelo
monge alemão Cesário de Heisterbach, autor provido de imaginação ardente
e bastante suspeito quanto à autenticidade histórica. Desde 1866,
nenhum historiador ... levou em conta o famoso “Matai-os todos”; mas os
escritores de história o utilizaram ainda. Isto basta para provar quanto
as descobertas científicas, neste caso, custam a penetrar no domínio
público” (p. 16).
Dos subseqüentes capítulos do livro, escolheremos quatro, em que a autora aborda temas de especial interesse para o leitor.
2. A Idade Média e a mulher
Tal
tema é considerado no capítulo VI sob o título “A mulher sem alma”.
Régine Pernoud costuma distinguir no período medieval duas fases
divididas entre si pelo ressurgimento do Direito Romano. Este começou a
ser cultivado em Bolonha, onde o célebre legista Irinério fundou célebre
escola de Direito Romano (1084).
A influência do Direito Romano
assim reavivado só aos poucos se fez sentir sobre a vida medieval. A
aplicação de seus princípios à realidade civil e religiosa dos séculos
XII e XIV modificou um tanto os costumes das épocas anteriores.
Todavia somente na Segunda metade do século XV o Direito Romano foi
amplamente adotado pelos juristas – o que teve ulteriores conseqüências
no modo de pensar e agir da sociedade em relação à mulher e a outros
valores da sociedade.
“O Direito Romano ... foi a grande tentação
do período medieval; ele foi estudado com entusiasmo não só pela
burguesia das cidades, mas também por todos os que viam nele um
instrumento de centralização e de autoridade. Ele se ressente, com
efeito, das suas origens imperialistas e – por que não dizer ? –
colonialistas. Ele é o Direito, por excelência, dos que querem firmar
uma autoridade central estatizada ... Em meados do século XII, o
Imperador Frederico II, cujas tendências eram as de um monarca, fez
deste tipo de Direito a lei comum dos países germânicos” (p. 79s).
Feita esta observação, registramos com R. Pernoud o papel eminente que certas mulheres desempenharam na Idade Média:
2.1. Famílias reais
Na
fase anterior à do Direito Romano (fase que a autora chama “tempos
feudais”) a rainha era coroada, como o rei, geralmente em Reims, pelas
mãos do arcebispo de Reims; atribuía-se à coroação da rainha tanto valor
quanto à do rei (cf. p.78). À medida que o Direito Romano foi
ascendendo, a coroação das rainhas foi sendo considerada menos
importante que a dos reis. A última rainha a ser coroada foi Maria de
Médicis na véspera do assassinato do seu marido Henrique IV. No século
XVII a rainha desaparece literalmente da cena em proveito da “favorita” !
Em
sua época, Eleonora de Aquitânia (+ 1204) e Branca de Castela (+ 1252)
exerceram autoridade sem contestação nos casos de ausência do rei,
doente ou morto; tivera, suas chancelarias, suas alfândegas e seus
setores de atividade pessoal.
A primeira disposição que afastava a
mulher da sucessão ao trono foi tomada por Filipe IV, o Belo
(1285-1314), sob a influência de juristas romanos. Na verdade, o Direito
Romano não era favorável à mulher nem à criança; era um Direito
monárquico, que exaltava o paterfamilias, pai, proprietário, chefe da
família com poderes sagrados, sem limites no tocante aos filhos (tinha
sobre estes direito de vida e de morte) e à esposa.
Note-se ainda a propósito que somente a partir de fins do século XVII a mulher toma obrigatoriamente o nome do marido.
2.2. A Igreja e a Mulher
É
habitual dizer-se que a Igreja foi misógina ou hostil à mulher até
época recente. A mulher terá sido considerada uma criatura sem alma!...
Ora
R. Pernoud observa que, entre os mais antigos santos, se encontram as
mártires Inês, Cecília, Agueda, Luzia, Blandina ... Mais: Algumas
mulheres (não necessariamente oriundas de famílias nobres) desempenharam
notáveis funções na Igreja medieval. Assim certas abadessas eram
senhoras feudais, cujos poderes eram respeitados como os de outros
penhores; usavam báculo, como os bispos; não raro, administravam vastos
territórios com cidades e paróquias. Tenha-se em vista, por exemplo, a
abadessa Heloísa, do Mosteiro do Paráclito, no século XII: além de
exercer amplas funções administrativas, conhecia o grego e o hebraico,
que ela ensinava às monjas.
Outro caso merece especial registro: o
pregador de penitência Roberto de Arbrissel (+ 1117) conseguiu levar
tanta gente à conversão que houve por bem fundar a Ordem de Fontevrault
em 1100/1101, com base na Regra de S. Bento. Esta Ordem distinguiu-se
pela penitência severa e pelos “mosteiros duplos”: entre um cenóbio de
homens e outro de mulheres achava-se a Igreja, único lugar em que monges
e monjas se podiam encontrar. Ora a direção suprema desses mosteiros
duplos competia, em honra da Santa Mãe de Deus, à abadessa de
Fontevrault: esta devia ser viúva, tendo feito a experiência do
casamento!
Sabe-se também que havia na Idade Média Religiosas
muito instruídas. Assim, por exemplo, a mais conhecida enciclopédia do
século XII é da autoria da abadessa Herrade de Landsberg; tem por título
Hortus deliciarum (jardim de delícias) e nela os eruditos hauriam os
ensinamentos mais corretos sobre o avanço das técnicas em sua época.
Poder-se-ia dizer o mesmo com respeito às obras de Santa Hildegardis de
Bingen. Outra monja, Gertrudes de Helfta, no século XIII, conta-nos como
se sentiu feliz ao passar do estado de “gramaticista” ao de “teóloga”!
Pode-se mesmo dizer que entrar para o mosteiro era o caminho normal das
jovens que desejassem desenvolver seus conhecimentos além do nível
comum.
De resto, observe-se que a Idade Média se encerra com a
figura de Joana D’Arc (+ 1431), jovem que, nos séculos seguintes, jamais
teria conseguido obter a audiência e suscitar a confiança que lhe foram
outorgadas no século XV.
No fim da Idade Média e depois, os
legisladores foram retirando à mulher tudo o que lhe conferia alguma
autonomia ou instrução. A mulher foi excluída da vida eclesiástica e da
vida intelectual. O movimento se precipitou quando no começo do século
XVI foi reconhecido ao rei Francisco I da França (1515-1547) o direito
de nomear abades e abadessas; inspiradas por critérios políticos, tais
nomeações acarretaram a decadência de muitas casas religiosas.
2.3. Mães de família e camponesas
Através
do documentário existente (cartulários, estatutos das cidades,
documentos judiciários...), podem-se colher pormenores relativos à vida
cotidiana da mulher medieval. É surpreendente o quadro que se delineia a
partir da concatenação desses dados.
Assim, por exemplo, as
mulheres votavam. Por ocasião dos Estados Gerais de 1308 as mulheres são
explicitamente citadas entre as votantes em diversas partes do
território francês, sem que isto venha apresentado como uso particular
do lugar.
É conhecido o caso de Gaillardine de Fréchou, que,
diante de um arrendamento proposto aos habitantes de Cauterets nos
Pireneus pela abadia de Saint-Savin, foi a única a votar NÃO, quando
todo o resto da população votou SIM.
Nas atas de tabeliães é
muito freqüente ver uma mulher casada agir por si mesma: abre, por
exemplo, uma loja ou uma venda, sem ser obrigada a apresentar
autorização do marido.
Os registros de impostos, desde que foram
conservados (como em Paris, a partir de fins do século XIII), mostram
multidão de mulheres a exercer as funções de professora, médica,
boticária, estucadora, tintureira, copista, miniaturista, encadernadora,
etc.
Somente no fim do século XVI, por decreto do Parlamento
francês datado de 1593, a mulher foi explicitamente afastada de toda
função do Estado.
A influência crescente do Direito Romano
finalmente confinou a mulher às suas tarefas peculiares de cuidar da
casa e educar os filhos. No século XIX, mediante o Código de Napoleão, o
processo de despojamento da mulher deu novo passo: deixou de ser
reconhecida como senhora dos seus próprios bens, e, em casa mesmo,
passou a exercer papal subalterno.
A reação a tal estado de
coisas tem ocorrido nos últimos tempos, ... mas de maneira
decepcionante, pois a mulher parece preocupada exclusivamente na
conquista de equiparação ao homem: quer imitar o homem, exercer as
mesmas funções que este, adotar os hábitos do seu parceiro, sem se
questionar a respeito do que ela reproduz, ou sem pensar em salvar a sua
própria identidade e originalidade! Ora isto prejudica não só a mulher,
mas também a própria sociedade, pois esta precisa de valores peculiares
da mulher e da feminilidade!
3. O servo da gleba
Tal tema
é abordado no capítulo V, que traz o título “Rãs e Homens”. Fala-se da
escravidão vigente na Idade Média, sem levar em conta que a escravidão
existente no Império Romano foi desaparecendo a partir do século IV;
cedeu a um regime diverso do da escravidão antiga. Infelizmente, foi
restaurada no século XVI, nas colônias da América.
A instituição
medieval do servo da gleba não pode ser comparada à escravatura dos
tempos romanos e coloniais, pois ela respeitava o servo (servus)1 como
pessoa, reconhecendo-lhe direitos. A origem de tal regime é a seguinte:
Na
época das invasões bárbaras, muitos pequenos camponeses viam-se
constantemente ameaçados em suas terras. Daí o contrato que faziam com
grandes senhores aptos a defendê-los mediante tropas e armas. Os
camponeses se obrigavam a morar na propriedade do senhor e a cultivá-la.
Era-lhes proibido deixar a terra, como também era vetado ao Senhor
expulsá-los.
Assim os pequenos lavradores usufruíam de certa
segurança, num período de instabilidade; eram-lhes reconhecidos os
direitos de se casar e fundar família, de transmitir a terra a seus
filhos depois da morte, assim como os bens que pudessem adquirir ...
O
senhor feudal tinha consequentemente suas obrigações para com o servo;
não era proprietário no sentido do Direito Romano, que reconhecia aos
senhores o direito de usar e abusar (ius utendi et abutendi). Donde se
vê que o regime medieval diferia essencialmente da escravatura, que
feria a dignidade da pessoa humana, pois o escravo era tratado como
coisa, sujeita a ser comprada e vendida a critério do patrão.
O
estudo dos cartulários e arquivos medievais empreendido por Jacques
Broussard2 permitiu reconstruir a história de alguns servos da gleba,
entre os quais Constant Le Roux, que passamos a apresentar:
Constant
era servo do senhor de Chantoceaux (Anjou) nos últimos anos do século
XI. Trabalhava com afinco. As Religiosas do mosteiro de Ronceray lhe
confiaram a guarda de um celeiro perto da igreja de Saint-Evroult e de
vinhedos no lugar chamado Doutre. Depois a condessa de Anjou o
presenteou com outro celeiro, perto das muralhas de Angers.
As
monjas de Rocenray, tendo recebido como legado uma casa, forno e
vinhedos situados perto do celeiro de Constant, resolveram encarregá-lo
do conjunto, a título de renda vitalícia; pouco depois, aumentaram-lhe o
lote, juntando-lhe as terras do Espan. – Constant casou-se; cansado de
ser trabalhador meeiro, acabou por fazer um acordo com as Religiosas,
segundo o qual as terras lhe seriam arrendadas.
Aumentou ainda
seu campo de trabalho, estendendo-o a um vinhedo em Beaument e duas
jeiras de prado na Roche-de-Chanzé. Mais tarde, não tendo filhos,
conseguiu das monjas que suas terras fossem herdadas por seu sobrinho
Gauthier, ao passo que sua sobrinha Isolda se casaria com o guardador do
celeiro da Abadia, Rohot.
Por fim, como acontecia não raro na
época, Constant se fez monge na Abadia de Saint-Aubin e sua mulher
entrou como religiosa na de Ronceray.
A pesquisa dos cartulários
revela que o caso de Constant não foi isolado nem singular. Existe, por
exemplo, uma certidão do fim do século XI (1089-1095) que refere como
dois servos, chamados Auberede e Romelde, compraram sua liberdade em
troca de uma casa que possuíam em Beauvrais, no lugar do mercado.
Este fato dá a ver que os servos tinham a possibilidade de possuir bens
próprios. Compreende-se, porém, que a condição de servo da gleba,
vantajosa na época de sua origem, se tenha defasado com o decorrer dos
séculos.
O camponês podia considerar válido o fato de viver em
propriedade da qual não o poderiam expulsar; mas, desde que encontrasse
meios de garantir sua própria subsistência com autonomia, preferiria a
plena liberdade; esta lhe permitira percorrer estradas e fazer comércio.
Foi o que aconteceu principalmente na época da expansão urbana (século
XI). Os cartulários apresentam numerosas certidões de libertação, que
chegavam a beneficiar centenas de servos de uma só vez.
A propósito observa R. Pernoud:
“Tive
ocasião de recolher as confidências de um velho operário agrícola a
quem a Idade não permitia mais trabalhar e que ia acabar seus dias num
asilo: “Trabalhei nesta terra toda a minha vida sem ter um metro
quadrado de meu”. Comparando-o ao servo medieval, sua sorte pareceria
infinitamente pior. Servo do senhor, em uma propriedade ele teria
assegurado o direito de aí terminar a sua vida; nada lhe pertencia
propriamente, mas o usufruto não lhe podia ser retirado ... Ele tinha
com a terra a mesma relação que o próprio senhor: este nunca possuía a
propriedade plena, como nós a entendemos atualmente ...; ele não pode
vender ou alienar senão os bens secundários que recebeu por herança
pessoal, mas sobre o bem de raiz só tem usufruto” (p. 71s).
Foi
no século XVI que infelizmente se restaurou o regime da escravatura
romana, que a Idade Média não conheceu, e que persistiu até o século
passado apesar dos protestos de frades dominicanos como Bartolomeu de
Las Casas e Vitória ... Vê-se, pois, que, sob o aspecto focalizado, a
Idade Média está longe de ter sido obscurantista ... Vem agora a questão
de
4. Heresias e Inquisição Medieval (“O Index Acusador”, c. VII),
O tribunal da Inquisição vem a ser outro motivo de acusação aos medievais.
Régine
Pernoud, sem deixar de reconhecer fraquezas humanas então verificadas,
põe em foco alguns pontos importantes para se avaliar o fato da
Inquisição. Os medievais estimavam acima de tudo (ao menos em teoria) os
valores da fé, colocando-os mesmo acima dos valores físicos.
Além disso, conjugavam entre si os valores profanos e os sagrados, de
tal modo que os desvios doutrinários ganhavam extrema importância mesmo
no andamento da vida civil. Por conseguinte, as heresias, na Idade
Média, eram consideradas como ofensas não só a reta fé, mas também aos
interesses da sociedade em geral.
Ora no século XI começou a
aparecer no sul da França e no norte da Itália uma heresia dita dos
cátaros (= puros), que professava o dualismo: o universo material seria
obra de um Deus mau; somente os espíritos teriam sido criados por um
Deus bom. Em conseqüência, condenavam tudo que se relaciona com a
procriação, a começar pelo casamento; os mais autênticos dos cátaros
viam no suicídio a perfeição suprema.
Os primeiros a combater a
heresia cátara foram os príncipes, os nobres e o próprio povo fiel.
Assim em 1022 o Rei Roberto, o Piedoso, mandou queimar em Orléans
hereges. Em 1077 um herege professou seus erros diante do bispo de
Cambraia; a multidão de populares então lançou-se sobre ele, sem esperar
o julgamento; encerraram-no numa cabana, à qual atearam fogo! Em 1144
na cidade de Lião o povo quis punir violentamente um grupo de inovadores
que aí se reunira; o clero, porém, os salvou, desejando a sua
conversão, e não a sua morte. Entrementes as autoridades eclesiásticas
limitavam-se a impor penas espirituais (excomunhão, interdito...) aos
cátaros, pois até então nenhuma das muitas heresias conhecidas havia
sido combatida por violência física. S. Bernardo (+ 1153) dizia: “Sejam
os hereges conquistados não pelas armas, mas pelos argumentos” (In Cant.
Serm. 64).
Era, porém, inevitável que os bispos tomassem parte
na represália aos cátaros. Por isto em 1184 o Papa Lúcio III, em Verona,
instituiu a Inquisição episcopal, que atribuía aos bispos a faculdade
de inquirir os hereges nas paróquias suspeitas; ajudá-los-iam nessa
tarefa os condes, barões e as demais autoridades civis. Em 1231 tal
instituição se tornou mais ampla, pois o Papa Gregório IX confiou aos
frades dominicanos a missão de Inquisidores; haveria doravante, para
cada nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor-mor, que trabalharia
com a assistência de numerosos oficiais subalternos, em geral
independentemente do bispo em cuja diocese estivesse instalado.
Os
efeitos da Inquisição tem sido descritos em termos imaginativos e
exagerados ... Na verdade, as penas aplicadas eram a de prisão ou, com
mais freqüência ainda, a condenação a peregrinações ou ao uso de uma
cruz de fazenda pregada à roupa. Nos lugares onde se encontraram
registros da Inquisição, verificou-se que não foram tão numerosas as
execuções capitais como se poderia crer. Em Tolosa, por exemplo, de 1308
a 1323 o Inquisidor Bernardo de Gui proferiu 930 sentenças, das quais
42 eram capitais – o que eqüivale à proporção de 1/22. Régine Pernoud
observa muito sabiamente que a Inquisição foi alimentada pela ingerência
do poder civil em questões religiosas. Sem querer desculpar os clérigos
que se hajam excedido na repressão da heresia, deve-se registrar a
forte influência do poder régio na conduta severa dos tribunais da
Inquisição.
“Era, talvez, inevitável que em qualquer momento
fossem instituídos tribunais regulares, mas esses tribunais foram
marcados por uma dureza particular, em razão do renascimento do Direito
Romano: as constituições de Justiniano, realmente, mandavam condenar os
hereges à morte. E é para fazê-lo reviver que Frederico II, tornado
imperador da Alemanha, promulga, expressamente, a pena da fogueira
hereges empedernidos. Assim se vê que a Inquisição, no que ela tem de
mais é fruto de disposições tomadas, de início, por um imperador em quem
se pode encontrar o protótipo do “monarca esclarecido”, apesar de ter
sido, ele próprio, um cético e logo excomungado.
Resta notar que,
adotando a pena de fogo e instituindo como procedimento legal o recurso
ao “braço secular” para os relapsos, o Papa acentuava ainda o efeito da
legislação imperial e reconhecia, oficialmente, os direitos do poder
temporal na perseguição às heresias. Sempre sob a influência da
Legislação imperial, a tortura seria autorizada, oficialmente, no começo
do século XIII – desde que houvesse o aparecimento de provas” (p. 102).
Ora as concessões feitas pelos Papas aos reis voltaram-se contra a própria Igreja. Com efeito, nota R. Pernoud:
“Ora,
todo este aparelhamento de legislação contra a heresia não demoraria em
ser dirigido pelo próprio poder temporal contra o poder espiritual do
Papa. Sob Filipe, o Belo, as acusações contra Bonifácio VIII, contra
Bernard Saisset, contra os Templários, contra Guichard de Troyes
apoiam-se neste poder reconhecido no rei para perseguir os hereges. Mais
do que nunca, a confusão entre espiritual e temporal joga a favor deste
último. Só precisamos recordar aqui as conseqüências mais graves: a
Inquisição do século XVI, a partir deste momento só nas mãos dos reis e
imperadores, iria fazer um número de vítimas sem comparação com as do
século XIII. Na Espanha, chegar-se-á à utilização da Inquisição contra
os judeus ou mouros, o que eqüivalia a deturpar por completo seus
objetivos” (p. 102).
Régine
Pernoud tem razão ao mostrar que a Inquisição não foi um tribunal
meramente eclesiástico. Na verdade, ela teve origem por convergência do
poder eclesiástico com o poder civil na repressão das heresias; mas
nesta aliança o poder régio foi, aos poucos, sobrepujando o
eclesiástico, chegando a manipular a Inquisição para atingir objetivos
políticos.
A autora encerra o capítulo lembrando um fato de sua experiência:
“Em
1970, uma transmissão de televisão foi consagrada à Cruz Vermelha
Internacional e as suas comissões de investigação nos campos de
concentração. Seu representante foi interrogado por diversos
interlocutores, entre eles um jornalista, que lhe propôs a seguinte
pergunta: “Não podemos obrigar os países a aceitarem a comissão de
investigação da Cruz Vermelha?”
E, como o representante da
instituição destacasse que as comissões de investigação não dispunham de
nenhum meio para que suas observações fossem registradas, observadas ou
sancionadas, que antes essas próprias comissões não dispunham de nenhum
direito de visita formalmente admitido ou reconhecido por todos, a
mesma jornalista replicou: “Não se poderiam banir das nações civilizadas
as que recusam as comissões de investigação?”
Escutando este
diálogo, com referência à História, poder-se-ia dizer que, em sua
indignação, por certo compreensível, esta jornalista acabava de inventar
sucessivamente a Inquisição, a excomunhão e a interdição – porque ela
as aplicava no domínio em que a concordância se faz unânime, o da
proteção aos prisioneiros e internados políticos” (p. 107s).
Acrescenta,
porém, R. Pernoud que não é necessário procurar comparações de tal
tipo. Em nossos dias, observa a autora, aplica-se a Inquisição não aos
delitos contra a fé, mas às dissidências em relação à opinião política
predominante. “Todas as interdições, todos os castigos, todas as
hecatombes parecem justificadas em nossos tempos para punir ou prevenir
os desvios e erros quanto à linha política adotada pelos poderes em
exercício. E, na maior parte dos casos, não basta banir quem sucumbe à
heresia política; importa convencer. Por isto ocorrem as lavagens
cerebrais e os internamentos intermináveis que esgotam, no homem, a
capacidade de resistência interior” (p. 108).
E conclui a autora:
“Quando
se pensa no desperdício insensato de vidas humanas ...pelo qual se
consolidaram as revoluções sucessivas e o castigo dos delitos de opinião
em nosso século XX, pode-se perguntar se ... a noção de progresso não
se encontra posta em xeque. Para o historiador do ano 3.000, onde estará
o fanatismo? Onde a opressão do homem pelo homem ? No século XIII ou no
século XX?” (p. 108).
As ponderações de R. Pernoud merecem
atenção... Se os medievais exorbitaram nas expressões do seu amor às
verdades da fé, os contemporâneos que os criticam, não tem menos motivos
para se horrorizar do que em nossos dias vem sendo cometido em nome dos
interesses políticos.
5. A arte medieval
(c. II: “Deformados e Desajustados”)
O
termo “Renascimento” (Rinascita, em italiano) foi utilizado, pela
primeira vez, por Vasari em meados do século XVI. Significava que “as
artes e as letras, que pareciam haver morrido no mesmo naufrágio que a
sociedade romana, pareciam reflorescer e, depois de dez séculos de
trevas, brilhar com novo fulgor” (Dictionnaire général des lettres, por
Bachelet e Dezobry. Paris 1872).
Assim se manifestava um conceito
pejorativo referente às artes e letras medievais. Estas nada mais
teriam sido do que “deformações” e “falta de jeito”.
Ora tal juízo não leva em conta objetiva a realidade dos fatos. Com efeito,
-
“o simples bom senso basta para fazer compreender que o Renascimento
não teria sido possível se os textos antigos não houvessem sido
conservados em manuscritos recopiados durante os séculos medievais” (p.
19)... “Para citar um exemplo, a biblioteca do Monte Saint-Michel, no
século XII, continha textos de Catão, o Timeu de Platão (em tradução
latina), diversas obras de Aristóteles, de Cícero, trechos de Virgílio e
de Horácio” (ib).
- As artes renascentistas reproduziam e
imitavam os modelos antigos numa atitude muito pouco criativa. Os
antigos pareciam ter realizado obras perfeitas, atingindo a Beleza
integral.
- Eis, porém, que no setor da arte a admiração nunca
deve levar a repetir formalmente o que se admira; a imitação nunca pode
ser transformada em lei.
“A visão clássica que se impôs ao
Ocidente,... não admitia outro esquema, outro critério que não fosse a
antigüidade clássica. Mais ima vez, presumir-se-ia que a Beleza perfeita
tinha sido atingida durante o século de Péricles e que, por isso,
quanto mais nos aproximássemos das obras daquela época, melhor
atingiríamos a Perfeição” (p. 22).
Em contra-posição, observe-se
que “o nome do poeta nos tempos feudais era trovador, o que encontra,
encontrador, ou seja, inventor. O termo inventar adquire aqui sentido
forte, ... Inventar é por em jogo, ao mesmo tempo, a imaginação e a
busca, é o início de toda criação artísticas ou poética. Para as
gerações de hoje, isto parece evidente. Resta saber que, durante quatro
séculos, o postulado oposto é que se impunha com evidência semelhante”
(p. 26).
A arte medieval, de modo geral, foi criativa. Basta
lembrar as magníficas catedrais românicas e góticas que a
caracterizavam... Mas é suficiente também apontar os manuscritos
medievais: um simples mapa da época revela a capacidade de criação do
artista (perfeição da escrita, distribuição de página, selo de
autenticação...). Uma letra ornamentada (iluminura) manifesta outrossim a
criatividade do desenhista...
6. Conclusão
O
livro de Régine Pernoud, embora tenha antecessores, vem em hora
oportuna provocar uma revisão do conceito comumente propagado de Idade
Média.
Esta é mal entendida, em parte porque a historiografia é o
setor do estudo em que mais dificilmente os pesquisadores mantêm
neutralidade científica. A partir do século XVI certas correntes de
pensamento anticatólicas e anticristãs tiveram interesse em denegrir a
Idade Média. Esta difamação nem sempre foi objetiva (embora não fosse de
todo injustificada, pois tudo o que é humano, é falho), mas baseou-se
freqüentemente em preconceitos. Seria para desejar que os estudiosos
contemporâneos se livrassem destes e procurassem apontar outrossim tudo
que de grande, belo e nobre caracteriza a Idade Média.