sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Resenha crítica – “Guia politicamente incorreto da América Latina”


Na tentativa de repetir a fórmula de estrondoso sucesso que foi o livro “Guia politicamente incorreto da História do Brasil”, o jornalista Leandro Narloch preparou, um novo livro, utilizando o mesmo recurso da dessacralização de mitos enraizados em nossa história – agora transposta para a História das Américas. O “Guia politicamente incorreto da América Latina” (Editora Leya, 336 páginas), que além de Narloch tem o jornalista Duda Teixeira como co-autor, segue o mesmo caminho da “versão tupiniquim”, abordando personagens que povoam desde livros escolares, como também vêm frequentando o notíciario da atualidade, seja com descobertas recentes ou com o legado que proporcionam à latinidade.
Os personagens escolhidos que compõem este guia politicamente incorreto de nuestra america foram bem escolhidos, inclusive porque suas biografias acabam inserindo personagens que hoje são politicamente atuantes. Ao falar de Simón Bolivar, é inevitável que se mencione o presidente venezuelano Hugo Chávez. O bolivarismo está presente em todos os instantes nos discursos de Chávez, servindo como mola propulsora para a discussão da política externa daquele país, por exemplo. Outro personagem citado é Che Guevara, médico argentino qvirou guerrilheiro e acabou por se tornar um dos principais ideólogos da Revolução Cubana. Ao morrer, “Che” se transformou num ícone, ganhando o mundo em imagens. Eva e Juan Perón, o casal mais famoso de todos os tempos na Argentina também são lembrados, inclusive tendo papel importantíssimo na construção não somente do Peronismo, mas também como líderes trabalhistas e fundadores do Justicialismo, tendo como lemas, “Paz, Amor e Justiça Social”. O Peronismo virou religião na Argentina, a ponto de até hoje em dia possuir seguidores apaixonados. Compõem ainda o livro, as figuras do mexicano Pancho Villa, os astecas, os incas, os maias, o presidente chileno Salvador Allende – que tentou revolucionar o Chile pela via pacífica do socialismo e terminou por se suicidar no Palácio La Moneda, em Santiago, em meio aos bombardeios das Forças Armadas comandadas pelo general Augusto Pinochet -, além de figuras populares existentes no Haiti pré-independente e escravocrata, como Jean-François, Julien Raimond, Jean Kina, Toussaint L´Ouverture, Henri Christophe, entre outros líderes, originários das massas populares, que se auto-determinaram oficiais militares e exerceram papel importante na conquista da independência do Haiti e de São Domingos.
Prestou atenção ao parágrafo anterior? Muito bem: procure esquecer pelo menos metade de tudo que contaram a você, até hoje, sobre o heroísmo das personagens acima. Esse é o propósito do livro: dessacralizar, desmistificar, pormenorizar certos feitos, jogar luz a fatos que ficaram obscuros e que atenderam interesses particulares, a quem interessava um história direcionada para um determinado fim, que acabou por se transformar numa história oficial. A todo instante os autores se lançam à desconstruir os mitos. Não é propósito desta crítica avaliar se determinado mito realmente merece ser questionado, mas é importante ressaltar que os autores tiveram como base de apoio uma lista de fontes variadas. A revisão técnica da obra é do historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos.
Entretanto, o que incomoda na obra é justamente perceber que o propósito é desconstruir – e não agregar esclarecimentos. Uma coisa é revisar conceitos, idéias e personagens históricos. Fazer isso, com o sentimento de desdém, do tipo “Fulano não foi ninguém” ou “Cicrano na verdade era bandido”, já é outra coisa – e aí não reside mais o ato de historicização. É calúnia mesmo. E isso fica bem claro quando o livro aborda Che Guevara, Salvador Allende e o casal Perón. É importante lembrar que os dois jornalistas trabalham no Grupo Abril (ambos trabalham na revista Veja e Narloch já comandou a Superinteressante e a Aventuras na História). Foi justamente essa a sensação que tive após ler o livro (em exatos cinco dias): a de ter acabado de ler a Veja da semana, tendo Allende, sido massacrado – será que se ainda fosse vivo, seria convocado para alguma CPI no Senado? Lembro mais uma vez que isso não quer dizer que os autores tenham não escrito verdades sobre as personagens – em grande parte escreveram sim coisas reais -, mas a forma como fizeram as sucessivas desconstruções incomodam – e muito. As únicas partes onde ocorreu uma brisa de independência de idéias foram nas abordagens dos astecas, maias e incas, e nas revoltas no Haiti. Nas personagens mais contemporâneas a má-vontade dos autores foi extrapolada a olhos vistos.
Os autores traçam um panorama sensacional sobre a Argentina antes da chegada de Perón ao poder. E acusam o presidente argentino de ser o único culpado da derrocada do país nos anos que se seguiram após assumir a presidência. “É só Perón aparecer para a Argentina começar a apontar para baixo”, escrevem em certa altura do texto. Trata-se, sem dúvida, de um erro crasso. Seria a mesma coisa que dizer que Vargas foi o grande culpado pelo fim do Estado Novo, ou então que Castello Branco foi o único responsável pelo golpe civil-militar de 1964 no Brasil. Ou ainda que a proclamação da República só aconteceu porque Marechal Deodoro da Fonseca, num ato heróico (?), ergueu sua espada e pôs fim à monarquia. Esse tipo de pensamento, pormenorizante, baseado numa história factual, é raso, superficial e tosco. É condição sine qua non para qualquer historiador (ou pesquisador de qualquer área) entender que um acontecimento tem por trás uma série de fatores, uma dinâmica de forças, relações, conflitos… um processo que desencadeia enfim, uma transformação na história. O próprio trabalho de investigação, que o historiador faz, leva a conhecer os caminhos e descaminhos que se traduzem, no fim das contas, nos acontecimentos.
O leitor mais atento e acostumado com a História saberá certamente fazer a distinção entre o que é História e o que é jornalismo histórico. Mas é justamente aí que reside o perigo: o livro claramente não é voltado para historiadores. O público-alvo abrange desde estudantes e profissionais que nada têm a ver com História e que aproveitando essa nova onda de obras de teor histórico publicadas por jornalistas (“1808 e 1822″, de Laurentino Gomes, e livros de Eduardo Bueno, entre outros). Pessoas que vão a uma Megastore qualquer , vêem o livro e pensam: “finalmente um livro de ‘História’ descomplicado, sem linguagem difícil e com diagramação fácil de ler!”. É aí que reside o perigo: da apropriação (indevida) que jornalistas fazem da História, transformando ela num produto que atenda a interesses de terceiros (grupos editoriais, por exemplo), colocando o conteúdo que produzem num patamar onde passem a ser referências no assunto. Por outro lado, é perceptível que existe também um certo preconceito por essa popularização da história. Prefiro acreditar que o preconceito ocorra justamente pela preocupação que expressei acima. Já que, enquanto historiadores ou interessados no constante aprendizado, devemos sempre estar atentos a tudo que é escrito e publicado – inclusive porque, para criticarmos ou argumentarmos, precisamos primeiro ler as obras.
Popularizar a História não é errado, muito pelo contrário: é preciso transpor os muros que separam a Academia da grande massa de leitores ávidos por aprender história. Só que pra fazer isso é importante fazer com responsabilidade, clareza e independência editorial.

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