ZP11042401 - 24-04-2011
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“A Igreja não é uma associação qualquer que se ocupa das necessidades religiosas”
CIDADE DO VATICANO, domingo, 24 de abril de 2011 (ZENIT.org) - Publicamos a homilia que Bento XVI pronunciou na celebração litúrgica da Vigília Pascal, na Basílica de São Pedro.
* * *
Amados irmãos e irmãs,
Dois
grandes sinais caracterizam a celebração litúrgica da Vigília Pascal.
Temos antes de mais nada o fogo que se torna luz. A luz do círio pascal
que, na procissão através da igreja encoberta na escuridão da noite, se
torna uma onda de luzes, fala-nos de Cristo como verdadeira estrela da
manhã eternamente sem ocaso, fala-nos do Ressuscitado em quem a luz
venceu as trevas. O segundo sinal é a água. Esta recorda, por um lado,
as águas do Mar Vermelho, o afundamento e a morte, o mistério da Cruz;
mas, por outro, aparece-nos como água nascente, como elemento que dá
vida na aridez. Torna-se assim imagem do sacramento do Baptismo, que nos
faz participantes da morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Mas
não são apenas estes grandes sinais da criação, a luz e a água, que
fazem parte da liturgia da Vigília Pascal; outra característica
verdadeiramente essencial da Vigília é o facto de nos proporcionar um
vasto encontro com a palavra da Sagrada Escritura. Antes da reforma
litúrgica, havia doze leituras do Antigo Testamento e duas do Novo. As
do Novo Testamento permaneceram; entretanto o número das leituras do
Antigo Testamento acabou fixado em sete, que, atendendo às situações
locais, se podem reduzir a três leituras. A Igreja quer, através de uma
ampla visão panorâmica, conduzir-nos ao longo do caminho da história da
salvação, desde a criação passando pela eleição e a libertação de Israel
até aos testemunhos proféticos, pelos quais toda esta história se
orienta cada vez mais claramente para Jesus Cristo. Na tradição
litúrgica, todas estas leituras se chamavam profecias: mesmo quando não
são directamente vaticínios de acontecimentos futuros, elas têm um
carácter profético, mostram-nos o fundamento íntimo e a direcção da
história; fazem com que a criação e a história se tornem transparentes
no essencial. Deste modo tomam-nos pela mão e conduzem-nos para Cristo,
mostram-nos a verdadeira luz.
Na Vigília Pascal, o percurso ao
longo dos caminhos da Sagrada Escritura começa pelo relato da criação.
Desta forma, a liturgia quer-nos dizer que também o relato da criação é
uma profecia. Não se trata de uma informação sobre a realização exterior
da transformação do universo e do homem. Bem cientes disto estavam os
Padres da Igreja, que entenderam este relato não como narração real das
origens das coisas, mas como apelo ao essencial, ao verdadeiro princípio
e ao fim do nosso ser. Ora, podemo-nos interrogar: mas, na Vigília
Pascal, é verdadeiramente importante falar também da criação? Não se
poderia começar pelos acontecimentos em que Deus chama o homem, forma
para Si um povo e cria a sua história com os homens na terra? A resposta
deve ser: não! Omitir a criação significaria equivocar-se sobre a
história de Deus com os homens, diminuí-la, deixar de ver a sua
verdadeira ordem de grandeza. O arco da história que Deus fundou chega
até às origens, até à criação. A nossa profissão de fé inicia com as
palavras: «Creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra».
Se omitimos este início do Credo, a história global da salvação
torna-se demasiado restrita, demasiado pequena. A Igreja não é uma
associação qualquer que se ocupa das necessidades religiosas dos homens e
cujo objectivo se limitaria precisamente ao de uma tal associação. Não,
a Igreja leva o homem ao contacto com Deus e, consequentemente, com o
princípio de tudo. Por isso, Deus tem a ver connosco como Criador, e por
isso possuímos uma responsabilidade pela criação. A nossa
responsabilidade inclui a criação, porque esta provém do Criador. Deus
pode dar-nos vida e guiar a nossa vida, só porque Ele criou o todo. A
vida na fé da Igreja não abrange somente o âmbito de sensações e
sentimentos e porventura de obrigações morais; mas abrange o homem na
sua integralidade, desde as suas origens e na perspectiva da eternidade.
Só porque a criação pertence a Deus, podemos depositar n’Ele
completamente a nossa confiança. E só porque Ele é Criador, é que nos
pode dar a vida por toda a eternidade. A alegria e gratidão pela criação
e a responsabilidade por ela andam juntas uma com a outra.
Podemos
determinar ainda mais concretamente a mensagem central do relato da
criação. Nas primeiras palavras do seu Evangelho, São João resumiu o
significado essencial do referido relato com uma única frase: «No
princípio, era o Verbo». Com efeito, o relato da criação, que ouvimos
anteriormente, caracteriza-se pela frase que aparece com regularidade:
«Disse Deus…». O mundo é uma produção da Palavra, do Logos, como se exprime João com um termo central da língua grega. «Logos»
significa «razão», «sentido», «palavra». Não é apenas razão, mas Razão
criadora que fala e comunica a Si mesma. Trata-se de Razão que é
sentido, e que cria, Ela mesma, sentido. Por isso, o relato da criação
diz-nos que o mundo é uma produção da Razão criadora. E deste modo
diz-nos que, na origem de todas as coisas, não está o que é sem razão,
sem liberdade; pelo contrário, o princípio de todas as coisas é a Razão
criadora, é o amor, é a liberdade. Encontramo-nos aqui perante a
alternativa última que está em jogo na disputa entre fé e incredulidade:
o princípio de tudo é a irracionalidade, a falta de liberdade e o
acaso, ou então o princípio do ser é razão, liberdade, amor? O primado
pertence à irracionalidade ou à razão? Tal é a questão de que, em última
análise, se trata. Como crentes, respondemos com o relato da criação e
com João: na origem, está a razão. Na origem, está a liberdade. Por
isso, é bom ser uma pessoa humana. Assim o que sucedera no universo em
expansão não foi que por fim, num angulozinho qualquer do cosmos,
ter-se-ia formado por acaso também uma espécie como qualquer outra de
ser vivente, capaz de raciocinar e de tentar encontrar na criação uma
razão ou de lha conferir. Se o homem fosse apenas um tal produto casual
da evolução num lugar marginal qualquer do universo, então a sua vida
seria sem sentido ou mesmo um azar da natureza. Mas não! No início, está
a Razão, a Razão criadora, divina. E, dado que é Razão, ela criou
também a liberdade; e, uma vez que se pode fazer uso indevido da
liberdade, existe também o que é contrário à criação. Por isso se
estende, por assim dizer, uma densa linha escura através da estrutura do
universo e através da natureza do homem. Mas, apesar desta contradição,
a criação como tal permanece boa, a vida permanece boa, porque na sua
origem está a Razão boa, o amor criador de Deus. Por isso, o mundo pode
ser salvo. Por isso podemos e devemos colocar-nos da parte da razão, da
liberdade e do amor, da parte de Deus que nos ama de tal maneira que Ele
sofreu por nós, para que, da sua morte, pudesse surgir uma vida nova,
definitiva, restaurada.
O relato veterotestamentário da criação,
que escutámos, indica claramente esta ordem das coisas. Mas faz-nos dar
um passo mais em frente. O processo da criação aparece estruturado no
quadro de uma semana que se orienta para o Sábado, encontrando neste a
sua perfeição. Para Israel, o Sábado era o dia em que todos podiam
participar no repouso de Deus, em que homem e animal, senhor e escravo,
grandes e pequenos estavam unidos na liberdade de Deus. Assim o Sábado
era expressão da aliança entre Deus, o homem e a criação. Deste modo, a
comunhão entre Deus e o homem não aparece como um acréscimo, algo
instaurado posteriormente num mundo cuja criação estava já concluída. A
aliança, a comunhão entre Deus e o homem, está prevista no mais íntimo
da criação. Sim, a aliança é a razão intrínseca da criação, tal como
esta é o pressuposto exterior da aliança. Deus fez o mundo, para haver
um lugar no qual Ele pudesse comunicar o seu amor e a partir do qual a
resposta de amor retornasse a Ele. Diante de Deus, o coração do homem
que Lhe responde é maior e mais importante do que todo o imenso universo
material que, certamente, já nos deixa vislumbrar algo da grandeza de
Deus.
Entretanto, na Páscoa e a partir da experiência pascal dos
cristãos, devemos ainda dar mais um passo. O Sábado é o sétimo dia da
semana. Depois de seis dias em que o homem, de certa forma, participa no
trabalho criador de Deus, o Sábado é o dia do repouso. Mas, na Igreja
nascente, sucedeu algo de inaudito: no lugar do Sábado, do sétimo dia,
entra o primeiro dia. Este, enquanto dia da assembleia litúrgica, é o
dia do encontro com Deus por meio de Jesus Cristo, que no primeiro dia, o
Domingo, encontrou como Ressuscitado os seus, depois que estes
encontraram vazio o sepulcro. Agora inverte-se a estrutura da semana: já
não está orientada para o sétimo dia, em que se participa no repouso de
Deus; a semana inicia com o primeiro dia como dia do encontro com o
Ressuscitado. Este encontro não cessa jamais de verificar-se na
celebração da Eucaristia, durante a qual o Senhor entra de novo no meio
dos seus e dá-Se a eles, deixa-Se por assim dizer tocar por eles, põe-Se
à mesa com eles. Esta mudança é um facto extraordinário, quando se
considera que o Sábado – o sétimo dia – está profundamente radicado no
Antigo Testamento como o dia do encontro com Deus. Quando se pensa como a
passagem do trabalho ao dia do repouso corresponde também a uma lógica
natural, torna-se ainda mais evidente o alcance impressionante de tal
alteração. Este processo inovador, que se deu logo ao início do
desenvolvimento da Igreja, só se pode explicar com o facto de ter
sucedido algo de inaudito em tal dia. O primeiro dia da semana era o
terceiro depois da morte de Jesus; era o dia em que Ele Se manifestou
aos seus como o Ressuscitado. De facto, este encontro continha nele algo
de impressionante. O mundo tinha mudado. Aquele que estivera morto goza
agora de um vida que já não está ameaçada por morte alguma. Fora
inaugurada uma nova forma de vida, uma nova dimensão da criação. O
primeiro dia, segundo o relato do Génesis, é aquele em que teve
início a criação. Agora tornara-se, de uma forma nova, o dia da criação,
tornara-se o dia da nova criação. Nós celebramos o primeiro dia. Deste
modo celebramos Deus, o Criador, e a sua criação. Sim, creio em Deus,
Criador do Céu e da Terra. E celebramos o Deus que Se fez homem,
padeceu, morreu, foi sepultado e ressuscitou. Celebramos a vitória
definitiva do Criador e da sua criação. Celebramos este dia como origem e
simultaneamente como meta da nossa vida. Celebramo-lo porque agora,
graças ao Ressuscitado, vale de modo definitivo que a razão é mais forte
do que a irracionalidade, a verdade mais forte do que a mentira, o amor
mais forte do que a morte. Celebramos o primeiro dia, porque sabemos
que a linha escura que atravessa a criação não permanece para sempre.
Celebramo-lo, porque sabemos que agora vale definitivamente o que se diz
no fim do relato da criação: «Deus viu que tudo o que tinha feito; era
tudo muito bom» (Gn 1, 31). Amen.
[Tradução distribuída pela Santa Sé
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