Ali Kamel
Ainda os livros didáticos, um problema mais grave do que
eu imaginava. Para 2008, o MEC me informa que já comprou mais de um
milhão de exemplares do livro de história “Projeto Araribá, História,
Ensino Fundamental, 8”, a ser distribuído na rede pública a partir de
janeiro. Para ser exato, 1.185.670 exemplares a um custo de R$
5.631.932,50. É agora o campeão de vendas.
Sem dúvida, o livro tem mais compostura que o “Nova
História Crítica”, que analisei aqui há 15 dias, mas, em essência,
apresenta os mesmos defeitos e um novo, gravíssimo: faz propaganda
político- eleitoral do PT. Na unidade 3, “A primeira Guerra Mundial e a
Revolução Russa”, o livro diz o seguinte, logo na abertura, sob o título
“Um sonho que mudou a história”: “Em 1 de janeiro de 2003, o governo
federal apresentou o programa Fome Zero. Segundo dados do IBGE, 54
milhões de brasileiros vivem em estado de pobreza. Em nenhum país do
planeta existem tantos pobres vivendo entre pessoas tão ricas . No
mundo, segundo o relatório do Banco Mundial, 1,2 bilhão de pessoas vivem
com uma renda inferior a 1 dólar por dia, cifra que deve chegar a 1,9
bilhão em 2015. Por que, apesar de tantos avanços tecnológicos, pessoas
continuam morrendo de fome? É possível mudar essa situação? Os
revolucionários russos de 1917 acreditavam que sim. Seguros de que o
capitalismo era o responsável pela pobreza, eles fizeram a primeira
revolução socialista da história. Depois disso, o mundo nunca mais seria
o mesmo. Hoje, passado quase um século, o capitalismo retornou à
Rússia, e a União Soviética, que nasceu da Revolução Russa de 1917, não
existe mais. Valeu a pena? É difícil responder. Mas como dizia um membro
daquela geração de revolucionários, é preciso acreditar nos sonhos.”
Entenderam a sutileza? Os alunos são levados a acreditar
que não há país no mundo com mais pobres do que o nosso (os autores
esqueceram-se da Índia, para citar apenas um?). E que o Fome Zero seria o
sonho de 1917 revivido.
O livro prossegue com pequenos tópicos sobre os
principais acontecimentos mundiais, a revolução russa e seus
antecedentes: grande pobreza no campo, extrema exploração dos operários.
Vitoriosos os revolucionários, seus primeiros feitos são assim
descritos: “Estradas de ferro e bancos foram nacionalizados, as terras
foram divididas e distribuídas entre os camponeses e a produção nas
indústrias passou a ser controlada pelos operários. As medidas
revolucionárias do novo governo feriram os interesses da burguesia e das
grandes empresas que atuavam no país.” Segue-se um breve resumo da
guerra civil — a burguesia e a aristocracia, apoiados pelos EUA e
Grã-Bretanha, contra os revolucionários liderados por Lênin e Trotsky — e
um pequeno verbete intitulado “A ditadura de Stálin”. Nele, lê-se que a
URSS foi governada de 1924 a 1953 por Stálin, como um ditador. “As
liberdades individuais foram suprimidas e os adversários do regime ,
inclusive os líderes da revolução, acabaram presos ou assassinados pelo
regime.” Parece honesto, mas não é: omitir os detalhes da monstruosa
ditadura de Stálin, que levou milhões à morte, é esconder dos alunos o
mal que o socialismo real provocou. Especialmente porque os autores não
se esqueceram de destacar o “bem” que Stálin proporcionou: “O Estado
promoveu o desenvolvimento da indústria de base, como energia elétrica e
metalurgia, investiu em educação e na qualificação de mão de obra e
formou cooperativas agrícolas (...) para ampliar a produção no campo.”
Bonito, não? No fim do capítulo, nas atividades
propostas aos alunos, fica estabelecida a distinção entre capitalismo e
socialismo: “Os anos 1920, nos EUA, caracterizaram-se por consolidar a
sociedade de consumo. Numa cultura de consumo, grande parte do tempo e
das energias humanas está voltado (sic) para a aquisição de bens
materiais. Sob a orientação do seu professor, debatam os seguintes
aspectos: a) dados que comprovam o caráter consumista da sociedade
atual; b) os efeitos negativos da cultura do consumo para o indivíduo e a
sociedade."
A orientação socialista do livro fica patente em muitas
passagens. Veja por exemplo como os autores definem o Welfare State
europeu: “Apesar de ter sido elaborado, no contexto da Guerra Fria, para
afastar a ameaça representada pelo prestígio que o socialismo
despertava no Ocidente, o Welfare State serviu, também, para concretizar
antigas reivindicações do movimento sindical (...).” O livro se apressa
a dizer que o Welfare State durou pouco, graças à crise do petróleo de
1973 (sic): “Nos anos 1980, os governos de Margareth Thatcher, na
Inglaterra (sic), e de Ronald Reagan, nos EUA, adotaram o modelo
econômico de livre mercado, tornando nula (sic) a intervenção do Estado
na economia (...)." Os alunos devem achar que viver naqueles dois países
é um horror.
E Mao? Este parece ser um fetiche dos autores de livros
didáticos. O livro conta que Mao derrotou o capitalismo na China e
relata dois episódios, sem referência aos milhões de mortos que os dois
eventos provocaram. “Em 1958, a fim de aumentar a produção, foram
criadas cooperativas rurais e novas indústrias também. Essas iniciativas
econômicas foram conhecidas como o ‘Grande salto para a frente’.
Preocupado com a influência de valores ocidentais na China, Mao iniciou a
Revolução Cultural, uma campanha oficial marcada por intensa
doutrinação e repressão.” E mais não se diz.
Deixando de lado a História Universal, o que mais
espanta no livro é a sua novidade: a propaganda político-eleitoral.
Depois de relatar o sucesso do Plano Real no Governo Itamar, o livro
explica assim a vitória de FH sobre Lula nas eleições de 1994: “Uma
habilidosa propaganda política transformou o candidato do governo,
Fernando Henrique, no pai do Plano Real.” Sobre os resultados do
primeiro governo FH, o livro contraria tudo o que os especialistas dizem
sobre os efeitos imediatos do Plano Real: “A inflação foi controlada,
mas a um preço muito elevado. O desemprego cresceu, principalmente na
indústria, elevando a miséria, a concentração de renda e a violência no
país.” Herança maldita é pouco.
Depois de contar como o governo foi obrigado a
desvalorizar o real, o livro diz que o segundo mandato de FH trouxe duas
conquistas no campo social, como ampliar as matrículas no ensino
fundamental e reduzir a mortalidade infantil. Mas o capítulo termina
assim: “O PT chegou ao poder com a responsabilidade de vencer um enorme
desafio: manter a inflação sob controle e combater a desigualdade social
no Brasil, onde 54 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza.”
Como os autores disseram no início, o sonho não acabou.
O livro termina com oito páginas sobre a fome no mundo e
no Brasil. Há afirmações assim: “Há mais pessoas desnutridas na
Nigéria, um país de 120 milhões de habitantes, do que na China, onde
vive mais de 1,2 bilhão de pessoas.” A China é socialista, certo? As
causas da fome, apontadas pelo livro, são as dificuldades de acesso à
terra, o aumento do desemprego e a divisão desigual da renda. Depois de
repetir que “o nosso país tem fome” o livro “esclarece”: “O combate à
fome é o principal objetivo do governo Lula, que tomou posse em janeiro
de 2003. Para isso, o governo lançou o Programa Fome Zero. A implantação
do programa tem como referência o Projeto Fome Zero _ uma proposta de
política de segurança alimentar para o Brasil, um documento que reúne
propostas elaboradas pelo Partido dos Trabalhadores em 2001. Leia agora
parte desse documento.”
E as crianças são expostas a 52 linhas do documento de
propaganda partidária elaborado em 2001 pelo Instituto da Cidadania, do
PT. E a nenhum outro. O Fome Zero, que não conseguiu sair do papel, vira
História. Tudo isso distribuído gratuitamente pelo governo federal a
mais de um milhão de alunos. Isso é possível? Isso é republicano?
Não acredito que o presidente Lula aceite que propaganda
política de um único partido seja distribuída com o uso de dinheiro
público como se fosse aula de história. Não acho também que o MEC
concorde com isso. Fica aqui o alerta.
Três detalhes.
O livro, deliberadamente, confunde pobreza com fome. A
OMS admite até 5% de pessoas magras em qualquer população (os
geneticamente magros e não os emagrecidos pela falta de alimento). O
Brasil tem 4% de magros e, em pouquíssimas áreas, esse percentual chega a
7%; a Índia tem 50%. A fome no nosso país é, portanto, um fenômeno
localizado, na casa das centenas de milhares de pessoas, nunca na casa
dos milhões.
O livro, que se bate contra a globalização e o
neo-liberalismo, foi impresso na China. Usando uma linguagem que poderia
ser a dos autores, “roubando empregos brasileiros.”
E, por último, para que o leitor tenha certeza da
péssima qualidade do projeto, sugiro uma visita à página 83 do livro de
geografia para oitava série, da mesma coleção (1.087.059 exemplares ao
custo de R$ 4.859.153,73). Lá, num texto sobre o Islã, está escrito que a
corrente sunita é a mais moderada e que “a xiita ou fundamentalismo
islâmico é a mais radical”. Sim, eles acham que o xiismo e o
fundamentalismo são sinônimos. Sim, eles ignoram que a Al-Qaeda, a
manisfestação mais brutal do fundamentalismo, é sunita. No mesmo texto,
está escrito também que a Arábia Saudita, o berço do sunismo radical, é
... xiita.
Pobres de nossas crianças.
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