quinta-feira, 10 de março de 2011

Sudão - Século XIX

REB
REVISTA ECLESIÁSTICA BRASILEIRA
Dom Comboni. Profeta da àfrica e Santo no Brasil - Catolicismo e Islamismo no Sudão do século XIX. Milagres no Brasil e no mundo do século XX, por Patrícia Teixeira Santos. Mauad Editora, Rio de Janeiro 2002, 1 vol. br. 140 x 210mm, 206 p.
Com prefácio de Fr. Clodovis Boff e apresentação de Francisco Carlos T. da Silva, o leitor é introduzido na leitura desta fascinante história de missionários na África. Mas será através da leitura do texto de Patrícia Teixeira Santos que ele chegará ao âmago de uma velha e tumultuada história, aquela que revela uma face pouco explorada da política do imperialismo no seu apogeu. Referimo-nos a um momento desse passado-presente do continente negro e a um dos mais apaixonantes episódios na saga de sua partilha entre as potências européias. Trata-se de uma parte da África, no vale do Nilo, em torno de Ondurmã e Cartum, o Sudão (mais tarde, anglo-egípcio) da segunda metade do século XIX, anteriormente integrado ao Egito pela política de Mohamed Ali. Era este um genial e obscuro camponês, oriundo da Albânia, que se tornou Paxá, depois de desafiar a unidade do Império Otomano e contribuído, de maneira decisiva, ao longo do período, para modernizar o Egito (primeiras décadas do século XIX) dando o sinal de partida para a partilha do velho império turco de Constantinopla e sua decantada modernização.

Para compreender tal fenômeno histórico, a palavra-chave de hoje seria, sem dúvida, globalização. As peripécias de tal partilha entre as Potências européias ávidas em abocanhar o mundo então dito atrasado, pobre, negro, amarelo e outras mais nuances de epidermes não-européias, constituem os episódios mais significativos da História do mundo em que vivemos. Patrícia trata de uma parte desse relato de ambições e desencontros, ao nos dar conta da missão evangelizadora de populações sudanesas, ao sul do Egito, por uma congregação missionária italiana cuja figura mais significativa foi Daniele Comboni. Assim como aqui, na América latina, tivemos a Teologia da Libertação, na África de meados do século XIX coube aos sudaneses, por sua vez, entrar em contato com missionários italianos e suas práticas litúrgicas então modernas, embora fosse atribuída sua origem às raízes heróicas do cristianismo. A proposta então formulada referia-se a uma abordagem evangelizadora inculturada. Assim, a palavra Inculturação era usada com referência à ação da Igreja Católica nos continentes que apenas ingressavam no rol das áreas-alvo da ação do imperialismo (Ásia, Oceania e África), como se a Cruz, a Espada e a Mercadoria devessem marchar e lutar de mãos dadas em nome de algum processo civilizatório pré-estabelecido.


Vivia-se então, o apogeu da Questão do Oriente, conhecida e alimentada pelas chancelarias que se encontravam empenhadas na famosa partilha do mundo não-capitalista, rico em alguma coisa que interessasse ao comércio e ao bem-estar das Potências dominantes. Acelera-se, assim, o processo de desmonte do Império Otomano e de rivalidades interimperialistas. A História que cabe a Patrícia nos relatar insere-se nesse quadro político e ideológico, complexo e brutal, devendo a Igreja Católica Romana, em vários momentos desse passado, ocupar um lugar importante. Até recentemente, a história que se desenvolvia no vale do Nilo mereceu a atenção variada dos especialistas, sobretudo a partir da expedição de Napoleão ao Egito no início do século XIX. Dessas iniciativas, a França colheu glórias justificadas (a leitura dos hieróglifos e suas decorrências no plano da cultura) e outras dificilmente justificáveis, embora uma pelo menos tenha sido duradoura, como seja a de ter exercido uma respeitável influência cultural no país. Verdade é que sopraram ventos favoráveis enquanto não foram suplantados pelo vigor da diplomacia inglesa, como também pelo peso da marinha britânica e do capital da Bolsa de Londres, tão bem defendido por Disraeli e sucessores.


É no decorrer do século XIX que os leigos passarão a ter um papel de destaque na ação missionária do Catolicismo romano, em parte pela atuação negativa do clero durante a Revolução Francesa, o que é aqui apontado como um dos fatores decisivos para a extensão dos quadros católicos entre os cidadãos comuns fora dos quadros da Igreja tradicional, o que para a Autora resultou no fortalecimento da Cúria Romana, principal referência a congregar católicos em geral. É provável que a expansão imperialista como missão civilizatória tenha encontrado uma base de apoio como contrapartida na ação missionária das Igrejas.


O segundo capítulo é, nesse sentido, rico em informações e convites à reflexão quanto ao tema. Daí os limites e os impasses da evangelização assinalados pela autora: como a mensagem cristã poderia ser cristã? Como o Cristianismo poderia deixar de humilhar os negros e dignificá-los, promovendo e dignificando os nativos? Daí a ação evangélica de Camboni e seus adeptos ter sido a de regenerar a África com a África. Para que a nova linha de ação adquirisse feições verdadeiramente revolucionárias foi longa a caminhada e os resultados nem sempre se mostraram satisfatórios, a curto e médio prazo.


O que lemos aqui não deixa de ser resultante de uma história de paixão, de misérias, de vilanias, mas também de amor e de esperança. Quando Comboni faleceu, em 1881, acirrava-se a grande revolta no Sudão egípcio promovida por um novo Mahdi, o profeta, que viera para redimir o Islã da heresia e restaurar, conforme apregoava, a religião de Maomé na sua pureza. Foi parte desse episódio a heróica morte do General Gordon, despachado das campanhas chinesas para a África, a fim de restaurar a paz que deveria ser britânica. Sua morte em Cartum com a Bíblia numa mão e a espada em riste, na outra, faz parte da história do Império Britânico e seus avatares. Aliás, a história do Sudão nilótico é pontilhada de gestos de heroísmo, sobretudo nessa guerra de conquista e reconquista.


O projeto de Comboni não se encerra aí. Suas raízes tendiam a se aprofundar. Trata-se não de um episódio na história da Igreja, mas de um passo decisivo no sentido de desocidentalizar a Igreja de Cristo, tornando-a voltada para o povo e, mais do que isso, reconhecendo-se como parte desse povo de várias cores e línguas. Este livro atinge, assim, o objetivo de atrair a atenção dos que se interessam pela história do imperialismo e, ainda, dos que vêem na história recente da Igreja Católica, não apenas um motivo de atração pela tradicional história das idéias no âmbito do catolicismo, como também dos que comungam na idéia de aprofundar a ação transformadora de uma Igreja Católica voltada para a justiça social, enfim, a solidariedade e a felicidade na Terra para todos.



Maria Yedda L. Linhares

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Copacabana
22051-030 Rio de Janeiro - RJ/BRASIL

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