Hoje há poucos estudiosos empenhados em produzir
pesquisa de bom nível sobre a universidade brasileira. Entre eles, a
antropóloga Eunice Durham, 75 anos, vinte dos quais dedicados ao tema,
tem o mérito de tratar do assunto com rara objetividade. Seu trabalho
representa um avanço, também, porque mostra, com clareza, como as
universidades têm relação direta com a má qualidade do ensino oferecido
nas escolas do país. Ela diz: "Os cursos de pedagogia são incapazes de
formar bons professores". Ex-secretária de política educacional do
Ministério da Educação (MEC) no governo Fernando Henrique, Eunice é do
Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas, da Universidade de São Paulo –
onde ingressou como professora há cinqüenta anos.
Sua pesquisa mostra que as faculdades de pedagogia estão na raiz do mau ensino nas escolas brasileiras. Como?
As faculdades de pedagogia formam professores incapazes
de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar a matéria. Mais
grave ainda, muitos desses profissionais revelam limitações elementares:
não conseguem escrever sem cometer erros de ortografia simples nem
expor conceitos científicos de média complexidade. Chegam aos cursos de
pedagogia com deficiências pedestres e saem de lá sem ter se livrado
delas. Minha pesquisa aponta as causas. A primeira, sem dúvida, é a
mentalidade da universidade, que supervaloriza a teoria e menospreza a
prática. Segundo essa corrente acadêmica em vigor, o trabalho concreto
em sala de aula é inferior a reflexões supostamente mais nobres.
Essa filosofia é assumida abertamente pelas faculdades de pedagogia?
O objetivo declarado dos cursos é ensinar os candidatos a
professor a aplicar conhecimentos filosóficos, antropológicos,
históricos e econômicos à educação. Pretensão alheia às necessidades
reais das escolas – e absurda diante de estudantes universitários tão
pouco escolarizados.
O que, exatamente, se ensina aos futuros professores?
Fiz uma análise detalhada das diretrizes oficiais para
os cursos de pedagogia. Ali é possível constatar, com números, o que já
se observa na prática. Entre catorze artigos, catorze parágrafos e 38
incisos, apenas dois itens se referem ao trabalho do professor em sala
de aula. Esse parece um assunto secundário, menos relevante do que a
ideologia atrasada que domina as faculdades de pedagogia.
Como essa ideologia se manifesta?
Por exemplo, na bibliografia adotada nesses cursos,
circunscrita a autores da esquerda pedagógica. Eles confundem pensamento
crítico com falar mal do governo ou do capitalismo. Não passam de
manuais com uma visão simplificada, e por vezes preconceituosa, do
mundo. O mesmo tom aparece nos programas dos cursos, que eu ajudo a
analisar no Conselho Nacional de Educação. Perdi as contas de quantas
vezes estive diante da palavra dialética, que, não há dúvida, a maioria
das pessoas inclui sem saber do que se trata. Em vez de aprenderem a dar
aula, os aspirantes a professor são expostos a uma coleção de jargões.
Tudo precisa ser democrático, participativo, dialógico e, naturalmente,
decidido em assembléia.
Quais os efeitos disso na escola?
Quando chegam às escolas para ensinar, muitos dos
novatos apenas repetem esses bordões. Eles não sabem nem como começar a
executar suas tarefas mais básicas. A situação se agrava com o fato de
os professores, de modo geral, não admitirem o óbvio: o ensino no Brasil
é ainda tão ruim, em parte, porque eles próprios não estão preparados
para desempenhar a função.
Por que os professores são tão pouco autocríticos?
Eles são corporativistas ao extremo. Podem até estar
cientes do baixo nível do ensino no país, mas costumam atribuir o fiasco
a fatores externos, como o fato de o governo não lhes prover a formação
necessária e de eles ganharem pouco. É um cenário preocupante. Os
professores se eximem da culpa pelo mau ensino – e, conseqüentemente, da
responsabilidade. Nos sindicatos, todo esse corporativismo se exacerba.
Como os sindicatos prejudicam a sala de aula?
Está suficientemente claro que a ação fundamental desses
movimentos é garantir direitos corporativos, e não o bom ensino.
Entenda-se por isso: lutar por greves, aumentos de salário e faltas ao
trabalho sem nenhuma espécie de punição. O absenteísmo dos professores
é, afinal, uma das pragas da escola pública brasileira. O índice de
ausências é escandaloso. Um professor falta, em média, um mês de
trabalho por ano e, o pior, não perde um centavo por isso. Cenário de
atraso num país em que é urgente fazer a educação avançar. Combater o
corporativismo dos professores e aprimorar os cursos de pedagogia,
portanto, são duas medidas essenciais à melhora dos indicadores de
ensino.
A senhora estende suas críticas ao restante da universidade pública?
Há dois fenômenos distintos nas instituições públicas. O
primeiro é o dos cursos de pós-graduação nas áreas de ciências exatas,
que, embora ainda atrás daqueles oferecidos em países desenvolvidos,
estão sendo capazes de fazer o que é esperado deles: absorver novos
conhecimentos, conseguir aplicá-los e contribuir para sua evolução.
Nessas áreas, começa a surgir uma relação mais estreita entre as
universidades e o mercado de trabalho. Algo que, segundo já foi
suficientemente mensurado, é necessário ao avanço de qualquer país. A
outra realidade da universidade pública a que me refiro é a das ciências
humanas. Área que hoje, no Brasil, está prejudicada pela ideologia e
pelo excesso de críticas vazias. Nada disso contribui para elevar o
nível da pesquisa acadêmica.
Um estudo da OCDE (organização que reúne os
países mais industrializados) mostra que o custo de um universitário no
Brasil está entre os mais altos do mundo – e o país responde por apenas
2% das citações nas melhores revistas científicas. Como a senhora
explica essa ineficiência?
Sem dúvida, poderíamos fazer o mesmo, ou mais, sem
consumir tanto dinheiro do governo. O problema é que as universidades
públicas brasileiras são pessimamente administradas. Sua versão de
democracia, profundamente assembleísta, só ajuda a aumentar a burocracia
e os gastos públicos. Essa é uma situação que piorou, sobretudo, no
período de abertura política, na década de 80, quando, na universidade,
democratização se tornou sinônimo de formação de conselhos e
multiplicação de instâncias. Na prática, tantas são as alçadas e as
exigências burocráticas que, parece inverossímil, um pesquisador com uma
boa quantia de dinheiro na mão passa mais tempo envolvido com prestação
de contas do que com sua investigação científica. Para agravar a
situação, os maus profissionais não podem ser demitidos. Defino a
universidade pública como a antítese de uma empresa bem montada.
Muita gente defende a expansão das universidades públicas. E a senhora?
Sou contra. Nos países onde o ensino superior funciona,
apenas um grupo reduzido de instituições concentra a maior parte da
pesquisa acadêmica, e as demais miram, basicamente, os cursos de
graduação. O Brasil, ao contrário, sempre volta à idéia de expandir esse
modelo de universidade. É um erro. Estou convicta de que já temos
faculdades públicas em número suficiente para atender aqueles alunos que
podem de fato vir a se tornar Ph.Ds. ou profissionais altamente
qualificados. Estes são, naturalmente, uma minoria. Isso não tem nada a
ver com o fato de o Brasil ser uma nação em desenvolvimento. É
exatamente assim nos outros países.
As faculdades particulares são uma boa opção para os outros estudantes?
Freqüentemente, não. Aqui vale a pena chamar a atenção
para um ponto: os cursos técnicos de ensino superior, ainda
desconhecidos da maioria dos brasileiros, formam gente mais capacitada
para o mercado de trabalho do que uma faculdade particular de ensino
ruim. Esses cursos são mais curtos e menos pretensiosos, mas conseguem
algo que muita universidade não faz: preparar para o mercado de
trabalho. É estranho como, no meio acadêmico, uma formação voltada para
as necessidades das empresas ainda soa como pecado. As universidades
dizem, sem nenhum constrangimento, preferir "formar cidadãos". Cabe
perguntar: o que o cidadão vai fazer da vida se ele não puder se inserir
no mercado de trabalho?
Nos Estados Unidos, cerca de 60% dos alunos freqüentam essas escolas técnicas. No Brasil, são apenas 9%. Por quê?
Sempre houve preconceito no Brasil em relação a qualquer
coisa que lembrasse o trabalho manual, caso desses cursos. Vejo, no
entanto, uma melhora no conceito que se tem das escolas técnicas, o que
se manifesta no aumento da procura. O fato concreto é que elas têm
conseguido se adaptar às demandas reais da economia. Daí 95% das
pessoas, em média, saírem formadas com emprego garantido. O mercado,
afinal, não precisa apenas de pessoas pós-graduadas em letras que sejam
peritas em crítica literária ou de estatísticos aptos a desenvolver
grandes sistemas. É simples, mas só o Brasil, vítima de certa
arrogância, parece ainda não ter entendido a lição.
Faculdades particulares de baixa qualidade são, então, pura perda de tempo?
Essas faculdades têm o foco nos estudantes menos
escolarizados – daí serem tão ineficientes. O objetivo número 1 é manter
o aluno pagante. Que ninguém espere entrar numa faculdade de mau ensino
e concorrer a um bom emprego, porque o mercado brasileiro já sabe
discernir as coisas. É notório que tais instituições formam os piores
estudantes para se prestar às ocupações mais medíocres. Mas cabe
observar que, mesmo mal formados, esses jovens levam vantagem sobre os
outros que jamais pisaram numa universidade, ainda que tenham aprendido
muito pouco em sala de aula. A lógica é típica de países em
desenvolvimento, como o Brasil.
Por que num país em desenvolvimento o diploma universitário, mesmo sendo de um curso ruim, tem tanto valor?
No Brasil, ao contrário do que ocorre em nações mais
ricas, o diploma de ensino superior possui um valor independente da
qualidade. Quem tem vale mais no mercado. É a realidade de um país onde a
maioria dos jovens está ainda fora da universidade e o diploma ganha
peso pela raridade. Numa seleção de emprego, entre dois candidatos
parecidos, uma empresa vai dar preferência, naturalmente, ao que
conseguiu chegar ao ensino superior. Mas é preciso que se repita: eles
servirão a uma classe de empregos bem medíocres – jamais estarão na
disputa pelas melhores vagas ofertadas no mercado de trabalho.
A tendência é que o mercado se encarregue de eliminar as faculdades ruins?
A experiência mostra que, conforme a população se torna
mais escolarizada e o mercado de trabalho mais exigente, as faculdades
ruins passam a ser menos procuradas e uma parte delas acaba
desaparecendo do mapa. Isso já foi comprovado num levantamento feito com
base no antigo Provão. Ao jogar luz nas instituições que haviam
acumulado notas vermelhas, o exame contribuiu decisivamente para o seu
fracasso. O fato de o MEC intervir num curso que, testado mais de uma
vez, não apresente sinais de melhora também é uma medida sensata. O mau
ensino, afinal, é um grande desserviço.
A senhora fecharia as faculdades de pedagogia se pudesse?
Acho que elas precisam ser inteiramente reformuladas.
Repensadas do zero mesmo. Não é preciso ir tão longe para entender por
quê. Basta consultar os rankings internacionais de ensino. Neles, o
Brasil chama atenção por uma razão para lá de negativa. Está sempre
entre os piores países do mundo em educação.
0 comentários:
Postar um comentário