sábado, 19 de março de 2011

Flagrando a ideologização

Por Francisco de Assis Razzo
1. Este texto tem como objetivo analisar dois assuntos seguidos de um desses Cadernos do Professor, direcionado especificamente para a disciplina de Filosofia para a 2ª Série do Ensino Médio do 3º Bimestre de 2008, que a Secretaria da Educação [de São Paulo] tem implementado como Proposta Curricular, onde se pode constatar uma postura brutalmente "ideologizante" e pouco filosófica.
Duas aulas são propostas, a saber: "Filosofia e Humilhação", "Filosofia e Racismo". Isso pra ficar apenas nesse caderno e nessas aulas, fora outros. Chamo aqui ideologia qualquer distorção do real fundamentada numa visão de mundo ou em alguma doutrina filosófica fortemente ligada à tendência política e que camufla essa tendência.
2. Podemos chamar de doutrinação ideológica: a) tudo aquilo que sai do foco da disciplina (no nosso caso a filosofia) para ficar tratando de assuntos relacionados a temas do noticiário político ou internacional. b) que adota publicações e autores, sem crítica específica, identificados com determinada corrente ideológica, política e filosófica; impõe a leitura de textos que mostram apenas um dos lados de questões que são polemicamente controversas; c) submete os alunos à discussão polêmicas em sala de aula sem fornecer os instrumentos necessários à análise de mensagens veiculadas a certa postura ou inclinação filosófica, sem dar tempo ao aluno para refletir sobre o fundamento do conteúdo; d) encaminha o debate de qualquer assunto controvertido para conclusões que necessariamente favoreçam pontos de vista de determinada corrente de pensamento; e) não admite a mera possibilidade de que o "outro lado" possa ter alguma razão; f) utiliza-se da função para propagar idéias e juízos de valor incompatíveis com os sentimentos morais e religiosos dos alunos. Há uma série de outras posturas que compromete ideologicamente um tema, creio que para análise dos temas do CP essas já bastam.
3. Se eu adotasse uma postura filosófica baseada em Platão, Aristóteles, Plotino, Santo Agostinho, São Boaventura, Santo Tomas de Aquino, Descartes, Pascal, Hume, Kant, Schelling, Kierkegaard, Husserl, Voegelin, só pra ficar em alguns nomes, eu jamais ensinaria aos meus alunos que a filosofia serve para "pensar novas formas de relações sociais" ou "inserir os jovens numa prática política, a partir de problemas de imediata configuração ética", cujo mote é "visar levar os estudantes a uma reflexão sobre injustiças e violências cotidianas" pelo viés do "enfrentamento a partir do compromisso político" cujo enfoque seja o da "exclusão social". Honestamente, isso não faz parte do programa filosófico proposto por esses filósofos, muito pelo contrário, causaria muita estranheza; claro que qualquer um pode objetar dizendo que os nossos problemas sociais, conseqüentemente os filosóficos e pedagógicos, não são os mesmos que os deles e que, exatamente por isso, devemos construir uma educação voltada apenas para os nossos problemas, nesse sentido, esquecer ou abandonar a filosofia desses caras por ser ultrapassada. Ou ainda objetar que a filosofia de Platão toda ela formatada para construção de uma República e, nesse caso, sua preocupação desde o início era a de relacionar Filosofia-Educação-Política, não obstante, isso seja feito nos moldes do pensamento grego cuja complicação histórica é bem genuína daquele momento. Aristóteles a mesma coisa. Plotino a mesma. Santo Agostinho etc. E todos esses não tem nada a ver com o modo como associamos Educação com Política, precisamente hoje. Ou seja, é preciso escolher um filósofo que fala mais dos nossos problemas, um que esteja mais próximo de nós, como Hegel, Heidegger, Sartre, Foucault, Marx, Gramsci, Adorno, José Gomes Filho, Jair Batista da Silva, Judith Butler etc. Por que esses e não os outros? Por que esses justificam os nossos problemas? Ou por que não pensar que nossas mentiras são justificadas por eles? Qual o critério que me faz escolher a "Dialética do Esclarecimento" de Adorno-Horkheimer e não a "Cidade de Deus" de Santo Agostinho? Por que escolho Marx e não Leão XIII? Quando os critérios dessas escolhas não são claros, precisamos suspeitar de ideologia ou doutrinação. Se eu sou cristão católico conservador ou anarquista libertino, ou ainda, marxista stalinista ou do tipo gramsciano, isso certamente influenciará e muito na elaboração do meu programa de ensino. Como nossa escola é pública, não posso evidentemente basear nas minhas preferências ou inclinações intelectuais; é mais do que uma exigência que os critérios que definem a escolha dos temas e, principalmente, dos textos e autores sejam bem determinados, é uma obrigação do autor! E a Verdade a obrigação do Filósofo.
***
4. É justamente o que não acontece quando é proposto aos nossos alunos sobre "Filosofia e Humilhação", "Racismo e Filosofia" ou "Feminismo e Filosofia". Vejamos o quanto é problemático o conceito de "Humilhação social", baseado no psicanalista de viés marxista, José Gomes Filhos: "A humilhação social consiste em uma modalidade de angústia disparada pelo impacto traumático da desigualdade de classe, isto é, a angústia que se sofre quando alguém se depara com um abismo chamado desigualdade", ou ainda, "a desigualdade experimentada do lado de fora é internalizada como sofrimento, ao qual muitas pessoas já estão habituadas" (p. 9). "Existe em nossa sociedade uma hierarquia constante que leva o humilhado a sentimentos que o agridem", "Na sociedade, todos são, em alguma medida, humilhados, mas no caso das pessoas mais pobre isso é constante e vai da infância à velhice", "Angústia que os pobres conhecem bem e que, entre eles, inscreve-se no núcleo de sua submissão" (p.10). "A humilhação é uma modalidade de angústia que se dispara a partir do enigma da desigualdade de classes. Os pobres sofrem freqüentemente o impacto dos maus-tratos. Psicologicamente, sofrem o impacto de uma mensagem estranha, misteriosa: 'vocês são inferiores'". Só faltou o autor deduzir disso que é preciso eliminar, à força ou não, a sociedade de classe. Agora eu pergunto, por que esse autor? Por que não outro que negue a idéia de "Igualdade" como paradigma de uma sociedade? Por que não analisar com nossos alunos que por trás do conceito de "humilhação social" vive uma filosofia marxista extremamente controversa. Não dá passivamente pra aceitar esse conceito. Poderia ser sugerida, justamente, uma série de outros autores que questionam essa noção.Por exemplo, o próprio Platão ou Nietzsche, ou Santo Agostinho, Aristóteles ou Tomas de Aquino, Alasdir MacIntayre ou Charles Taylor. Nós professores de filosofia sabemos bem que o conceito de "igualdade"/"desigualdade" social é um problemão filosófico!
5. Vamos supor uma situação muito simples, baseada justamente nessa concepção de "humilhação social". Certa aluna leva um notebook na escola cuja condição pecuniária da maioria é baixa. Senta na hora do recreio com uns amigos para mostrar umas fotos de um trabalho de ciência. Cinco garotos arrebentam a menina na saída da escola e ainda roubam o notebook. Por que? Porque "internalizaram um abismo enigmático chamado desigualdade?", "sentiram-se angustiados, internalizaram misteriosamente sua inferiorização e agredidos por serem pobres, resolveram roubar e espancar menina?". Claro que qualquer cartilha socialista (seja qual for o viés) diria: esses problemas se resolvem quando eliminarmos as classes. Gramsci não quis fazer isso à força e escolheu o funcionário ou intelectual orgânico que atuará, sobretudo, na educação – vide Paulo Freire no Brasil – para realizar seu projeto socialista. Atuando como uma hegemonia cultural, manipula a mentalidade viés educação e engajamento dos trabalhadores que atuarão como intelectuais representantes dessa classe outrora "humilhada socialmente". Mas nós não podemos nos furtar a isso e ainda que isso seja o esperado precisamos analisar criteriosamente todos os possíveis mecanismos dessa articulação político-filosófica. Mas será que isso resolve o problema da menina que foi espancada e roubada porque levou o notebook na escola? É eticamente viável legitimar determinadas atitudes de comportamento só porque fulano é ou não pobre? Como é que vou ler um texto desses para os meus alunos que tem "interiorizada magicamente" a heróica noção de "paz, justiça e liberdade"? Se o problema dos alunos é leitura e "humilhação social", por que não distribuir o "Quatrocentos contra um" do magistrado professor William da Silva Lima?
***
6. Passemos agora à análise do "Filosofia e Racismo" cujo objetivo é, segundo o CP, a "discussão ética e política a respeito do racismo".A chamada "situação de aprendizagem" recomenda que se inicie com a seguinte pergunta: "existe racismo no Brasil?" e logo em seguida faz uso do texto "A particularidade do racismo do Brasil" do historiador e sociólogo de viés marxista Jair Batista da Silva. A segunda aula foi proposta com base no texto do psicanalista social Albert Memmi, que escreveu obra importante sobre o problema das estruturas das relações sociais de colonização de viés, evidentemente, materialista. De qualquer maneira, essa Situação de Aprendizagem ao invés de discutir a polêmica do racismo livre de qualquer perspectiva ideológica, pelo contrário, reforça ainda mais a idéia de que todos nós somos racistas. Típico de análises ideológicas.
7. Por que não apresentou a proposta da aula como discussão e polêmica aberta: existe ou não existe racismo no Brasil? Somos ou não somos um país racista?Quais os critérios científicos e filosóficos pra dizer que alguém é ou não racista? Poderia investigar autores que pensam completamente o contrário. O texto força tanto a idéia de que somos racistas que chega ser constrangedor só imaginar um professor branco lecionar pra uma classe, ou até mesmo comunidades, cuja maioria é de negros. E o constrangimento para os amigos ou namoradas de negros? O assunto é tão polêmico que jamais poderia ter sido adotada essa postura: "Para o racista, a identificação do outro com um mal qualquer é decisiva e absoluta." Até aí tudo bem, de fato, ser racista é fazer essa identificação. O outro passa mesmo a ser visto como o Mal a ser eliminado. O problema é o que o autor deduz disso e como isso é disseminado nas salas de aula e, consequentemente, na opinião pública: "Para agir de forma racista é necessário essa identificação absoluta, mas também deve haver outras que são relativas." Entre "haver" e "deve haver", ou seja, entre a realidade e a possibilidade dessa realidade há um abismo epistemológico que não autoriza, em hipótese alguma, nenhum autor concluir isso: "Ter amigos negros não faz ninguém menos racista. Ser filho ou parente de negros também não." Como assim ter "amigos negros não faz alguém menos racista"? É na própria noção de amizade que está o reconhecimento absoluto do outro em absoluta dignidade. Como assim, "ser filho ou parente de negros também não"?Estão dizendo que a própria família é racista, como? Se é ela justamente a realização fundamental de qualquer cultura. A dedução disso só pode ser mesmo de "racismo imaginário" como alega o autor, pois imaginado na cabeça dele e de alguns outros autores que agora querem disseminar a qualquer custo essa imaginação.
8. Continua: "O que faz uma pessoa menos racista é entender que o racismo é um mal cruel e excludente, que relega as vítimas à pobreza material e destruição de seus valores e de sua cultura." Claro, aqui está a base da ideologização que venho discutindo: deduzir o racismo a partir da constatação e dados econômicos. Típica ideologia reducionista! Como ele não consegue provar a real presença atuante do racismo, na medida em que é capaz de produzir efetivamente resultados pelo acúmulo de exclusões propositais dos negros pelos brancos, o autor, evidentemente, preferiu antes desarticular a idéia de amizade, família, solidariedade, coleguismo etc., fundamentado em textos que só vê a coisa por esse viés.Ainda não terminou: "A relação do racismo contra a sua vítima está ligada, diretamente, ao pensamento colonizador. A atitude racista é uma atitude de colonizar. É preciso ensinar o outro a ser gente, a salvar a sua alma, ensiná-lo a se vestir, falar, comer; enfim, a ser como eu. Sem nunca dar os meus privilégios, o outro sempre será inferior, por mais que pareça civilizado. Um bom negro é aquele que trabalha com humildade, reconhece o seu lugar – lá em baixo. Não dá a sua opinião, mas segue a opinião dominante. Aprende a verdadeira cultura, que só pode ser cristã e européia. Aprender a se comportar..." (p. 19) Então, por que estamos estudando filosofia na escola? Se ela é o legado da cultura Européia, em essência, greco-cristã? Ler esses textos sinceramente me deixou constrangido. O que se pode deduzir dele não é nada mais além do que uma verdadeira contradição intelectual e moral. "Se a escola deve valorizar atitudes anti-racistas" esse texto cumpre exatamente o papel inverso: transforma o suposto racismo imaginário (da cabeça de alguns autores) uma atitude real de segregação racial, na escola, na família, nos círculos de amizade. Os instrumentos apresentados pelo autor (evidente que não estou dizendo que o autor seja racista) para se combater o suposto racismo são eles, essencialmente, racistas. É necessário um aprofundamento e uma escolha mais criteriosa no que diz respeito às essas categorias de pensamento usadas para julgar o que é ou não racismo. A escola é o lugar livre do pensamento e não do julgamento tendencioso.

0 comentários:

Postar um comentário