Em síntese: O Centenário da Abolição da Escravatura no Brasil
ocasionou a publicação de várias obras atinentes ao assunto, portadoras
de notícias e documentos poucos divulgados referentes à ação
humanizadora da Igreja em favor dos escravos. Três dessas obras são
utilizadas nas páginas seguintes, pondo-se em relevo traços da atitude
da Igreja frente à escravatura.
Já em PR 267/1983, pp. 106-132 e PR 274/1984, pp. 240-247 foi
abordado o tema “Igreja e Escravatura”; foram aí publicados textos de
Papas, Bispos, sacerdotes e leitos que censuram tal regime, procurando
abrandá-lo e colaborando para extingui-lo. Em muitos manuais e tratados
de história, tais depoimentos são ignorados ou silenciados, pois se
registra a tendência a afirmações genéricas e contundentes, destituídas
de qualquer documentação comprovante.
A ocorrência do Centenário da Abolição no Brasil oferece-nos ocasião
de voltar ao assunto, valendo-se de obras recém-editadas sobre o mesmo e
portadoras de novos dados, extraídos de Arquivos, que põem em mais
claro relevo a ação humanizante da Igreja perante o fato escravagista.
De modo especial referimo-nos a três publicações:
Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho, A Escravidão. Convergências e Divergências. Ed. Folha de Viçosa 1988.
Idem, A Igreja e a Escravidão. As Irmandades de Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos. Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de
Janeiro 1988.
Jaime Balmes, A Igreja Católica em face da Escravidão, com Adendo do
Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho: A Igreja e a Escravidão no
Brasil, São Paulo 1988.
Estas três obras apresentam informações e documentos pouco
divulgados, que passamos a resumir ou ocasionalmente transcrever nas
páginas subseqüentes.
1. O Tráfico Negro no Brasil e a Igreja
1. As tribos da África Ocidental praticavam a venda de homens negros
como escravos. Procuravam assim os vencedores na guerra retirar algum
lucro da vitória: trocavam por dinheiro ou mercadorias os adversários
prisioneiros; para estes, era preferível ser vendidos como escravos a
permanecer sob o domínio de africanos vencedores; estes tratavam
ignominiosamente os vencidos.
No Brasil, a exploração das minas e demais riquezas naturais sugeriu
aos portuguesas a procura de escravos na África – coisa, aliás que já
outros povos (como, por exemplo, os árabes da península ibérica)
praticavam, para atender aos serviços da agricultura e da indústria.
Principalmente após D. Afonso, que reinou até 1453, os reis de Portugal
perderam o controle sobre a importação de escravos, de modo que os
colonos portugueses, levaram multidões de africanos para a Europa.
Conseqüentemente também os trouxeram para o Brasil, fazendo negócios
altamente lucrativos tanto para quem vendia como para quem comprava os
negros.
2. A Igreja não se calou diante de tais costumes. Entre os documentos
que o atestam, além dos que já foram citados em PR, existe uma carta do
Papa João VIII, datada de setembro de 873 e dirigida aos Príncipes da
Sardenha, que diz:
“Há uma coisa a respeito da qual desejamos admoestar-vos em tom
paterno; se não vos emendardes, cometereis grande pecado, e, em vez do
lucro que esperais, vereis multiplicadas as vossas desgraças. Com
efeito; por instituição dos gregos, muitos homens feitos cativos pelos
pagãos são vendidos nas vossas terras e comprados por vossos cidadãos,
que os mantêm em servidão. Ora consta ser piedoso e santo, como convém a
cristãos, que, uma vez comprados, esses escravos sejam postos em
liberdade por amor a Cristo; a quem assim proceda, a recompensa será
dada não pelos homens, mas pelo mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo. Por
isto exortamo-vos e com paterno amor vos mandamos que compreis dos
pagãos alguns cativos e os deixeis partir para o bem de vossas almas”
(Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio dos Símbolos e Definições nº 668).
O Papa Pio II, em 7 de outubro de 1462, condenou o comércio de escravos como magnum scelus (grande crime)¹.
Em 1571 Tomás de Mercado, teólogo de Sevilha, declarava desumana e
ilícita a traficância de escravos, tanto mais que instaurava uma luta
fratricida entre os próprios africanos. Em sua Summa de Tratos y
Contratos, este autor afirmava não haver justificativa para negócio tão
infame.
3. Houve mesmo sacerdotes que se sacrificaram, tanto no Brasil como
fora, em favor dos escravos. Sejam citados, entre outros, os Padres
Afonso Sandoval S. J. e Pedro Claver. O primeiro foi o pioneiro do
trabalho em prol dos negros em Cartagena das Índias, porto de tráfico no
Mar das Antilhas; com grande coragem denunciou os maus tratos de muitos
traficantes; através de seus escritos, tentou suscitar uma mentalidade
antiescravagista; para melhor trabalhar, procurou conhecer a cultura
africana a fim de entender mais perspicazmente aqueles pobres seres
humanos que ele defendia.
Quanto a Pedro Claver, em 1610 chegou de Sevilha a Cartagena das
Índias, onde o Pe. Sandoval lhe ensinou o amor aos negros. Na Colômbia
foi ordenado sacerdote e passou a trabalhar com o Pe. Sandoval junto aos
negros. No ano seguinte, foi para o Peru; retornou depois a Cartagena e
assumiu também as missões entre os escravos das fazendas do interior.
Durante toda a sua vida, cuidou de cerca de trezentos mil escravos. Em
1639, quando o Papa Urbano VIII publicou um documento em favor dos
escravos, viveu dias felizes. Todavia esse servidor dos escravos morreu
paralítico, de doença contraída nas missões da região pantanosa de Tolu e
Finu, aos 8 de setembro de 1654
4. As Constituiçoens primeyras do Arcebispado da Bahia (1707) mais de
uma vez se voltaram para a sorte dos escravos, procurando fazer que os
senhores lhe propiciassem ou facilitassem os bens espirituais. Assim,
por exemplo, no tocante ao sacramento do matrimônio, rezavam as
Constituições:
“Conforme o direito divino e humano, os escravos e escravas podem
casar com outras cativas ou livres e seus senhores lhe não podem impedir
o matrimônio nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem por esse
respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos,
para onde o outro, por ser cativo ou por Ter outro justo impedimento, o
não possa seguir, e, fazendo o contrário, pecam mortalmente e tomam
sobre suas consciências culpas de seus escravos, que por este temor se
deixam muitas vezes estar e permanecer em estado de condenação” (D.
Sebastião Monteiro de Vide, Constituiçoens, título 71).
Os sacramentos da Eucaristia e da Penitência eram de fácil acesso aos
escravos, principalmente na Quaresma, em vista do cumprimento do
preceito pascal.
No concernente ao sacramento da Ordem, o impedimento para os escravos
não era racial, mas provinha da própria condição de escravos.
Regozijavam-se, porém, quando entravam em contatos com sacerdotes
negros, que vinham da Costa de Angola ou da ilha de São Tomé, onde havia
um cabido de cônegos todos negros.
5. Deve-se notar também o papel benéfico desempenhado pelas
Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, cujas igrejas eram
pontos de encontro de escravos e livres; aí cultuavam a Deus e faziam
suas devoções como também exprimiam suas aspirações e deixavam via à
tona seus íntimos sentimentos.
Dentre os Estatutos dessas Confrarias merecem destaque alguns tópicos como os seguintes:
“Toda pessoa, preta ou branca, de um ou outro sexo, forro ou cativo,
de qualquer nação que seja, que quiser ser Irmão desta irmandade, irá à
mesa ou à casa do Escrivão da Irmandade pedir-lhe faça assento de
Irmandade” (cap. I do Compromisso da Irmandade da Paróquia do Pilar de
Ouro Preto).
O capítulo II do mesmo Compromisso reza:
“Haverá nesta Irmandade um Rei e uma Rainha, ambos pretos, de
qualquer nação que sejam, os quais serão eleitos todos os anos em mesa a
mais votos e serão obrigados assistir com o seu estado as festividades
de Nossa Senhora e mais Santos, acompanhando no último dia atrás do
pálio”.
Vê-se que nestes textos desaparecem as diferenças raciais; além do que, escravos e livres são equiparados entre si.
6. Descendo através dos tempos, temos uma Carta do Papa Pio VII
enviada ao Imperador Napoleão Bonaparte da França, em protesto contra os
maus tratos infligidos a homens vendidos como animais; ao que
acrescentava: “Proibimos a todo eclesiástico ou leigo apoiar como
legítimo, sob qualquer pretexto, este comércio de negros ou pregar ou
ensinar em público ou em particular, de qualquer forma, algo contrário a
esta Carta Apostólica” (citado por L. Conti, A Igreja Católica e o
Tráfico Negreiro, em O Tráfico dos Escravos Negros nos séculos XV-XIX.
Lisboa 1979, p. 337).
O mesmo Sumo Pontífice se dirigiu a D. João VI de Portugal nos seguintes termos:
“Dirigimos este ofício paterno à Vossa Majestade, cuja boa vontade
nos é planamente conhecida, e de coração a exortamos e solicitamos no
Senhor, para que, conforme o conselho de sua prudência, não poupe
esforços para que… o vergonhoso comércio de negros seja extirpado para o
bem da religião e do gênero humano”.
Pio VII também muito se empenhou para que no Congresso Internacional
de Viena (1814-15) a instituição da escravatura fosse condenada e
abolida
7. Quanto à travessia do Oceano Atlântico por parte dos escravos
trazidos em navios negreiros, verifica-se hoje que descrições de Castro
Alves e outros autores são hiperbólicas e poéticas, fugindo à realidade
histórica. Os brancos tinham interesse em prover à conservação da vida
de seus escravos em condições tão boas quanto possível, visto que os
negros deviam ser oferecidos aos colonos do Brasil, que os examinariam
de perto antes de os comprar. Julga-se até que os traficantes
contratavam médicos que acompanhavam a população dos navios negreiros.
2. Alforrias e “Mão Posta”
1. A alforria é ato de libertar um escravo. Tal prática foi notável
no Brasil colonial não só em favor dos inválidos (como erroneamente já
se disse).
Havia ocasiões propícias à concessão de alforria por parte dos
senhores: festas familiares, confecção de testamento, visitas
episcopais… A alforria podia ser concedida também como recompensa à
lealdade no serviço.
Além disto, registram-se os vários casos de escravos que compravam a
sua liberdade ou a conseguiam através de padrinhos e madrinhas
benfeitores.
Os libertos ajudavam os ex-companheiros de serviço a conseguirem a
sua libertação. As próprias Irmandades emprestavam dinheiro para que o
escravo se tornasse forro.
Podia outrossim ocorrer a chamada “coartação”: o escravo e o patrão
estipulavam o preço do resgate, que o servo ia pagando aos poucos;
entrementes, o cativo já gozava de vários direitos do homem livre.
Mais: os escravos que denunciassem um contrabando, eram libertados
pelo Estado. Aqueles que encontrassem diamantes acima de vinte quilates,
eram alforriados.
Na Bahia os negros organizaram “fundos de empréstimos” para facilitar
a compra da alforria; essas organizações foram-se convertendo em
sociedades emancipacionistas. A eficácia de tais instituições pode-se
avaliar pelo seguinte depoimento de Herbert S. Klein, doutor pela
Universidade de Chicago e autor do livro African Slavery in Latin
America and the Caribbean, onde assevera:
“Na época do primeiro censo nacional brasileiro, em 1872, havia 4,2
milhões de pessoas de cor livres e 1,5 milhão de escravos. As pessoas de
cor livres não apenas ultrapassavam em número os 3,8 milhões de
brancos, mas também representavam 43% da população brasileira, de 10
milhões de habitantes. Tudo isto mais de uma década antes da abolição da
escravatura” (pp. 241-3).
A Igreja incentivou as formas de libertação dos cativos, como bem dizia D. Pedro Maria de Lacerda, bispo do Rio de Janeiro:
“provemos que os aplausos tantas vezes dados a quem dava alforria,
eram aplausos sinceros, nascidos de um coração ansioso de ver a
liberdade refulgir mais e mais entre os homens à sombra da Cruz” (Carta
Pastoral anunciando a Lei nº 2040 de 27/09/1871).
2. A Manu posita (Mão posta) era a prática de angariar recursos para
redimir cativos por parte de pessoas caridosas; estas eram chamadas
“manuposteiros”. Constituiam associações com o Seu Regimento; os membros
dessas entidades tinham cada qual a sua função: ora a de esmolér, que
pedia donativos por ocasião das festas ou nas fazendas, nas igrejas, nas
ermidas…, ora a de escriturar as receitas (escrivães), ora a de
guardá-las e distribui-las na qualidade de tesoureiro…
Aliás, existiam na Igreja a Ordem da SS. Trindade, desde 1198, e a
dos Mercedários ou Nolascos desde 1222, destinadas a redimir os cativos
detidos pelos Sarracenos. A existência dessas ordens era, por si mesma,
uma réplica à prática da escravatura: como explicar a arrecadação de
elevadas somas para pôr em liberdade cativos, se de outro lado, os
próprios portugueses aprisionavam africanos e os reduziam à escravidão?
Os Trinitários e os Mercedários suscitaram, por seu trabalho, uma
mentalidade anticativeiro, que se exprimiu no Brasil através dos
manuposteiros. Assim descreve o historiador Vítor Ribeiro a solenidade
do resgate realizada pelas Ordens Religiosas:
“Era revestida de pompas estranhas a expedição de resgates. Os
redentores, depois de terem recolhido as esmolas em cofre especial,
despediam-se de El-Rey e do seu convento, deixavam crescer longas
barbas, embarcavam com o cofre, e iam à Mauritânia expor-se a mil
perigos, vexames e emboscadas com a cautela que a experiência lhes ia
aconselhando; negociavam os resgates por intermédio do governo de Bey ou
das autoridades e, por fim, conseguindo libertar os cativos,
reconduziam-nos ao reino, onde faziam e publicavam longas listas de
resgates, com os nomes, idades, naturalidades, condições de cativeiro e
libertação e custo dos resgates… Depois, em dia aprazado, fazia-se em
Lisboa solene procissão em que entravam várias Ordens e Confrarias,
especialmente a da Misericórdia e a Nossa Senhora do Resgate, a qual
dava volta à Igreja velha da Misericórdia e regressava ao convento” (cf.
História de Portugal, vol. IV , Damião Peres (Dir.) Barcellos,
Portucalense Editora 1932, p. 565).
O Bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria de Lacerda, em 1871 escrevia na sua Carta Pastoral referente à Lei do Ventre Livre:
“A Igreja Católica alegra-se imensamente à vista do que acaba de
realizar-se entre nós. E como não? Por ventura não é a Igreja Católica
que deu ao mundo São João da Mata e que aprovou a Ordem dos seus
Religiosos da Santíssima Trindade, cujo fim principal foi resgatar os
que gemiam cativos em poder dos Sarracenos? Não foi a Igreja Católica
que aprovou a Ordem dos Religiosos das Mercês, instituída por São Pedro
Nolasco com o fim de resgatar os cativos que viviam sob o poder dos
infiéis, obrigando-os a um heroísmo assombroso de caridade, ligando-os
com um solene voto a se deixarem eles mesmos em ferros como penhora e
reféns, se tanto fosse preciso para o resgate dos Cristãos? E a Igreja
Católica não celebra há tantos séculos a 24 de setembro de cada ano a
instituição dessa heróica Ordem Religiosa, criada por inspiração de
Maria Santíssima, a quem a Igreja reconhece tanti operis Institutricem? E
graças a Deus, no quinto dia dentro do oitavário desta festa é que a
nova lei brasileira foi sancionada pela Augusta princesa Imperial
Regente”.
Os frutos da mentalidade humanitária despertada pelo Cristianismo são
atestados por vários relatos de viajantes e cronistas que passaram pelo
Brasil. Entre outros, merece atenção Henry Koster. Filho de ingleses,
nascido em Portugal, chegou ao Brasil em 1809. No seu livro Travels in
Brazil relata viagens ao Nordeste e refere-se à condição dos escravos:
“Atesta Koster: “Os escravos no Brasil gozam de maiores vantagens que
seus irmãos nas colônias britânicas. Os numerosos dias santos para os
quais a Religião Católica exige observância, dão ao escravo muitos dias
de repouso ou tempo para trabalhar em seu proveito próprio. Em trinta e
cinco desses dias e mais nos domingos é-lhes permitido empregar seu
tempo como lhes agradar”. Atribui à opinião pública força suficiente
para obstar que os senhores diminuíssem o número destes dias, o que
revela uma mentalidade altamente humanitária da sociedade de então.
Desce Koster a detalhes sobre as alforrias, porta aberta para a libertação dos cativos…
Destaca o papel não relevante das associações religiosas: “Os
escravos possuem sua Irmandade como as pessoas livres, e a ambição que
empolga geralmente o escravo é ser admitido numa dessas confrarias, e
ser um dos oficiais ou diretores do conselho da sociedade”…
Focaliza a terna devoção dos cativos a Nossa Senhora do Rosário,
“algumas vezes, pintada com a face e as mãos negras”. Ressalta que “os
reis do Congo brasileiro invocam a Nossa Senhora do Rosário e são
vestidos como vestem os brancos. Conservam, é verdade, a dança do seu
país, mas nessas festas são admitidos pretos africanos de outras
nações”. É que tribos de diversas regiões africanas, muitas até rivais
na África, aqui se irmanavam sob o signo da Mãe comum, a Virgem Maria,
que tanto amavam e veneravam.
Que os escravos eram respeitados se deduz deste assento: “Os escravos
no Brasil são regularmente casados de acordo com as fórmulas da Igreja
Católica. Os proclamas são publicados como se fossem para pessoas
livres. Tenho visto vários casais felizes (tão felizes quanto podem ser
os escravos), com grande número de filhos crescendo ao redor deles”.
Nota ainda Koster que era permitido que os escravos se casassem com
pessoas livres. Se a mulher era escrava, o filho permanecia cativo; mas
se o homem era escravo e a mulher forra, o filho era também livre.
“Aos escravos pertencem os sábados de cada semana para providenciar
sua própria subsistência, além dos domingos e dias santificados. Os que
são diligentes raramente deixam de comprar sua liberdade. Os monges não
guardam interferência alguma quanto às roçarias dadas aos escravos, e
quando um desses morre ou obtém sua alforria, permitem que leguem seu
pedaço de terra a qualquer companheiro de sua escolha. Os escravos
alquebrados são carinhosamente providos de alimento e roupa”. (Grifo
nosso).
Testemunha ainda que muitos agricultores tratavam sua escravaria com
carinho. Aliás, alega textualmente: “Embora os negros sejam sustentados
por seus amos, existindo terras com abundância, permitem aos escravos
plantar o que quiserem e vender as colheitas a quem lhes aprouver.
Muitos criam galinhas e porcos e, ocasionalmente, um cavalo para alugar e
possuir o dinheiro assim obtido” (Transcrito do livro de J. Balmes: A
Igreja Católica em face da Escravidão, pp. 108-110).
São estes alguns aspectos da história da escravidão no Brasil que
devem ser postos em relevo para que se tenha uma visão tão objetiva e
fiel quanto possível do período analisado.
3. Observação final
É necessário, sim, reconhecer o passado com realismo e veracidade.
Mas não se pode esquecer o presente ainda trágico, que a humanidade
vive, trazendo até hoje a chaga da escravatura, embora dissimulada ou
elegantemente rotulada.
Eis, a propósito, o que se refere na imprensa de nossos dias:
Mundo tem 200 milhões de crianças escravas
“Londres – Em alguns países podem ser comprados pelo equivalente a
apenas US$ 15 e em outros trabalham até 20 horas por dia. Não se trata
dos robôs produzidos pela moderna tecnologia, mas de vítimas de um
comércio que se acreditava há muito desaparecido: a escravidão de
crianças.
Segundo a Sociedade contra a Escravidão, que tem sede em Londres, há
no mundo pelos menos 200 milhões de crianças escravas, trabalhando em
fazendas, fábricas, na indústria do sexo, esgotando-se em longos
expedientes, freqüentemente maltratadas e sempre pagas com migalhas.
No livro “Crianças escravizadas”, recentemente lançado, Roger Swayer,
de 57 anos, doutor em História, afirma que há no mundo mais escravos
hoje que durante o século passado, quando a escravidão se tornou ilegal.
Autor de muitas outras sobre a escravidão, ele explica que aparece até
como participação forçada das vítimas em conflitos bélicos.
Swayer descreveu em seu livro as condições imperantes numa fábrica do
norte da Índia, onde foram libertadas 27 crianças. Algumas haviam sido
seqüestradas, outras vendidas por mães desesperadas para receber algumas
rúpias imprescindíveis a alimentar o resto da família e outras
“hipotecadas” a prestamistas que os parentes das vítimas utilizam para
adquirir comida.
“Qualquer tentativa para escapar dos estreitos limites de uma jornada
de trabalho de 20 horas era reprimida por golpes com uma vara de ferro
ou bambu, e a penalidade por chorar era ser golpeado por uma pedra
envolta de pano. O castigo por tentar fugir era ser pendurado numa
árvore de cabeça para baixo”.
Na Europa e nos Estados Unidos, as crianças-escravas trabalham
fundamentalmente para a indústria de sexo. “O sofrimento físico das
crianças utilizadas na indústria do cinema pornô, na prostituição e no
tráfico de narcóticos faz com que, comparadas às crianças do Terceiro
Mundo, pareçam privilegiadas”, escreveu Swayer, segundo quem a
prostituição infantil e juvenil está proliferando em Paris, Nova York e
Londres.
Somente em Paris, segundo especialistas, existem 8.000 crianças de
ambos os sexos dedicadas à prostituição, em sua maioria provenientes da
Argélia e Marrocos. Em várias grandes cidades dos Estados Unidos existem
os denominados “cavalariços”, meninos de entre 12 e 14 anos que
praticam a prostituição” (O Globo, 25/07/88, p. 12).
Como se vê, ainda mais importante do que censurar o passado é
considerar o presente e dar-lhe os remédios de que carece para evitar a
persistência da escravatura em nossos dias. Na verdade, somente a fé em
Deus, que suscita o amor ao próximo, é capaz de conter a onda de
erotismo e ganância que degradam o ser humano em nossos tempos. Possa,
pois, o passado servir de escola e advertência ao presente, contribuindo
para despertar a consciência do homem contemporâneo para uma das
grandes nódoas do momento.
A propósito:
TERRA, JOÃO EVANGELISTA MARTINS, A Igreja e o Negro no Brasil. Ed. Loyola 1983.
PR 274/1984, pp. 240-247 (síntese do livro acima).
Bíblia, Igreja e Escravidão. Coordenador João Evangelista Martins Terra S. J. Ed. Loyola 1983.
PR 267/1983, pp. 106-132.
¹ O. Rainaldi, Annales X (a. 1482).
D. Estevão Bettencourt, osb.
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