2 de setembro de 2002
Senhor Presidente
"Encontramo-nos aqui reunidos neste dia,
em espírito de paz, para o bem de todos os seres humanos e para a salvação da
criação. Neste momento da história, no início do terceiro milénio, ficamos
profundamente amarguardos ao observarmos que um elevado número de pessoas
sofrem quotidianamente, em virtude da violência, da miséria, da pobreza e das
enfermidades em geral.
Estamos também profundamente preocupados com
as consequências negativas, para a humanidade e para toda a criação,
proporcionadas pela degradação de alguns dos seus recursos básicos, como a água,
o ar e a terra, causada pelo progresso económico e tecnológico, que não
reconhece nem tem em consideração os limites que lhe são próprios"(1).
Estas são as palavras iniciais da Declaração
Conjunta, assinada no dia 10 de Junho de 2002, por Sua Santidade o Papa João
Paulo II e o Patriarca Ecuménico, Sua Santidade Bartolomeu I. Elas parecem ser
muito oportunas para introduzir a declaração da Santa Sé no Encontro Mundial
sobre o Desenvolvimento Sustentável (WSSD).
Na esteira da Conferência do Rio sobre o
meio ambiente
A partir da Conferência do Rio de Janeiro,
realizada em 1992, no seio da comunidade internacional promoveram-se amplas
discussões e debates sobre o desenvolvimento sustentável.
Trata-se de um conceito que já penetrou no
terreno da história, um terreno que deve ser preparado para permitir que as raízes
do desenvolvimento sustentável cresçam profundamente, a fim de darem muito
fruto, em benefício de toda a humanidade.
Senhor Presidente
Os Estados vieram para este encontro, trazendo
consigo singulares interesses, necessidades, recursos, direitos e
responsabilidades. O elemento unificador nesta mistura orgânica das legítimas
diversidades é e assim deve ser a pessoa humana, como foi enunciado pelo
primeiro Princípio da Declaração do Rio de Janeiro: "Os seres
humanos encontram-se no centro das solicitudes pelo desenvolvimento sustentável.
Eles têm direito a uma vida sadia e produtiva, em harmonia com a
natureza".
"Com efeito, a maneira mais segura de
salvaguardar a criação consiste em pôr o bem-estar do ser humano no centro da
solicitude pelo meio ambiente"(2).
Reconhecer a dignidade e os direitos do
homem
Considerando o facto de que qualquer acordo sólido
e duradouro em favor do desenvolvimento sustentável deve reconhecer e
salvaguardar a dignidade e os direitos da pessoa humana, a promoção contínua
da centralidade do ser humano no debate sobre o desenvolvimento sustentável é
do máximo interesse para a Santa Sé e a principal razão da sua presença
neste importante Encontro mundial. A promoção da dignidade humana está
vinculada tanto ao direito ao desenvolvimento, como ao direito a um meio
ambiente sadio, uma vez que estes direitos realçam a dinâmica do
relacionamento entre os indivíduos e a sociedade em geral; isto estimula a
responsabilidade das pessoas em relação a si mesmas, ao próximo, à criação
e, em última análise, em relação ao próprio Deus.
A este propósito, a Santa Sé continua a
afirmar a sua séria preocupação, no que se refere aos três pilares
interdependentes e mutuamente revigorantes do desenvolvimento sustentável:
o económico, o social e o ambiental, e à sua contribuição para o
desenvolvimento humano verdadeiramente integral e para a promoção do bem-estar
de todas as pessoas. O desenvolvimento é, em primeiro lugar e acima de tudo,
uma questão que diz respeito à pessoa. Como o Secretário-Geral da Organização
das Nações Unidas, Sua Ex.cia o Senhor Kofi Annan, quis realçar, "a
Organização das Nações Unidas deve pôr a
pessoa no centro de tudo aquilo que ela faz, tornando-a capaz de corresponder às
necessidades que lhe são próprias e de realizar a sua potencialidade
integral"(3).
A Santa Sé não procurará acrescentar algo
mais ao significativo discurso técnico, que está a ser promovido no que se
refere ao desenvolvimento sustentável. Contudo, sente-se profundamente
comprometida nos valores que inspiram as acções e as decisões relativas ao
desenvolvimento sustentável, uma vez que as deliberações que se realizam têm
um particular contexto histórico e conduzem directamente para os conceitos da
pessoa, da sociedade e do bem-estar comum.
Salvaguardar as condições morais da
"ecologia humana"
Há que reconhecer que as medidas jurídicas,
económicas e técnicas não são suficientes para resolver os problemas que
dificultam o desenvolvimento sustentável. Muitos destes problemas são questões
de natureza ética e moral, que exigem uma profunda transformação dos modelos
de consumo e de produção, típicos da civilização moderna, de maneira
particular nos países industrializados. A fim de realizar esta mudança,
"devemos encorajar e apoiar a "conversão ecológica" (...)(4)
Enquanto justamente nos preocupamos, apesar de bem menos do que o necessário,
em preservar o "habitat" natural das diversas espécies animais ameaçadas
de extinção, porque nos damos conta da particular contribuição que cada uma
delas dá ao equilíbrio geral da terra, empenhamo-nos demasiado pouco em
salvaguardar as condições morais de uma autêntica "ecologia
humana"(5).
A fim de assegurar o cumprimento da ecologia
humana, é necessária a "educação para a responsabilidade ecológica.
Esta educação não pode enraizar-se no mero sentimento, no desejo vazio [...]
A verdadeira educação para a responsabilidade acarreta uma autêntica conversão
no modo de pensar e de se comportar"(6), promovendo uma verdadeira cultura da
vida, que deveria constituir a base de uma renovada cultura de desenvolvimento
sustentável.
Senhor Presidente
A terra e todos os seus recursos constituem
uma parte da "herança comum de toda a humanidade". Esta compreensão
promove a interdependência, fomenta a responsabilidade e realça a importância
do princípio da solidariedade global. Esta realidade torna-se o fundamento do
desenvolvimento sustentável, orientando os imperativos morais da justiça, da
cooperação internacional, da paz e da segurança, assim como o desejo de
revigorar o bem-estar espiritual e material das gerações do presente e do
futuro.
A urgência do apelo à "globalização
da solidariedade"
Em resposta ao egoísmo e à indiferença,
tanto no que diz respeito aos recursos naturais como ao abandono das pessoas com
menos poder, dinheiro ou influência, a solidariedade é uma determinação
firme e perseverante, em ordem a alcançar o bem comum e a prestar atenção ao
próximo. Como tal, é um ideal exigente, que o Papa João Paulo II realçou com
o seu apelo a uma "globalização da solidariedade".
"O grande desafio moral, que se coloca às
nações e à comunidade internacional relativamente ao desenvolvimento, é ter
a coragem de uma nova solidariedade, capaz de dar passos engenhosos e eficazes
para vencer quer o subdesenvolvimento desumanizante, quer o
"sobredesenvolvimento", que tende a reduzir a pessoa a uma mera
unidade económica numa rede consumista"(7).
Hoje em dia, a pobreza absoluta continua a
flagelar demasiados povos no mundo inteiro. Um elevadíssimo número de pessoas
não têm acesso aos serviços sociais mais básicos, nomeadamente: a água
potável, os serviços sanitários seguros, a assistência médica, educação,
o abrigo e a segurança. Um número demasidao alto de indivíduos não dispõe
de um trabalho ou estão inadequadamente empregados. Muitas crianças, de
maneira especial do sexo feminino, carecem de oportunidades educativas. Muitos
adultos, particularmente as mulheres, são vítimas do analfabetismo e da falta
de uma profissão, e não têm possibilidade de progredir economicamente e de se
integrar sob o ponto de vista social. Muitas pessoas sofrem em virtude da
devastação da enfermidade e da doença, de modo especial os efeitos da
hiv/sida e da malária, que continuam a ter um impacto devastador,
particularmente na África e na região do Caribe. Um número demasiado alto de
indivíduos têm pouca esperança num futuro melhor.
A pobreza não pode ser definida apenas em
termos económicos
Dado que ninguém pode ser alheio ou sentir-se
indiferente perante a sorte dos outros membros da família humana (8), no
contexto da solidariedade, a prioridade deve ser dada ao pleno desenvolvimento
de todas as pessoas, mas de maneira especial às condições dos indivíduos que
vivem na pobreza. Além disso, hoje a pobreza não pode ser definida
simplesmente em termos económicos, mas de modo mais específico como a
incapacidade que as pessoas têm de realizar a sua potencialidade, recebida como
dádiva de Deus.
Hoje em dia, o tecido da sociedade humana é dilacerado pela falta de uma resposta às necessidades humanas mais elementares, que atingem milhões dos nossos irmãos e irmãs.
Hoje em dia, o tecido da sociedade humana é dilacerado pela falta de uma resposta às necessidades humanas mais elementares, que atingem milhões dos nossos irmãos e irmãs.
Nenhum sector, nem nenhum membro da família
humana deveria ser reduzido a ponto de viver em condições sociais, económicas,
ambientais, culturais e políticas sub-humanas. Talvez a pobreza extrema seja a
violação mais abrangente e paralisadora dos direitos humanos no nosso mundo
contemporâneo. Em conformidade com o princípio da subsidiariedade, os pobres
devem ser escutados nos seus problemas e hão-de ocupar um lugar central nos
programas locais, nacionais e internacionais em benefício do desenvolvimento
sustentável. As pessoas que vivem na pobreza devem ser consideradas como
sujeitos participativos. Os indivíduos e os povos não podem tornar-se
instrumentos, mas devem ser os protagonistas do seu próprio futuro, capazes de
ser "os agentes do seu desenvolvimento" e, "nas suas específicas
circunstâncias económicas e políticas, [capazes](9) de exercer a criatividade
que é característica da pessoa humana e da qual depende inclusivamente a
riqueza das nações"(10). Qualquer iniciativa que contribua para o
desenvolvimento e o enobrecimento das pessoas precisa de abordar tanto a essência
espiritual como a existência material da pessoa humana (11).
A distribuição equitativa das reservas do
mundo
Um dos elementos básicos para a existência
humana é a água. Actualmente, um grande número das nossas famílias humanas
devem enfrentar uma inadequada disponibilidade de água e um decrescente acesso
à água potável, assim como uma grave falta de serviços sanitários. A
responsabilidade primeira, no que diz respeito ao uso, à protecção e à gestão
equitativos e sustentáveis das reservas de água do mundo inteiro está nas mãos
dos governos. Na luta em ordem a desenraizar a pobreza, a água desempenha um
papel vital, não apenas no que se refere à saúde, mas também um indispensável
elemento de produção.
O presente Encontro mundial deve enfrentar
este desafio em ordem a obter a disponibilidade deste fundamental recurso dador
de vida, uma vez que, se este problema não for abordado, as pessoas que não têm
acesso à água poderão ir ao encontro da sua própria morte.
Outra prioridade principal no desenvolvimento
sustentável é o progresso nas áreas rurais. Nestas regiões vive mais de
metade da população mundial, e os pobres que moram nas áreas rurais carecem,
com frequência, do acesso ao serviços sociais mais básicos. Por vezes, o
aumento da urbanização moderna tem levado ao esquecimento das populações
rurais.
Contudo, são precisamente os elevados níveis
de pobreza nas áreas rurais que têm contribuído, de maneira substancial, como
factor propulsor da migração de tais populações para as áreas urbanas.
O papel do bom governo na luta contra a
pobreza
Tendo em mente o princípio da
subsidiariedade, o bom governo constitui um dos requisitos prévios na luta
contra a pobreza. Ele está ao serviço do bem comum. Para que o bom governo
obtenha o desejado êxito, devem existir novos compromissos conjuntos que
promovam o investimento nas pessoas e nas infra-estruturas, e que facilitem a
participação dos cidadãos nas decisões que dizem respeito às suas próprias
vidas. O sistema democrático é considerado neste contexto, na medida em que
procura assegurar a possibilidade de participação dos cidadãos nas opções
políticas e de terem uma voz no governo. Este é o processo a que o Papa João
Paulo II se referiu, definindo-o como "subjectividade da sociedade",
que se fundamenta na "criação de estruturas de participação e
co-responsabilidade"(12), ambas fundamentais para o bom governo. O governo pode
definir-se como bom, quando a potencialidade do ser humano é orientada para a
participação criativa no próprio governo e na sociedade em geral. No contexto
da comunidade internacional, o bom governo exige que todos os Estados,
inclusivamente o mais pobre e o menor de entre eles, tenham acesso aos
organismos decisórios que determinam a política e promovem a cooperação
internacional.
Senhor Presidente
Em 1995, o Papa João Paulo II falou de uma
renovação do espírito no contexto do sistema da Organização das Nações
Unidas, expressando-se com as seguintes palavras: "A Organização
das Nações Unidas tem necessidade de se elevar cada vez mais, acima do estado
arrefecido de uma instituição administrativa, para se tornar um centro moral
em que todas as nações do mundo se sintam em casa e desenvolvam uma consciência
conjunta de ser, por assim dizer, uma "família de nações". A ideia
da "família" evoca imediatamente algo mais do que as simples relações
de funcionalidade ou uma mera convergência de interesses. A família é, por
natureza, uma comunidade fundamentada na confiança recíproca, no apoio mútuo
e no respeito sincero. Numa família autêntica, os fortes não dominam; pelo
contrário, em virtude da sua debilidade, os membros mais frágeis são
ulteriormente ajudados e servidos"(13).
No nosso mundo interdependente e globalizante,
este é o espírito da "família" que deve ser promovido, se quisermos
realizar o progresso autêntico em ordem às finalidades e às ideias do
desenvolvimento sustentável. Somente se houver uma compreensão da necessidade
recíproca e da criatividade mútua, é que a humanidade poderá caminhar para a
realização de uma vida melhor para todos os povos do mundo, para todos os
membros da "família das nações". Unindo as ideias da necessidade e
da criatividade aos conceitos da confiança, do apoio e do respeito, o processo
de desenvolvimento sustentável não apenas progredirá, mas será também
fortalecido nos seus esforços em ordem à eliminação da pobreza, da protecção
do meio ambiente, da promoção dos direitos humanos e do pleno respeito pela
nossa dignidade humana conjunta.
O resultado deste Encontro mundial deve
prestar a justa atenção às acções destinadas à consecução do
desenvolvimento humano, económico e social, aspectos estes que correspondem ao
próprio fundamento do desenvolvimento sustentável.
A Santa Sé formula votos a fim de que o
resultado deste Encontro mundial seja não apenas positivo, mas inclusivamente
inovativo e clarividente, e que os compromissos nele assumidos levem o mundo e a
humanidade a progredir, de maneira a poderem contribuir verdadeiramente para o
bem-estar espiritual e material de todas as pessoas, das suas respectivas famílias
e das suas comunidades.
Em ordem a contribuir para a realização
desta esperança, no contexto deste Encontro Mundial sobre o Desenvolvimento
Sustentável, a Santa Sé exorta ao "dom de si", dado que o ser humano
não se pode encontrar plenamente a si mesmo, senão na abnegação. Em resposta
ao egoísmo e à indiferença, em última análise, o "dom de si"
assegura o bem-estar aos outros e às gerações futuras, contribuindo desta
forma para o desenvolvimento sustentável. Este conceito constitui o fundamento
dos outros tipos de associações e uniões de voluntariado, que o Encontro
Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável deseja promover. O "dom de
si" é o uso mais nobre que a pessoa pode fazer da liberdade humana, assim
como o fundamento para uma acção destinada à promoção do desenvolvimento
humano integral.
Obrigado, Senhor Presidente.
Notas
1) Papa João Paulo II e Patriarca Ecuménico
Bartolomeu I, Declaração Conjunta no IV Simpósio sobre Religião, Ciência
e Meio Ambiente, Roma-Veneza, 10 de Junho de 2002.
2) João Paulo II, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1999, n. 10.
3) Kofi Annan, Secretário-Geral da
Organização das Nações Unidas, Discurso no 44º Encontro Plenário da
Assembleia Geral, na 56ª Sessão, 10 de Novembro de 2001.
4) João Paulo II, Audiência geral de
17 de Janeiro de 2001.
5) João Paulo II, Carta Encíclica Centesimus
annus, 38, 1 de Maio de 1991.
6) João Paulo II, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1990, n. 13.
7) João Paulo II, Exortação Apostólica
pós-sinodal Ecclesia in Asia, 32, 6 de Novembro de 1999.
8) João Paulo II, Carta Encíclica Centesimus
annus, 51.
9) João Paulo II, Homilia no Jubileu
dos Trabalhadores, 1 de Maio de 2000.
10) João Paulo II, Mensagem para o Dia
Mundial da Paz de 2000, n. 17.
11) João Paulo II, Discurso aos Membros da
Conferência Episcopal dos Bispos Católicos da Nigéria, em visita "ad
limina Apostolorum", 9 de Maio de 2002.
12) João Paulo II, Carta Encíclica Centesimus
annus, 46.
13) João Paulo II, Discurso na Assembleia
Geral da Organização das Nações Unidas, na Sessão do 50° aniversário
desta Instituição, 5 de Outubro de 1995.
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