quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"Após a morte de Kim Jong-il, a reunificação das duas Coreias é possível"

Monsenhor Peter Kang, lider dos bispos de Seul, expressou otimismo para o futuro SEUL, segunda-feira, 19 de dezembro, 2011 (ZENIT.org) - A morte do ditador Kim Jong-il poderia representar uma virada para a reunificação das duas Coreias. Entre os bispos coreanos há um otimismo sobre o destino geopolítico da região após a morte do ditador de Pyonyang. *** "Esperamos que o Senhor de luz e coragem para os irmãos norte-coreanos para retornarem a uma política centrada no diálogo, na paz, na reconciliação", disse à Agência Fides, Dom Peter Kang, presidente da Conferência Episcopal sul coreana ". "Nós não esperávamos um evento como esse - acrescentou o prelado -. Desejamos que este seja um motivo para desenvolver um processo de reunificação. Não conhecemos os detalhes da atual situação política na Coreia do Norte. " Kim Jong-il foi sucedido por seu filho Kim Jong-un, trinta anos, um personagem sem "nenhuma experiência política", de acordo com o líder dos bispos da Coreia do Sul e que "parece haver muita confiança por parte do povo coreano". A situação política na Coreia do Norte poderia, então,passar por um período mais ou menos longo de transição, cheio de incerteza e instabilidade, com o resultado do possível declínio do Partido Comunista no poder há 60 anos. A morte de Kim Jong-il poderia, na verdade, marcar uma virada na história da Coréia. "Poderia ser um sinal de que o Senhor quer uma transformação fundamental no país", disse monsenhor Kang. Mais cauteloso forams os comentários do reverendo Kim Tea Sung, secretário-geral da Conferência coreana da Religião para a Paz, segundo o qual "o futuro do país é uma questão muito delicada neste momento". "A morte do 'caro líder' - disse à Fides o reverendo Kim - poderia deixar um vazio e criar problemas muito sérios na vida social e política. Esperamos que no Norte não acontece agora um momento de conflito, que traria sofrimento para a população." Kim, no entanto, esperava que continue e se reforce a cooperação e o diálogo entre os líderes religiosos das duas Coreias. Um reunião está marcada para a próxima quinta-feira, 22 de dezembro, na Coreia do Norte, após um precedente encontro em Pyongyang, enquanto uma delegação de norte-coreanos é esperada no Sul, no próximo ano. "Nossa esperança é que este processo de troca continue, mesmo com a nova liderança política no Norte, para reforçar um clima de cordialidade e amizade entre o Norte e e Sul da Coreia", concluiu o Rev. Kim. Tradução: MEM

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Igreja Católica na Coreia do Norte II

Coréia do Norte Nos últimos dois anos não ocorreram quaisquer mudanças significativas em termos de liberdade religiosa na Coréia do Norte... Iisto apesar de uma maior abertura demonstrada pelo regime comunista de Pyongyang em relação aos missionários da Igreja Católica e da Igreja Protestante, os quais, devido ao seu trabalho humanitário, puderam entrar no país com maior facilidade. A prática religiosa permanece, na realidade, estritamente proibida. Na Coréia do Norte, apenas o culto da personalidade de Kim Jong-Il e do seu pai Kim Il-Sung é permitido. O regime comunista tentou sempre impedir a prática da religião, especialmente por parte de budistas e de cristãos. Os crentes são obrigados a aderir a organizações controladas pelo partido. Os crentes não registrados e qualquer indivíduo envolvido em atividades missionárias são frequentemente sujeitos a uma perseguição brutal e violenta. Desde que o regime comunista foi estabelecido, em 1953, que cerca de 300 mil cristãos desapareceram, e dos padres e das religiosas que na altura viviam na Coréia do Norte nada se sabe, sendo que se parte do princípio que tenham sido perseguidos até à morte. De momento, pensa-se que cerca de oitenta mil pessoas se encontram a definhar em campos de trabalho, sujeitas à fome, à tortura e até mesmo à morte; no entanto este número baixou dos cerca de cem mil do último ano. Ninguém sabe se estes números (providenciados pelas ONGs que operam no país e que desejam manter o anonimato) são ou não precisos; e, no caso de o serem, não se apresentam razões para a diminuição nos valores. Antigos funcionários norte-coreanos e ex-prisioneiros afirmaram que os cristãos que estão nos campos de reeducação e nas prisões são tratados de forma pior do que os restantes detidos. De acordo com um documento secreto enviado a todos os quartéis militares do país em Setembro de 2007, a religião "está a espalhar-se como um cancro no seio das forças armadas da Coréia do Norte, cuja missão é defender o socialismo". Por esta razão a religião “deve ser erradicada sem demora pois provém dos nossos inimigos em todo o mundo". O documento foi tornado público por um membro do Comitê para a Democratização da Coréia do Norte, um grupo de exilados e refugiados políticos que o mandaram traduzir e publicar. "Não devemos ler os documentos, escutar ou ver as emissões de rádio ou de televisão, ou os materiais vídeo ou áudio elaborados pelo inimigo. O inimigo está a usar a rádio e a televisão para lançar falsa propaganda [religiosa e anti-socialista] através de notícias estratégicas e de intriga, muito bem-feitas", advertia o folheto. "Estão a colocar espiões em delegações internacionais que atravessam as nossas fronteiras para disseminar as suas religiões e convicções supersticiosas". Este material “é como um veneno que corrompe o socialismo e paralisa a consciência de classe" até mesmo entre os nossos soldados e "agora mais do que nunca" os soldados têm de o extirpar e montar guarda para prevenir o seu regresso”. Na Coréia do Norte, o Estado definiu cinquenta e uma categorias sociais. Um indivíduo que pratique uma religião que não se encontra sob o controle do Governo encontra-se evidentemente no fundo da tabela social, com menos oportunidades de educação, de emprego, de ajuda para obter alimentos, e encontra-se constantemente sujeito a uma violência brutal. As autoridades reivindicam que o país desfruta de liberdade religiosa e que esta está protegida pela Constituição. De acordo com números oficiais do Governo, existem dez mil Budistas, dez mil Protestantes e quatro mil Católicos no país, mas estas estimativas referem-se apenas a membros de associações oficialmente sancionadas. Em Pyongyang, existem três igrejas, duas protestantes e uma católica. Estas duas igrejas protestantes são usadas para difundir a propaganda do regime e os pastores no seu seio comparam o "querido líder", Kim Jong-Il, a um semi-deus. Na única igreja católica existente, não existe nenhum padre norte-coreano, mas as orações em grupo têm lugar uma vez por semana e, em casos excepcionais, as cerimônias religiosas são levadas a cabo por padres de etnia coreana, embora de nacionalidade estrangeira. A fome e a perseguição religiosa estão a fazer com que muitos norte-coreanos fujam do país. Se forem capturados, são frequentemente condenados à morte ou a trabalhos forçados. Um acordo entre a China e a Coréia do Norte tornou ainda pior uma situação que já era grave, pois os líderes chineses concordaram, na prática, em tratar os refugiados norte-coreanos como sendo "imigrantes ilegais" e repatriarão todos os que forem descobertos em território chinês, se necessário à força. Uma refugiada norte-coreana de 28 anos, identificada apenas pelo pseudônimo Park Sun-ja de modo a proteger a sua identidade, testemunhou perante uma conferência internacional sobre as violações de direitos humanos na Coréia do Norte. Foi citada pela LifeSiteNews como tendo dito que o infanticídio e o aborto forçado são práticas comuns nos campos de detenção da Coréia do Norte "e são levados a cabo de forma ainda mais brutal se a mãe for uma crente religiosa, qualquer que seja a sua religião". O que ela tem para dizer é chocante. "Eu ouvi os gritos tanto da mãe como da criança através das cortinas (num hospital). E testemunhei, através duma cortina parcialmente aberta, uma enfermeira a cobrir a face da criança com uma toalha molhada, em cima de uma mesa, sufocando-a. O bebe deixou de chorar cerca de dez minutos depois", disse Park. "Todos os prisioneiros que ali estavam acreditam que todas as crianças são imediatamente mortas à nascença e embrulhadas num pedaço de pano antes de serem queimadas numa colina ali perto", disse ela, acrescentando que o método habitual para induzir o nascimento precoce da criança era através de injeção. "Eu não consigo sequer imaginar como ela [a mulher acima mencionada] se deve ter sentido", afirmou Park. "Ouvi dizer que este tipo de atos tinha lugar no passado, mas depois de eu os ter visto com os meus próprios olhos, não senti que estivesse a viver numa sociedade civilizada". Park foi apanhada na China no ano 2000 e foi enviada durante dois meses para o campo de detenção da província de Shinuiju, onde viu o infanticídio acontecer. Conseguiu fugir para a Coréia do Sul em 2002. Igreja Católica Em várias ocasiões, Bento XVI mencionou os nossos "irmãos norte-coreanos" e convidou o mundo a rezar por eles. "Eu estou [. . .] consciente dos gestos práticos de reconciliação empreendidos para o bem-estar de todos na Coréia do Norte", disse o Papa durante a visita ad Limina Apostolorum feita pelos bispos coreanos em Dezembro de 2007. "Eu apoio estas iniciativas e invoco o cuidado providencial de Deus todo-poderoso sobre todos os norte-coreanos", acrescentou. O Papa estava a referir-se às muitas iniciativas caridosas empreendidas pela Igreja na Coréia do Sul em nome da população do Norte. Mas algo mudou desde o ano passado: a atitude do regime norte-coreano. Enquanto que dantes os trabalhadores cristãos declarados eram tratados como espiões ocidentais, eles são agora bem-vindos. Como parte desta "nova atitude", o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Pyongyang deu a sua bênção à construção do Centro de Reconciliação Nacional do Povo Coreano em Paju, na província de Gyeonggi-do, perto da fronteira com a Coréia do Norte. A decisão sobre este projeto partiu da Arquidiocese de Seul para "promover as relações com a Igreja norte-coreana" e "favorecer uma abordagem amistosa" aos habitantes do Norte. O regime comunista chamou-lhe "uma idéia positiva". O centro irá incluir um edifício de dois andares, um servindo como seminário, o outro para uso litúrgico, com uma igreja expiatória, um pequeno santuário e um auditório. O seminário, que poderá alojar cerca de cem pessoas, inclui uma área de estudo e um museu religioso. O Comitê de Reconciliação Nacional, presidido pelo Bispo Kim Un-hwi, tem a seu cargo o projeto e selecionou recentemente o arquiteto que irá projetar a estrutura. Os primeiros desenhos já se encontram disponíveis para exame público. O projeto irá cobrir uma área de 2.200 pyong (um pouco menos do que um hectare) e será construído de modo a refletir o velho estilo da arquitetura sacra norte-coreana conforme existia antes da divisão. A arquitetura das igrejas norte-coreanas é conhecida como um 'estilo arquitetônico inculturado' porque tem por base conceitos tradicionais coreanos de arquitetura. Além disso, e graças ao empenho dos Católicos da Coréia do Sul, o Hospital Católico Internacional Rason da Coréia do Norte foi ampliado. De acordo com a AsiaNews, as instalações ficam situadas na província de Hamgyeongbuk-do, no Leste do país. O hospital, que abriu as suas portas em 2005, foi construído com a ajuda do Serviço Médico da Cooperação Católica Internacional, graças à cooperação entre a Congregação de Santo Otílio da Ordem Beneditina e a Igreja Católica da Coréia. O edifício de três andares cobre uma área de 25.000 m² e está apetrechado com equipamento terapêutico e de diagnóstico. Possui cem camas e emprega oitenta médicos, enfermeiras e pessoal médico. "Os hospitais católicos dão esperança para a paz e a cooperação. Espero que este hospital, em particular, possa abrir caminho para uma futura cooperação", disse Notker Wolf, O.S.B (Ordem de São Bento), abade da congregação de Santo Otílio, no dia da sua inauguração. "Que um hospital possa abrir na Coréia do Norte com a ajuda e a assistência da Igreja é uma ocasião feliz", afirmou o Monsenhor Paul Ri Moun-hi, Arcebispo de Daegu (Coréia do Sul), presidente da fundação católica que providencia os fundos para o projeto. "Os esforços da Igreja Católica a favor da reconciliação e da unidade das duas Coreias não só constituem uma missão importante para a população coreana, como também para a paz e para a humanidade como um todo". Porém, apesar dos esforços da igreja, ninguém deverá pensar durante um minuto que seja que o regime comunista está a facilitar o seu trabalho. A situação para a Igreja Católica na Coréia do Norte permanece atroz. Com o fim da guerra civil em 1953, as três jurisdições eclesiásticas locais e toda a comunidade católica foram brutalmente apagadas do mapa pelo regime estalinista. Nem um único padre local foi deixado vivo e todos os clérigos estrangeiros foram expulsos. Nos primeiros anos de perseguição por Kim Il-Sung, o primeiro ditador da Coréia do Norte, cerca de 300 mil católicos desapareceram. Ainda assim, o Papa manteve vivo o clero ao atribuir sedi vacanti et ad nutum Sanctae Sedis (ou seja, sés vagas, sob a administração de bispos externos designados por Roma) a ordinários sul-coreanos. Neste momento, além do Cardeal Cheong, de Seul, que administra a diocese de Pyongyang, o Monsenhor John Chang Yik, Bispo de Ch'unch'on no Sul, é o administrador para Hamhung, e o Frei Simon Peter Ri Hyeong-u, abade do Mosteiro Beneditino de Waegwan, é o administrador para Tokwon, na Coréia do Norte. Para sublinhar a perseguição pelo regime norte-coreano, o Annuario pontificio, o Anuário Pontifício do Vaticano, ainda lista o Monsenhor Francis Hong Yong-ho como Bispo de Pyongyang. Embora ele não seja visto desde 10 de Março de 1962, nunca foi declarado morto oficialmente (se estivesse vivo, teria 101 anos de idade). A partir deste momento, não existe nenhuma instituição da Igreja, nem padres residentes na Coréia do Norte. Depois da inauguração da primeira igreja Ortodoxa em Agosto último na capital da Coréia do Norte, os Católicos são a única comunidade sem um sacerdote. Oficialmente, o número de Católicos é de 800, bem menos do que os três mil recentemente reconhecidos pelo Governo. A auto-denominada Associação Católica da Coréia do Norte, uma organização criada e dirigida pelo regime, ainda reivindica representar os Católicos locais, mas a Santa Sé sempre desencorajou as visitas dos seus líderes a Roma devido às contínuas dúvidas sobre o seu estatuto legal e canônico. Existem fortes indicações de que são na realidade funcionários do Partido Comunista e não católicos. A única igreja católica não tem padre mas organiza um momento de oração semanal em grupo. Mas tais locais de culto não são mais do que "montras" para os poucos turistas que conseguem visitar o país. Outras confissões religiosas cristãs Em Dezembro de 2005 que quatro cristãos ortodoxos norte-coreanos se encontram a estudar na cidade russa de Vladivostok para atualizar o seu sacerdócio, por um período de três meses. O grupo incluía um padre, dois diáconos e um estudante de música sacra. Para completarem os seus estudos, encontravam-se na Catedral de Svyato-Nikolsky, estudos esses que incluíam explicações teóricas e exemplos práticos de liturgia ortodoxa eslava. O grupo era liderado por Peter Kim Chkher, presidente da Comissão Ortodoxa Norte Coreana, e incluía os dois diáconos, Theodore e Ioann, e Kim En Chang, um diplomado da Escola de Música de Gnesiny. A Comissão Ortodoxa foi criada pelo Governo norte-coreano em 2002. O Frei Dionisy Pozdnyayev, padre ortodoxo do Patriarcado de Moscou, que tem sido o sacerdote dos estrangeiros que vivem na capital da Coréia do Norte a convite do Governo norte coreano, chama à Comissão "um sinal do reconhecimento oficial da Ortodoxia". Os quatro membros convidaram o Arcebispo Veniamin, de Vladivostok e Primorye, para a consagração da nova Igreja da Trindade, em Pyongyang, cerimônia que teve lugar em 2006. O chão da nova igreja foi benzido no dia 24 de Junho de 2003 pelo Arcebispo Ortodoxo Kliment Kapalin. Os representantes norte-coreanos disseram na ocasião que era "importante" para os crentes ortodoxos em Pyongyang terem a oportunidade de praticar a sua fé, e expressaram a "esperança" de que a construção da igreja fortalecesse os laços entre a Rússia e a Coréia do Norte. Para o embaixador russo na Coréia do Norte, Andrei Karlov, a igreja marcou "o regresso da Ortodoxia à Coréia depois de uma longa ausência". No início do século XX, cerca de dez mil coreanos converteram-se à Ortodoxia em cidades como Seul (Coréia do Sul), Wonsan (Coréia do Norte) e em muitas aldeias, em resultado do trabalho de missionários russos. Mas a regência colonial japonesa e o regime estalinista puseram fim à evangelização. Mais tarde, a atividade missionária viria a recomeçar na Coréia do Sul, país que conta atualmente com quatro igrejas ortodoxas. A delegação que veio a Vladivostok não é a primeira do gênero a chegar à Rússia proveniente da Coréia do Norte. Quatro norte-coreanos prosseguiram os estudos no Seminário Teológico do Patriarcado de Moscou entre 2003 e 2005, enquanto dois estudantes russos da Academia Teológica de Moscou estudaram o idioma e a cultura coreana na Universidade Kim Il-Sung, em Pyongyang. O Frei Dionisy afirmou que os quatro estudantes coreanos em Vladivostok se estão a concentrar no estudo da língua russa (incluindo o eslavo eclesiástico, que é usado na liturgia) e o catecismo, de modo a que possam preparar outros para o batismo. O Patriarca Alexis II de Moscou e de Toda a Rússia aprovou a escolha de Vladivostok como o local de formação do clero coreano. Graças a esta "ponte", uma delegação de cristãos ortodoxos russos, incluindo clérigos e membros da hierarquia da Igreja, puderam celebrar o Pentecostes com a pequena comunidade ortodoxa coreana. De acordo com uma declaração emitida pela diocese ortodoxa de Vladivostok, a "visita à capital da Coréia do Norte coincide com a celebração do Pentecostes. Neste dia, o primeiro templo ortodoxo, que foi aberto em Pyongyang em Agosto de 2006 e consagrado em honra da Trindade geradora da vida, celebra a sua festa de dedicatória". Muitos peritos vêem esta abertura inesperada como um sinal da "necessidade desesperada" de Pyongyang do apoio da comunidade internacional. Como resultado de políticas agrícolas e econômicas desastrosas, o país está à beira do colapso. A população vive só com um terço do que as Nações Unidas consideram o mínimo de calorias diárias necessárias para um ser humano. Mas apesar destes problemas, Kim Jong-Il manteve uma atitude de aparente indiferença à situação e continuou a bradar à "vitória do sistema socialista" no país. Deste modo a ajuda da Rússia, assim como a da China, tornou-se a única maneira do ditador manter a dignidade, permitindo, ao mesmo tempo, que os norte-coreanos possam sobreviver. Dados do País • Área (km²) 120.538 • População 23.912.000 • Cristãos 502.152 • Católicos --- • Dioceses --- • Refugiados ---

Igreja Católica na Coreia do Norte

por Alberto Garuti Cinqüenta anos de ditadura tentaram apagar todos os sinais visíveis da Igreja católica no país. Será que a semente, que antes foi lançada, morreu? ão existe nenhuma estrutura de Igreja na Coréia do Norte, mas isso não quer dizer que não existam católicos. A perseguição contra a pequena Igreja católica deste país começou no fim do ano 1945, quando as forças de ocupação soviéticas impuseram um regime comunista. Em 9 de maio de 1949, os 123 missionários do vicariato apostólico de Wonsan foram presos, em seguida os 14 de Pyongyang, alguns dias depois. Em pouco tempo, não havia nenhum padre católico em liberdade. O governo comunista norte-coreano decidiu eliminar totalmente a fé católica: cinco bispos, 82 padres, 25 monges, 34 religiosas e quatro seminaristas morreram mártires. Havia cerca de 50 mil católicos na Coréia do Norte, no momento da tomada do poder pelos comunistas: alguns conseguiram fugir para a Coréia do Sul e o que aconteceu aos outros, ninguém ficou sabendo nada. Contudo, em 1985, o governo norte-coreano convidou ao país uma delegação do Conselho Ecumênico das Igrejas, e esta constatou a presença de vários milhares de cristãos, especialmente protestantes, sem templos nem igrejas. A SEMENTE NÃO MORREU Atualmente, os cristãos são poucos, mas é muito provável que, se a evangelização pudesse recomeçar, muitas pessoas abraçariam o cristianismo. Eis alguns exemplos. O padre Gerard Hammond, missionário de Maryknoll, está na Coréia do Sul desde 1960. Ele já visitou várias vezes a Coréia do Norte em missões humanitárias. Durante uma dessas viagens, viajando de carro e sentado ao lado do motorista norte-coreano, ele começou a rezar o terço, enquanto o outro o olhava. Num certo momento, o carro deu um solavanco, o padre fez um movimento brusco e, por causa disso, o terço que estava segurando quebrou. O padre pediu ao motorista que parasse um momento para descansar e lhe perguntou se tinha por acaso uma pinça. O motorista perguntou para que serviria e o padre lhe mostrou o terço quebrado. O motorista disse que ele mesmo o consertaria, mas para isso saiu do carro e se afastou, indo além de uma curva, para não ser visto pelos ocupantes do carro que vinha atrás. Pouco depois, voltou com o terço consertado e disse: "Eu sei o que é. Minha avó tinha um". Em seguida perguntou para que servia e o padre disse que servia para rezar, especialmente para pedir a Deus a unificação do povo coreano. O motorista ficou muito satisfeito e sorriu a viagem toda. Outra vez, o mesmo padre estava visitando um hospital e viu um homem idoso, muito doente, que perguntava ao médico quem ele era. O médico disse isso ao padre e acrescentou que o paciente não tinha muito tempo de vida. O padre se apresentou e disse ser um sacerdote católico. O doente respondeu, chorando, que conhecia os padres católicos. O padre não poderia fazer um discurso religioso pois isso era proibido e havia outros pacientes na mesma sala. Então, ele se expressou nestes termos: "Eu sei o que existe no seu coração. Aperte a minha mão. Sei que você irá para um lugar onde estará muito feliz". E, bem baixinho, ao ouvido, lhe disse que Jesus o estava esperando. Também aquela pessoa sorriu, contente. Provavelmente é isso o que restou dos antigos cristãos. Os filhos, nascidos sob o novo regime, ouviram alguma coisa dos pais ou dos amigos, guardaram uma lembrança e uma impressão em seu coração de algo que seria muito bonito seguir, mas que não puderam porque, durante muitos anos, foi taxativamente proibido. A SEMENTE COMEÇA BROTAR Mas algo começa a mudar. Todo domingo na igreja católica da capital, Pyongyang, os cristãos agora se reúnem para a oração dominical. Não há missa porque não há padre: todos foram mortos ou exilados no começo da revolução e nunca mais foi permitido ter um. Os cristãos se reúnem para um culto; se por acaso estiver presente algum padre estrangeiro, de passagem, esse pode celebrar. No total, seriam três mil católicos em todo o país, dos quais 800 na capital. Existem até uns pequenos grupos engajados, por exemplo, a Associação Católica Romana da Coréia (Acrc), formada por católicos nascidos depois da guerra da Coréia (1950-53), que procura manter os contatos com os católicos que moram longe da capital, visitam freqüentemente os católicos em suas cidades e orientam sua vida de fé. Mas isso é muito pouco no meio dos 23 milhões de norte-coreanos. Além desses poucos sinais visíveis, certamente existem traços de religiosidade na população. É o que os exemplos já citados mostram. Mas será sempre pouca coisa, se pensarmos que o regime, durante cinqüenta anos, proibiu qualquer manifestação religiosa. O pouco que restou começará a brotar com força, tão logo haja uma maior abertura no país. Coréia do Norte: um país de contrastes Quem tiver que ir da capital Pyongyang à cidade de Nampo pode usar uma das mais modernas estradas do mundo: cinco pistas asfaltadas em cada direção, bem separadas por firmes divisões entre um sentido e o outro. Ela foi construída por 50 mil voluntários num trabalho que durou dois anos. Um pequeno detalhe chama a atenção: quase não se encontram carros trafegando por ela. Se alguém perguntar a um norte-coreano por que construíram uma estrada como essa, se há tão poucos carros no país, ele responderá: "Para o futuro". Um futuro, contudo, que parece muito distante. No fim dos anos noventa, uma carestia matou dois milhões de habitantes. Agora o problema diminui, mas a fome continua. Conforme estatística da Unicef, em 2001, 45% das crianças abaixo dos cinco anos eram subnutridas. As terras cultiváveis são muito poucas nas duas Coréias. A do Sul importa 70% dos alimentos que consome, a do Norte deveria fazer a mesma coisa, mas não há dinheiro, pois as indústrias são poucas e quase todas a caminho da falência. Apesar disso, continuam os trabalhos faraônicos, para alimentar no povo ideais de grandeza, e o investimento na compra de armamentos. As Igrejas cristãs da Coréia do Sul fazem grandes esforços para ajudar os irmãos do Norte, enviando grandes quantidades de arroz, fertilizantes e vários gêneros alimentícios. A mesma coisa fazem os budistas. O governo, agora, permite e aprova essas atividades.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Marxismo cultural é a nova ameaça à sociedade, diz Pe. Paulo Ricardo

Marxismo cultural é a nova ameaça à sociedade, diz Pe. Paulo Ricardo SÃO PAULO, Brasil, 21 de dezembro de 2011 (Notícias Pró-Família) - Embora pareça ter morrido com a queda da União Soviética, o marxismo só passou por uma metamorfose, e agora está ameaçando a cultura de muitas nações em todos os níveis, de acordo com um dos padres mais famosos do Brasil. Numa exclusiva entrevista de vídeo para LifeSiteNews, o Pe. Paulo Ricardo diz para LifeSiteNews que os marxistas invadiram a esfera cultura depois que suas opiniões sobre economia caíram em descrédito, e agora estão buscando subverter todas as instituições da sociedade a partir de dentro. "Eles querem ter o controle de tudo o que produz a cultura. Portanto, acima de tudo, a Igreja é importante. Mas também as universidades, e as escolas, os jornais, os meios de comunicações e tais. E é claro que na batalha em que estão, eles têm tudo nas mãos agora", Paulo Ricardo disse para LifeSiteNews. Contudo, acrescentou ele, precisamos compreender que "Deus está conosco". De acordo com Paulo Ricardo, o marxismo cultural não só incorpora as premissas de Marx, mas também de Nietzsche e Freud. A meta nada mais é do que destruir a civilização ocidental pelas raízes. Dessa destruição, nos asseguram, surgirá uma utopia. Entre as instituições visadas para extermínio, disse Paulo Ricardo, está a família. "Eles acham que a família é opressão. Por isso, logo que há uma família, aí há um homem, que está oprimindo a mulher, e oprimindo os filhos, pois ele está fazendo imposições sobre eles", disse Paulo Ricardo. "Por isso, logo que há uma família tradicional, aí há um homem como governante da família e eles acham que devem destruir isso e para se ter uma sociedade igual, eles querem pessoas crescendo num ambiente diferente". No Brasil, o país com a maior população católica do mundo, os marxistas têm visado a Igreja, e grande número de padres e bispos adotou uma ideologia que substitui os ensinos espirituais de Cristo por uma imitação marxista conhecida como "teologia da libertação". "Agora o que eles estão tentando fazer é alcançar o Cristianismo e mudá-lo de dentro", disse Paulo Ricardo. "Por isso, eles mantêm as palavras religiosas, mas mudam o conceito interior da palavra". "Quando eles falam sobre o reino de Deus, nós como cristãos, quando falamos sobre o reino de Deus, cremos que estamos falando sobre o reino do céu. Por isso, estamos falando sobre algo que não está aqui neste mundo". "Pois bem, eles começam dizendo que estão trabalhando aqui para o reino de Deus, e querem produzir o reino aqui neste mundo. Portanto, na realidade o assunto sobre o qual eles estão falando é a sociedade socialista com a qual eles sonham, a utopia que eles pensam vai acontecer, é o reino de Deus". "Eles usam as mesmas palavras. Parece algo católico, parece algo cristão, mas ao mesmo tempo percebemos que há algo estranho nisso, pois há alguma coisa faltando, e o que está faltando é tudo o que tem relação com o transcendental, com o céu, com a vida após a morte. Tudo o que eles fazem é aplicar aqui na Terra". Essa rejeição das realidades espirituais se junta à exaltação do homem como o "super-homem" de Nietzsche, que pode decidir por si mesmo o bem e o mal, como a serpente prometeu no Jardim do Éden, disse Paulo Ricardo. Os cidadãos do Brasil e dos Estados Unidos estão desarmados diante do marxismo cultural, disse Paulo Ricardo, pois eles ingenuamente creem que o marxismo morreu com a queda da União Soviética. "Nós realmente estamos diante de um monstro que está destruindo tudo o que estimamos, tudo o que consideramos precioso e sagrado", disse ele. O Pe. Paulo Ricardo é famoso no Brasil por suas explicações claras e firme defesa da fé católica, que ele apresenta em seu programa de TV para a Rede Canção Nova, bem como seu blog, Christo Nihil Praeponere. Por Matthew Cullinan Hoffman

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Kim Jong-il e Vaclav Havel

Kenneth Maxwell Não se sabe muito sobre Kim Jong-il. Ele nasceu na União Soviética, em 1941 ou 1942. Seu pai, Kim Il-sung, comandava o 1º Batalhão da 88ª Brigada Soviética, formado por comunistas chineses e coreanos exilados. Sua mãe, Kim Lok-suk, ativista comunista, morreu de parto em 1949. Kim Il-sung foi apontado pelos soviéticos em 1945 para a presidência do Comitê Popular Provisório da Coreia, e depois disso liderou a Coreia do Norte por 46 anos. Kim Jong-il sucedeu o pai em 1994. Conhecido como "Querido Líder", comandava um regime comunista dinástico impiedoso, armado com bombas nucleares. O ditador morto era infame por seu amor ao conhaque. Era o maior cliente mundial da Hennessy. Usava óculos grandes e de lentes escuras, salto alto e um penteado com topete. George W. Bush o chamou de "pigmeu". Seu filho mais velho, e herdeiro presuntivo, foi exilado para Macau, na China, depois de ser detido tentando entrar no Japão com passaporte falso, a caminho da Disney World de Tóquio. A sucessão por seu terceiro filho, Kim Jong-un, um jovem na casa dos 30 anos e com apenas um ano de treinamento no governo, é vista com medo e apreensão pelos vizinhos da Coreia do Norte e em Washington. A Coreia do Norte só tem um aliado, a China. Os riscos são evidentes. Vaclav Havel também morreu. Mas era um homem de espécie muito diferente. Dramaturgo na Tchecoslováquia da era comunista, jamais foi agente da ditadura, e sim seu maior inimigo. Tratado como "inimigo de classe" depois da tomada do poder em seu país pelos comunistas, Vaclav Havel se viu forçado a deixar a escola aos 15 anos e não pôde se matricular na universidade. Mas suas peças ofereciam crítica vigorosa e irônica aos anos sombrios da repressão. Aprisionado depois que tanques russos esmagaram a Primavera de Praga, em 1968, ele foi um dos fundadores do grupo Carta 77 e, em 1989, liderou as demonstrações de massa pacíficas da Revolução de Veludo, que puseram fim ao domínio comunista. Havel se tornou presidente da Tchecoslováquia, promoveu uma reaproximação com a Alemanha e comandou o "divórcio de veludo" entre a República Tcheca e a Eslováquia. Não foram tarefas fáceis para ele. No entanto, nos tempos sombrios em que vivemos, a escala e a força moral dessas realizações costumam ser esquecidas. A Europa se reintegrou. E boa parte do crédito por isso cabe a Havel, que praticou aquilo que definia como "a arte do impossível, ou seja, a arte de melhorar a nós mesmos e ao mundo". Um legado muito superior ao de Kim Jong-il.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O discurso de Bento XVI aos novos embaixadores junto à Santa Sé

[normal] [medium] [big] ZP11121505 - 15-12-2011 Permalink: http://www.zenit.org/article-29386?l=portuguese A interdependência entre os povos não é uma ameaça CIDADE DO VATICANO, quinta-feira 15 dezembro, 2011 (ZENIT.org) - "A unidade da família humana é agora vista como um fato." O afirmou o Papa Bento XVI durante o seu discurso, pronunciado em francês, durante a audiência com os onze embaixadores junto à Santa Sé, por ocasião da apresentação das suas cartas credenciais. Bento XVI referiu-se, em particular, "aos meios de comunicação social que conectam todas as partes do mundo entre si", aos "transportes que facilitam os intercâmbios humanos", às "relações comerciais que fazem as economias interdependentes", aos desafios relativos ao ambiente e fluxos migratórios. Todos esses fenômenos nos fazem ver como a humanidade tem "um destino comum", disse o Pontífice. Porém, "diante dos aspectos positivos", a toma de consciência de tudo o que é percebido por muitos como "um fardo". No entanto, o Santo Padre recordou que "o olhar da própria humanidade sobre si mesma deve evoluir no sentido de descobrir nesta interdependência, não uma ameaça, mas um benefício: Os homens que trabalham uns com os outros e uns para os outros". Uma vez que todos nós somos "responsáveis por tudo", torna-se importante "ter uma concepção positiva da solidariedade", por meio da qual pode ser realizado o "desenvolvimento humano integral que permite a humanidade alcançar a sua realização." A solidariedade que o Papa falou é, em primeiro lugar, uma solidariedade "entre as gerações" que "está enraizada na família que deve ser mantida, para continuar a cumprir sua missão na sociedade." Outro instrumento privilegiado para a promoção da solidariedade é "a educação da juventude"; a este respeito é essencial que os governos "invistam os recursos necessários para dar aos jovens as bases éticas fundamentais" para ajudá-los a lutar contra os "males sociais" do nosso tempo: "o desemprego, as drogas, a criminalidade e o desrespeito da pessoa." Bento XVI também destacou que o "pluralismo cultural e religioso não se opõem à busca comum do bem, do Belo e do verdadeiro". A Igreja, portanto, "sustentada pela luz da Revelação," encoraja as pessoas "a confiarem na razão que, se purificada pela fé" é capaz de elevá-los e de colocá-los em busca insondável do mistério. Os "novos desafios", portanto, apelam para a "mobilização das inteligências e da criatividade do homem para lutar contra a pobreza e para um uso eficaz e saudável das energias e dos recursos disponíveis." Outra questão levantada pelo Santo Padre é o da "responsabilidade de todos", para que sejam garantidos "o respeito e a promoção da dignidade humana". O "primado do espírito", então, não é uma prerrogativa exclusiva das religiões, mas também deve ser incentivado pelas autoridades estaduais, obrigadas a colocar "políticas culturais que incentivem o acesso de qualquer um aos bens do espírito”, sem desencorajar nunca o homem do “buscar livremente a sua calma espiritual".

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

No Enem, a saudação ao Duce

10 de novembro de 2011 Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br - O Estado de S.Paulo Questão do Enem, 2001: "A Lei 9.491, de 9 de setembro de 1997, criou o Programa Nacional de Desestatização, que reordena a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público . A referida lei representa um avanço não só para a economia nacional, mas também para a sociedade brasileira, porque (...)". Resposta, segundo o gabarito: "amplia os investimentos produtivos e a riqueza geral da nação". A questão acima é uma invenção minha: nunca foi proposta num Enem. Mas o que diria Fernando Haddad se, no governo FHC, o MEC a tivesse inserido num exame nacional que decide o futuro universitário de milhões de estudantes brasileiros? Desconfio que, coberto de razão, ele classificaria a prova como um gesto de covardia autoritária pelo qual os candidatos seriam forçados a se curvar à doutrina política do poder de turno, repetindo compulsoriamente o credo expresso no site do Planalto sob pena de exclusão do ensino superior. Pois o atual ocupante do MEC acaba de produzir um gesto assim, indigno de uma nação democrática, na mais recente edição do Enem. Eis o texto da questão: "A Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003, inclui no currículo dos estabelecimentos de ensino (...) a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira e determina que o conteúdo programático incluirá o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil (...) . A referida lei representa um avanço não só para a educação nacional, mas também para a sociedade brasileira, porque (...)". Resposta, segundo o gabarito: "impulsiona o reconhecimento da pluralidade étnico-racial do país". Sob Haddad, o Enem converteu-se em campo de reeducação ideológica para jovens. Diante disso, pouco significam os sucessivos espetáculos de incompetência gerencial que o atormentam. A lei que os candidatos estão obrigados a celebrar não é uma ferramenta de combate ao preconceito racial, mas a condensação da doutrina racialista. Seu pressuposto é a divisão da humanidade em raças. Segundo ela, as pessoas não são indivíduos mas componentes de "famílias raciais" definidas por ancestralidades supostas e involucradas em culturas singulares. As escolas, prega a lei, devem ensinar uma história particular do "povo negro" (por oposição implícita ao "povo branco"). Desde a mais tenra idade, os estudantes aprenderiam a enxergar a si mesmos como participantes de uma comunidade racial. O gabarito da questão está errado e inexiste resposta correta entre as alternativas apresentadas no exame. Mas a resposta certa, segundo o próprio MEC, consta de um parecer do Conselho Nacional de Educação no qual se explica que a lei "deve orientar para (...) o esclarecimento de equívocos quanto a uma identidade humana universal". Tal resposta não aparece entre as alternativas, pois ela explicitaria a insolúvel contradição entre a lei da educação racial e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que repousa sobre a afirmação da realidade de "uma identidade humana universal". O contrato constitucional das democracias está amparado no princípio da pluralidade. O princípio significa que não se reconhece doutrina ou ideologia oficialmente verdadeira, à qual a nação deveria fidelidade ou obediência. Dele se extrai um corolário: o sistema de ensino não pode promover catequese ideológica. Escolas, livros didáticos e exames vestibulares não têm o direito de doutrinar - isto é, de atribuir estatuto de verdade científica ao que não passa de um ponto de vista político. Haddad evidencia no Enem a sua visceral aversão ao princípio da pluralidade. Ele é ministro num Estado democrático, mas sonha ser comissário de um Estado totalitário. A questão escandalosa não é um raio no céu claro. Nos últimos anos, enquanto se metamorfoseava em vestibular nacional, o Enem converteu-se num pátio de folguedos da pedagogia da doutrinação. O desfile de catecismos ideológicos abrange, ao lado de versões cômicas de um marxismo primitivo, constrangedores panfletos do ambientalismo apocalíptico e manifestos rudimentares do multiculturalismo pós-moderno. Os exames, especialmente suas seções de ciências humanas, parecem emanar de um acordo de partilha territorial firmado entre os arautos acadêmicos do cortejo de ONGs e "movimentos populares" associados ao governo. Contudo, mesmo sobre esse deplorável pano de fundo, exigir que milhões de jovens estudantes repitam como autômatos as sílabas, palavras e frases escritas pelo Palácio do Planalto equivale a ultrapassar a fronteira da obscenidade. Meu avô materno, um antifascista perseguido pelo regime de Mussolini, deixou a Itália com a esposa e dois filhos pequenos na hora da eclosão da guerra mundial. No Brasil, beneficiando-se de uma bolsa de estudos baseada no mérito, minha mãe pôde ser matriculada no prestigioso Dante Alighieri, que era um colégio da comunidade italiana de São Paulo. Por uma dessas amargas ironias, durante dois anos, até a declaração brasileira de guerra ao Eixo, ela tinha a obrigação, compartilhada com todos os colegas, de fazer a saudação ao Duce à entrada da escola. A exposição a desenhos animados violentos não transforma crianças em adultos assassinos. A rotina da saudação diária a Mussolini em nada reduziu o desprezo devotado por minha mãe ao fascismo. Os estudantes não aderirão ao credo identitário do racialismo por serem compelidos a pagar pedágio à verdade ideológica oficial no Enem. Mas a democracia brasileira fica um pouco menor quando o ministro da Educação veste a fantasia do Duce.

Fundamentalismo ateu

Ives Gandra da Silva Martins Além dos avanços na ciência feitos por sacerdotes, a Igreja ofereceu ao mundo moderno o seu maior instrumento de cultura, ou seja, a universidade Voltávamos, Francisco Rezek e eu, de uma posse acadêmica em Belo Horizonte quando ele utilizou a expressão "fundamentalismo ateu" para se referir ao ataque orquestrado aos valores das grandes religiões que vivemos na atualidade. Lembro-me de conversa telefônica que tive com meu saudoso e querido amigo Octavio Frias, quando discutíamos um editorial que estava para ser publicado sobre encíclica do papa João Paulo 2º, do qual discordava quanto a alguns temas. Argumentei que a encíclica era destinada aos católicos e que quem não o era não deveria se preocupar. Com inteligência, perspicácia e bom senso, Frias manteve o editorial, mas acrescentou a observação de que o papa, embora cuidando de temas universais, dirigia-se fundamentalmente aos de fé cristã. Quando fui sustentar, pela CNBB, perante o STF, a inconstitucionalidade da destruição de embriões para fins de pesquisa científica -pois são seres humanos, já que a vida começa na concepção-, antes da sustentação fui hostilizado, a pretexto de que a Igreja Católica seria contrária à ciência e que iria falar de religião, não de ciência e direito. Fui obrigado a começar a sustentação informando que a Academia de Ciências do Vaticano tinha, na ocasião, 29 Prêmios Nobel, enquanto o Brasil até hoje não tem nenhum, razão pela qual só falaria de ciência e direito. Mostrei todo o apoio emprestado pela Academia às experiências com células-tronco adultas, que estavam sendo bem-sucedidas, enquanto havia um fracasso absoluto nas experiências com células-tronco embrionárias. De lá para cá, o sucesso com as experiências utilizando células tronco adultas continuam cada vez mais espetaculares. Já as pesquisas com células embrionárias permanecem em estágio "embrionário". Trago essas reminiscências, de velho advogado provinciano, para demonstrar minha permanente surpresa com todos aqueles que, sem acreditar em Deus, sentem necessidade de atacar permanentemente os que acreditam nos valores próprios das grandes religiões, que, como diz Toynbee em seu "Estudo da História", terminaram por conformar as grandes civilizações. Por outro lado, Thomas E. Woods Jr., em seu livro "Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental", demonstra que, além dos fantásticos avanços na ciência feitos por sacerdotes cientistas, a Igreja ofereceu ao mundo moderno o seu maior instrumento de cultura e educação, ou seja, a universidade. Aos que direcionam essa guerra ateia contra aqueles que vivenciam a fé cristã e cumprem seu papel, nas mais variadas atividades, buscando a construção de um mundo melhor, creio que a expressão do ex-juiz da Corte de Haia é adequada. Só não se assemelham aos "fundamentalistas" do Oriente Médio porque não há terroristas entre eles. Num Estado, o respeito às crenças e aos valores de todos os segmentos da sociedade é a prova de maturidade democrática, como, aliás, o constituinte colocou no artigo 3º, inciso IV, da nossa Constituição Federal, ao proibir qualquer espécie de discriminação. ________________________________________ IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 76, advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra, é presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Quinhentos anos de direitos humanos

ZP11120103 - 01-12-2011 Permalink: http://www.zenit.org/article-29313?l=portuguese Comemoração do discurso histórico de Montesinos MADRI, quinta-feira, 1º de dezembro de 2011 (ZENIT.org) - No próximo dia 21 será comemorado o 500º aniversário da homilia histórica do frade dominicano Antón Montesino (ou Antón de Montesinos) na ilha caribenha de Hispaniola. No sermão, ele denunciou a exploração dos nativos e reivindicou a sua dignidade como filhos e filhas de Deus. Era o quarto domingo do Advento, 21 de dezembro de 1511, quando Montesinos fez o sermão na ilha que hoje é dividida entre o Haiti e a República Dominicana, em nome da comunidade dominicana que chegara um ano antes, conforme recordou Frei Iván Calvo Alonso, OP, em conversa com ZENIT. O sermão denunciou a situação de exploração a que tinham sido submetidos os habitantes daquelas terras. Os dominicanos, disse Calvo Alonso, "foram profetas" e incorporaram a figura do Bom Samaritano. "Eles ouviram o clamor dos índios maltratados, ficaram horrorizados com o sofrimento dos inocentes e falaram em nome de Deus: com que direito e com que justiça esses índios são mantidos em servidão tão cruel e horrível? Acaso eles não são homens?". A denúncia sacudiu a consciência das autoridades espanholas, que responderam promulgando as "Leis de Burgos" (1512) e as "Leis de Valladolid" (1513), para melhorar as condições dos nativos. Não sendo suficiente, a Igreja continuou a defesa da dignidade de homens e mulheres daquelas terras. "O sermão e o papel desses primeiros monges têm um lugar importante na história dos direitos humanos", reiterou Frei Calvo Alonso. Para relembrar o evento histórico, a Ordem dos Pregadores (OP) organizou uma série de congressos, conferências e celebrações em todo o mundo. O evento principal acontecerá em Madri no dia 21 de dezembro, na "Casa de América", com presença do Mestre da Ordem, Frei Bruno Cadoré, além de José Antonio Pastor Ridruejo, professor de direito e especialista em direitos humanos, e do filósofo Mate Reyes. Haverá ainda uma representação da peça As primeiras notícias do desastre, do famoso dramaturgo espanhol Juan Mayorga. O evento será organizado pelo Conselho Ibérico das Províncias Dominicanas da Espanha, juntamente com a "Casa de América". No dia seguinte, 22 de dezembro, o Mestre dos dominicanos presidirá as Vésperas na Basílica de Atocha, em Madri. Ainda por ocasião do centenário, o último Capítulo Geral dos Dominicanos, realizado em Roma, pediu que no IV Domingo do Advento de 2011, ou 18 de dezembro próximo, o sermão histórico seja lido em todas as igrejas da ordem. Os dominicanos dizem que este evento "merece ser conhecido" porque representa o "embrião" da Declaração dos Direitos Humanos, e por isso eles prepararam um especial sobre Montesinos e seu sermão, incluindo material biográfico e informações sobre Pedro de Córdoba e a primeira comunidade dominicana. O material contém o texto completo do sermão, tal como conservado por Frei Bartolomé de las Casas. No especial, há também material de reflexão e estudo, com testemunhos de membros da família dominicana em todo o mundo sobre a intenção de continuar vivendo o espírito dos primeiros dominicanos da Nova América "com um trabalho silencioso em defesa da dignidade humana", dizem os organizadores. O especial está disponível em: www.dominicos.org/500-sermon-montesino

Farc recorria à bruxaria para "bloquear" operações contrárias à guerrilha

De acordo com o jornal colombiano El Tiempo (30/9/2011), uma investigação revelou que os guerrilheiros marxistas da Frente 29 das Farc utilizavam a prática da bruxaria para tentar barrar as atividades das forças públicas contrárias ao movimento. Entre os 12 guerrilheiros capturados, em uma operação da Inteligência colombiana no departamento de Cauca, estava uma mulher misteriosa com um olhar desconfiado e grandes brincos na orelha. Tratava-se de Clara Maria Fernandez, uma bruxa que costumava atender seus clientes em um cybercafé na capital de Cauca, Popayán. Uma investigação policial havia revelado que Clara Maria tinha um estranho cliente. Via telefone, ela fornecia, à Frente 29 das Farc, seus relatórios sobre as bruxarias que realizava, a pedido dos guerrilheiros, contra o chefe de Polícia, o general Óscar Naranjo - atual vicepresidente da interpol, e o comandante de Cauca, o coronel Carlos Rodriguez. O objetivo era deter as operações anti-Farc. A bruxa também fazia "trabalhos" para auxiliar a concretização de negócios do tráfico de drogas. Segundo os investigadores, há um ano e meio as Farc tinham contratado a bruxa para prever o futuro e prevenir a guerrilha contra as operações nessa região. "Ela lhes dizia: 'Troquem de lugar porque vão fazer uma operação, vejo coisas obscuras, movimentos que podem vos prejudicar", contou um oficial que participou das investigações. Em setembro último, as Farc pediram á bruxa, de 33 anos, que fizesse um "trabalho" contra o general Naranjo para mudar o destino de uma operação que estava em andamento. Em quase todos os casos, quando ela os advertia sobre as supostas operações, não havia nenhum registro de atividade das forças de segurança contra esse grupo. Parafraseando Bertrand Quinquet, quando a chama da Fé se apaga, a lâmpada da superstição se reanima. *** Fonte: http://www.eltiempo.com/justicia/ARTICULO-WEB-NEW_NOTA_INTERIOR-10475686.html

sábado, 26 de novembro de 2011

Trecho de Guia Politicamente Incorreto da América Latina, de Leandro Narloch e Duda Teixeira

Como deixar de ser latino-americano Foram os franceses os primeiros a usar a expressão “América Latina”. Por volta de 1860, o imperador Napoleão III tentava aumentar sua influência no México, na época um país tumultuado por revoltas e guerras entre políticos liberais e conservadores. Um bom jeito de aproximar culturalmente os dois países era destacando o que eles tinham em comum, como a mesma origem do idioma. Tanto o francês quanto o espanhol e o português são línguas derivadas do latim – essa semelhança não só deixava a influência francesa mais natural como isolava os imperialistas britânicos e seu idioma anglo-saxão.1 “América Latina” se tornou assim uma ideia tão vazia quanto abrangente. Reúne sujeitos e povos dos mais diversos: o que há em comum entre ribeirinhos amazônicos, vaqueiros gaúchos, executivos da Cidade do México, índios das ilhas flutuantes do lago Titicaca e haitianos praticantes de vodu? Eles falam línguas derivadas do latim, mas... e daí? Colocar todos em um mesmo saco não seria o mesmo que igualar sujeitos tão diferentes quanto um xeque radical egípcio, um fazendeiro branco da África do Sul e um pigmeu do Congo? São todos africanos, é certo, mas pouca gente fala em uma única identidade para a África. Talvez a principal semelhança entre os latino-americanos não seja algo que venha de nossos longínquos antepassados, como a língua, e sim em um traço recente, forjado lentamente ao longo de séculos. Bolivianos, mexicanos, brasileiros e todos os demais, quando vislumbram o próprio passado, contam exatamente a mesma história. É como se ingredientes de sabores, cores e tamanhos diferentes entrassem todos numa grande batedeira para criar uma massa homogênea; e é como se essa massa fosse recortada por um mesmo molde de biscoito, dando origem a seres graciosos com o mesmo formato e o mesmo discurso. Tão parecidas são suas narrativas, e tão importante é a história para a identidade de um povo, que é possível tirar dessa massa algumas regras para ser um típico habitante da nossa região. Na receita para se preparar um bom latino-americano, parece ser necessário: 1. Lamentar. Todo latino-americano nutre uma obsessão por episódios tristes de sua história: o massacre dos índios, os horrores da escravidão, a violência das ditaduras. Além dessas histórias de opressão, nada de bom aconteceu. 2. Encarar a cultura local como uma forma de resistência. Fica proibido ligar na tomada instrumentos musicais típicos e populares e passa a ser um requisito moral usar ponchos e saias coloridas – ou pelo menos desfilar com um colar de artesanato indígena. 3. Condenar o capitalismo. O latino-americano que honra o nome acredita que o comunismo foi uma ideia boa, só que mal implantada. E, se já não luta para implantar esse falido modelo por aqui, ao menos defende sistemas mais “sociais”, “solidários”, “justos” e “comunitários”. 4. Denunciar a dominação externa. Se a responsabilidade pelos problemas do continente não pode ser atribuída à Espanha, à França ou a Portugal, então certamente tem alguma mão da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Ou, como prega o livro As Veias Abertas da América Latina, clássico desse pensamento simplista, “a cada país dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento”. 5. Cultuar heróis perversos. Quanto mais bobagens eles falarem e quanto mais sabotarem seu próprio país, mais estátuas equestres e estampas em camisetas serão feitas em sua homenagem. Tudo neste livro é contra essas regras tão batidas para se contar a história da América Latina. Não nos sentimos representados por guerrilheiros ou por indignados líderes andinos e suas roupas coloridas. Não há aqui destaque para veias abertas do continente, mas para feridas devidamente tratadas e curadas com a ajuda de grandes potências. Conhecemos bem as tragédias que nossos antepassados índios e negros sofreram, mas, honestamente, estamos cansados de falar sobre elas. E acreditamos que todos os povos passaram por desgraças semelhantes, inclusive aqueles que muitos de nós adoramos acusar. Por isso, quando vítimas da história aparecerem nesta obra, é para revelarmos que elas também mataram e escravizaram – e como elas se beneficiaram com ideias e costumes vindos de fora. Figuras ilustres da América Latina também passam neste livro, mas longe de nós mostrar somente que elas não são tão admiráveis quanto se diz. Na história de quase todo país, é comum abrilhantar as palavras de figuras públicas e até inventar virtudes de seu caráter – e não passa de chatice ficar insistindo numa realidade menos interessante. Acontece que na América Latina se vai além: escolhem-se como heróis justamente os homens que mais atrapalharam a política, mais arruinaram a economia, mais perseguiram os cidadãos. Não importam as tragédias que Salvador Allende, Che Guevara e Juan Perón tenham tornado possíveis. Importantes são o carisma, o rosto fotogênico, a morte trágica, os discursos inflamados contra estrangeiros. Por isso, não há como escapar: é ele, o falso herói latino-americano, o principal alvo deste livro. Nota: 1 John Charles Chasteen, Born in Blood & and Fire: A Concise History of Latin America, W. W. Norton & Company, 2011, página 156.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Empenho social e Doutrina Social

[normal] [medium] [big] ZP11111201 - 12-11-2011 Permalink: http://www.zenit.org/article-29216?l=portuguese Qual é a relação que existe entre a Verdade e a prática da caridade? de Mons. Giampaolo Crepaldi ROMA, sábado, 12 de novembro, 2011 (ZENIT.org) - Gostaria de chamar a atenção sobre um aspecto muito importante do conhecimento e da utilização da Doutrina Social da Igreja e sobre o envolvimento social e político dos católicos. Refiro-me à falta de consciência da dimensão social dos princípios da doutrina cristã. Eu acho que muitos católicos seriamente engajados na sua comunidade sejam certamente capazes de dizer por que a Doutrina Social da Igreja considere mais importante a pessoa do funcionário do que o produto do trabalho, mas talvez não sejam tão capazes de dizer por que o dogma da Trindade seja de fundamental importância também para a construção da cidade terrena, bem como da celestial. O nosso observatório já falou sobre estas questões, que consideramos fundamentais. Por exemplo, no passado nós escrevemos sobre a importância dos documentos da Congregação para a Doutrina da Fé, a fim de um uso correto da Doutrina Social da Igreja. Eu mesmo falei com uma nota publicada seja no nosso site que está no "Boletim da Doutrina Social da Igreja", sobre "A doutrina social da Igreja no contexto da Doutrina Cristã". Dentro dos Relatórios Anuais sobre a Doutrina Social da Igreja no Mundo, publicados pelo nosso Observatório, a análise do Magistério de Bento XVI centra-se sempre sobre estas questões doutrinárias, considerando-as fundamentais para definir corretamente a questão social. Seria uma grave amputação da Doutrina Social da Igreja esquecer esses fundamentos dogmáticos e projetar-se diretamente nas assim chamadas "coisas para fazer". No entanto, talvez, justamente é isso que ocorre, mesmo em escolas e sessões de formação na Doutrina Social da Igreja. Esta atenção para os aspectos dogmáticos e doutrinários e as suas consequências sociais, é também muito importante no discernimento com relação às outras religiões. Se estes são colocados de lado e negligenciados, então acaba que também o católico acredita que todas as religiões sejam igualmente capazes de levar a humanização, a justiça, a paz, o respeito pela pessoa e de estabelecer uma vida social saudável. Se acreditar em um Deus que é três pessoas é o mesmo que acreditar em um Deus que não o é, então não faz diferença para a construção da sociedade ser um cristão ou ser de outra religião monoteísta. Como exemplo, gostaria de trazer aqui o caso do dogma da Trindade, ou seja, no fato de que a Igreja Católica crê num Deus que é apenas uma substância em três pessoas e do monoteísmo, ou seja, na crença em um só Deus. Se seguirmos o pensamento de Joseph Ratzinger, observamos que a Trindade nos diz que originária não é só a unidade, mas também a multiplicidade; que uma pessoa como unidade única não existe porque está sempre dirigida a; que existe, além da substância, o plano da relação, que deve ser considerado um verdadeiro e próprio plano do ser. Da mesma forma como a pessoa é feita à imagem de Deus, também a pessoa vive junto desta unidade e multiplicidade, originariamente e contemporaneamente. Este aspecto dogmático e doutrinal da fé cristã nos diz portanto que não acontece que nós primeiro sejamos aquilo que sejamos e depois nos relacionamos com os outros comunitariamente. A realidade é que o nosso ser individual é por si mesmo aberto à comunhão, é já uma relação dentro de si mesmo e com os outros. Agora, pensemos na sociedade e nos perguntemos: a sociabilidade relacional entre as pessoas se reforça mais por meio de uma semelhante religião ou por meio de uma religião na qual Deus é só unidade e não multiplicidade? Eu diria que a resposta é bastante evidente. Uma sociedade tem maiores possibilidades de que seja coesa e unida partindo daquela concepção religiosa, mais do que da outra. Um Deus que seja também Trinitário não é menos Uno, mas sim é mais Uno, porque aqui se trata da unidade do Espírito, que é absolutamente mais profunda justamente porque tal. Dois esposos, ainda que distantes fisicamente entre eles, estão infinitamente mais unidos do que duas pedras juntas uma da outra. Na comunhão espiritual é possível unir-se ao outro sem renunciar de ser si mesmo, e mais, tornando-se maiormente si mesmo na medida que se une ao outro. Estas simples observações tomadas da nossa experiência quotidiana nos fazem compreender que um Deus em Três pessoas é mais Uno e fornece à sociedade um exemplo de íntima e profunda unidade relacional que a sociedade, nos seus níveis infinitamente inferiores, experimenta no matrimônio, na família, na comunhão de um grupo, de uma nação e na inteira comunidade universal vista como uma só família. O monoteísmo, em quanto tal, trouxe grandes benefícios à sociedade, mas nem todos os monoteístas são iguais. O monoteísmo trinitário é capaz de trazer benefícios ainda maiores. Aqui não é o lugar para examinar outros dogmas da religião católica, basta um exemplo. A encarnação, a epifania, a morte na Cruz, a Ressurreição, Pentecostes, a Vida Eterna, o Juízo Final ... são aspectos dogmáticos e doutrinais que são de fundamental importância para a organização deste mundo e para a doutrina social da Igreja . Abrir um lugar para Deus no mundo, diz Bento XVI, requer evitar negligenciar este elo fundamental entre os aspectos dogmáticos e a construção da cidade terrena. Em outras palavras, não deve ser esquecido, mas estudado e aprofundado o primeiro capítulo do Compêndio da Doutrina Social da Igreja. * Arcebispo de Trieste

domingo, 6 de novembro de 2011

Para uma reforma do sistema financeiro e monetário internacional na perspectiva de uma autoridade pública de competência universal

NOTA DO PONTIFÍCIO CONSELHO «JUSTIÇA E PAZ» Prefácio «A situação actual do mundo exige uma acção de conjunto a partir de uma visão clara de todos os aspectos económicos, sociais, culturais e espirituais. Perita em humanidade, a Igreja, sem pretender de modo algum ingerir na política dos Estados, “tem apenas um fim em vista: continuar, sob o impulso do Espírito consolador, a obra própria de Cristo, vindo ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar, não para condenar, para servir, não para ser servido”».(1) Com estas palavras Paulo VI, na profética e sempre actual Carta encíclica Populorum progressio, de 1967, traçava de maneira límpida «as trajectórias» da íntima relação da Igreja com o mundo: trajectórias que se entrelaçam no profundo valor da dignidade do homem e na busca do bem comum, e que também tornam os povos responsáveis e livres de agir em conformidade com as suas mais elevadas aspirações. A crise económica e financeira que o mundo está a atravessar interpela todos, pessoas e povos, a um profundo discernimento dos princípios e dos valores culturais e morais que estão na base da convivência social. Mas não só. A crise empenha os agentes privados e as autoridades públicas competentes nos planos nacional, regional e internacional, numa séria reflexão sobre as causas e soluções de natureza política, económica e técnica. Nesta perspectiva a crise, como ensina Bento XVI, «obriga-nos a projectar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e a encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em experiências positivas e rejeitar as negativas. Assim, a crise torna-se ocasião de discernimento e de nova projectação. Com esta chave, mais confiante do que resignada, convém enfrentar as dificuldades da hora actual».(2) Os próprios líderes do G20, no Statement adoptado em Pittsburgh em 2009, afirmaram que «the economic crisis demonstrates the importance of ushering in a new era of sustainable global economic activity grounded in responsibility».(3) Acolhendo o apelo do Santo Padre e, ao mesmo tempo, fazendo próprias as preocupações dos povos — sobretudo daqueles que mais padecem o preço da situação contemporânea — o Pontifício Conselho «Justiça e Paz», no respeito pelas competências das autoridades civis e políticas, tenciona propor e compartilhar a própria reflexão: «Para uma reforma do sistema financeiro e monetário internacional na perspectiva de uma autoridade pública com competência universal». Esta reflexão deseja ser uma contribuição para os responsáveis da terra e para todos os homens de boa vontade; um gesto de responsabilidade não apenas em relação às gerações presentes, mas sobretudo às futuras; a fim de que nunca se perca a esperança de um porvir melhor, nem a confiança na dignidade e na capacidade de bem da pessoa humana. Cada pessoa individualmente, cada comunidade de pessoas, é partícipe e responsável pela promoção do bem comum. Fiéis à sua vocação de natureza ética e religiosa, as comunidades de crentes devem ser as primeiras a interrogar-se a respeito da idoneidade dos meios de que a família humana dispõe em vista da realização do bem comum mundial. A Igreja, por sua vez, é chamada a estimular em todos, indistintamente, «aquele imenso esforço com que os homens, ao longo dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde[ndo deste modo] à vontade de Deus».(4) 1. Desenvolvimento económico e desigualdades A grave crise económica e financeira, que hoje o mundo está a atravessar, encontra a sua origem em múltiplas causas. Sobre a pluralidade e sobre a importância destas causas persistem diversas opiniões: alguns sublinham, antes de tudo, os erros ínsitos nas políticas económicas e financeiras; outros insistem sobre as debilidades estruturais das instituições políticas, económicas e financeiras; outros ainda, atribuem-nas a cedências de natureza ética, ocorridas a todos os níveis, no contexto de uma economia mundial cada vez mais dominada pelo utilitarismo e pelo materialismo. Nos diversos estádios de desenvolvimento da crise releva-se sempre uma combinação de erros técnicos e de responsabilidades morais. No caso de intercâmbio de bens materiais e de serviços, são a natureza e a capacidade produtiva, o trabalho em todas as suas múltiplas formas, que põem um limite às quantidades, determinando um conjunto de custos e de preços que permite, sob determinadas condições, uma distribuição eficiente dos recursos disponíveis. Mas em matéria monetária e financeira, as dinâmicas são diferentes. Nas últimas décadas foram os bancos que ampliaram o crédito, o qual gerou moeda, que por sua vez solicitou uma ulterior expansão do crédito. Desta maneira, o sistema económico foi impelido rumo a uma espiral de inflação que, inevitavelmente, encontrou um limite no risco sustentável para os institutos de crédito, submetidos a um ulterior perigo de falência, com consequências negativas para todo o sistema económico e financeiro. Depois da segunda guerra mundial, as economias nacionais progrediram, apesar de sacrifícios enormes para milhões, aliás para biliões de pessoas que tinham despositado a própria confiança, com o seu comportamento de produtores e empresários por um lado e, por outro, de poupadores e consumidores, num progressivo e regular desenvolvimento da moeda e das finanças, em sintonia com as potencialidades de crescimento real da economia. A partir dos anos 90 do século passado releva-se, ao contrário, como a moeda e os títulos de crédito a nível global aumentaram em medida muito mais rápida do que a produção da renda, também com os preços aplicados. Daqui derivou a formação de bolsas excessivas de liquidez e de bolhas especulativas que depois se transformaram numa série de crises de solvibilidade e de confiança que se propagaram e se sucederam ao longo dos anos. Uma primeira crise verificou-se nos anos 70, até ao início dos anos 80, e era relativa aos preços do petróleo. Em seguida, ocorreu uma série de crises em vários países em vias de desenvolvimento. Pensemos na primeira crise do México, nos anos 80, ou então naquelas do Brasil, da Rússia e da Coreia, e sucessivamente de novo do México nos anos 90, da Tailândia e da Argentina. A bolha especulativa sobre os imóveis e a recente crise financeira têm a mesma origem no excessivo acúmulo de moeda e de instrumentos financeiros a nível global. Enquanto as crises nos países em vias de desenvolvimento, que correram o risco de envolver o sistema monetário e financeiro global, foram contidas com formas de intervenção da parte dos países mais desenvolvidos, a crise que estourou em 2008 foi caracterizada por um factor decisivo e explosivo em relação às precedentes. Ela foi gerada no contexto dos Estados Unidos, uma das áreas mais relevantes para a economia e as finanças mundiais, envolvendo a moeda da qual depende ainda hoje a esmagadora maioria dos câmbios internacionais. Uma orientação de cunho liberalista — hesitante em relação a intervenções públicas nos mercados — fez propender para a falência de um importante instituto financeiro internacional, imaginando deste modo limitar a crise e os seus efeitos. Infelizmente, daqui derivou uma propagação de desconfiança que impeliu a mudar repentinamente atitude, solicitando intervenções públicas sob várias formas, de alcance enorme (mais de 20% do produto nacional), com a finalidade de deter os efeitos negativos que teriam arrasado todo o sistema financeiro internacional. As consequências sobre a chamada «economia real», passando através das graves dificuldades de alguns sectores – em primeiro lugar, da construção civil – e através do difundir-se de expectativas desfavoráveis, geraram uma tendência negativa da produção e do comércio internacional, com graves reflexos sobre o emprego, e com efeitos que, provavelmente, ainda terá novas repercussões. Os custos para milhões, aliás biliões de pessoas, nos países desenvolvidos mas principalmente naqueles em vias de desenvolvimento, são relevantes. Em países e áreas onde ainda faltam os bens mais elementares da saúde, da alimentação e do abrigo contra as intempéries, mais de um bilião de pessoas são obrigadas a sobreviver com uma renda média de pouco mais de um dólar por dia. O bem-estar económico global, medido em primeiro lugar pela produção da renda e também pela difusão das capabilities, aumentou no decurso da segunda metade do século XX, numa medida e com uma rapidez nunca vistas na história do género humano. Mas também aumentaram enormemente as desigualdades no interior dos vários países e entre eles. Enquanto alguns países e áreas económicas, as mais industrializadas e desenvolvidas, viram crescer de maneira notável a produção da renda, outros países foram efectivamente excluídos do melhoramento generalizado da economia, e até chegaram a agravar a sua situação. Os perigos de um estado de desenvolvimento económico, concebido em termos liberalistas, foram lúcida e profeticamente denunciados por Paulo VI — pelas consequências nefastas sobre os equilíbrios mundiais e sobre a paz — já em 1967, depois do Concílio Vaticano II, com a encíclica Populorum progressio. O Sumo Pontífice indicou como condições imprescindíveis, para a promoção de um desenvolvimento autêntico, a defesa da vida e a promoção do crescimento cultural e moral das pessoas. Em tais fundamentos, afirmava Paulo VI, o desenvolvimento plenário e planetário «é o novo nome da paz».(5) Quarenta anos mais tarde, em 2007, o Fundo Monetário Internacional reconheceu, no seu Relatório anual, por um lado a estreita conexão entre um processo de globalização não adequadamente governado e, por outro, as acentuadas desigualdades a nível mundial.(6) Hoje, os modernos meios de comunicação tornam evidentes a todos os povos, ricos e pobres, as desigualdades económicas, sociais e culturais, que se determinaram no plano global, gerando tensões e imponentes movimentos migratórios. Todavia, é necessário reiterar que o processo de globalização, com os seus aspectos positivos, está na base do grande desenvolvimento da economia mundial do século XX. Vale a pena recordar que entre 1900 e 2000 a população mundial quase quadruplicou, e que a riqueza produzida a nível mundial aumentou em medida muito mais rápida, de tal forma que a renda média pro capite aumentou em grande medida. Porém, ao mesmo tempo, não aumentou a distribuição equitativa da riqueza mas, ao contrário, em muitos casos ela diminuiu. Mas o que impeliu o mundo para esta direcção, extremamente problemática também para a paz? Antes de tudo, um liberalismo económico sem regras e incontrolado. Trata-se de uma ideologia, de uma forma de «apriorismo económico», que pretende tirar da teoria as leis de funcionamento do mercado e as chamadas leis do desenvolvimento capitalista, exasperando alguns dos seus aspectos. Uma ideologia económica que estabeleça a priori as leis de funcionamento do mercado e do desenvolvimento económico, sem se confrontar com a realidade, corre o risco de se tornar um instrumento subordinado aos interesses dos países que gozam efectivamente de uma posição de vantagem económica e financeira. Regras e controles, mesmo se de modo imperfeito, estão muitas vezes presentes nos planos nacional e regional; todavia, a nível internacional, tais regras e controles dificilmente se realizam e consolidam. Na base das desigualdades e das distorções do desenvolvimento capitalista existe, em grande parte, para além da ideologia do liberalismo económico, também a ideologia utilitarista, ou seja, aquele delineamento teórico-prático pelo qual: «O útil pessoal conduz ao bem da comunidade». Há que observar que uma semelhante «máxima» contém uma alma de verdade, mas não se pode ignorar que nem sempre o útil individual, embora seja legítimo, favorece o bem comum. Em diversos casos é necessário um espírito de solidariedade que transcenda o útil pessoal, para o bem da comunidade. Nos anos 20 do século passado, alguns economistas já tinham advertido contra a concessão de créditos excessivos, na ausência de regras e controles, e contra aquelas teorias que hoje se tornaram ideologias e práticas predominantes a nível internacional. Um efeito devastador destas ideologias, principalmente nas últimas décadas do século passado e nos primeiros anos deste novo século, foi a explosão da crise na qual o mundo ainda agora se encontra mergulhado. Na sua encíclica social, Bento XVI identificou de maneira específica a raiz de uma crise, que não é unicamente de natureza económica e financeira, mas antes de tudo de natureza moral e ideológica. Com efeito, a economia — observa o Pontífice — tem necessidade da ética para o seu funcionamento correcto, e não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa.(7) Além disso, ele denunciou o papel desempenhado pelo utilitarismo e pelo individualismo, assim como as responsabilidades de quantos os assumiram e difundiram como parâmetro para o comportamento exemplar daqueles — agentes económicos e políticos — que agem e interagem no contexto social. Mas Bento XVI identificou e denunciou também uma nova ideologia, a ideologia da tecnocracia. 2. O papel da técnica e o desafio ético O grande desenvolvimento económico e social do século passado, certamente com as suas luzes mas também com os seus graves cones de sombra, é devido também ao desenvolvimento constante da técnica e, ao longo das décadas mais recentes, aos progressos da informática e às suas aplicações, à economia e em primeiro lugar às finanças. Mas, para interpretar com lucidez a actual nova questão social, é sem dúvida necessário evitar o erro, também ele filho da ideologia neoliberalista, de considerar que os problemas a serem enfrentados são de tipo exclusivamente técnico. Como tais, eles evitariam a necessidade de um discernimento e de uma avaliação de tipo ético. Pois bem, a encíclica de Bento XVI adverte contra os perigos da ideologia da tecnocracia, isto é, daquela absolutização da técnica, que «tende a produzir uma incapacidade de perceber aquilo que não se explica meramente pela matéria»,(8) e a minimizar o valor das escolhas do indivíduo humano concreto que age no sistema económico-financeiro, reduzindo-as a meras variantes técnicas. O fechamento a um «suplemento», entendido como um acréscimo em relação à técnica, não só torna impossível encontrar soluções adequadas para os problemas, mas empobreceria cada vez mais, nos planos material e moral, as principais vítimas da crise. Também no contexto da complexidade dos fenómenos, a relevância dos factores éticos e culturais não pode, portanto, ser descuidada ou subestimada. Com efeito, a crise revelou comportamentos de egoísmo, de avidez colectiva e de açambarcamento de bens em grande escala. Ninguém pode resignar-se a ver o homem como «um lobo para o outro homem», segundo a concepção evidenciada por Hobbes. Ninguém, conscientemente, pode aceitar o desenvolvimento de alguns países em desvantagem de outros. Se não pusermos remédio às várias formas de injustiça, os efeitos negativos que dela derivam nos planos social, político e económico serão destinados a gerar um clima de crescente hostilidade e até de violência, a ponto de minar as próprias bases das instituições democráticas, até daquelas consideradas mais sólidas. Do reconhecimento da primazia do ser sobre o ter, da ética sobre a economia, os povos da terra deveriam assumir, como alma da sua própria acção, uma ética da solidariedade, abandonando todas as formas de egoísmo avarento, abraçando a lógica do bem comum mundial, que transcende o mero interesse contingente e particular. Em última análise, deveriam manter vivo o sentido de pertença à família humana, em nome da dignidade comum de todos os seres humanos: «Ainda antes da lógica da comercialização dos valores equivalentes e das formas de justiça, que lhe são próprias, existe algo que é devido ao homem porque é homem, com base na sua dignidade eminente».(9) Já em 1991, depois da falência do colectivismo marxista, o Beato João Paulo II tinha advertido contra o risco de «uma “idolatria” do mercado, que ignora a existência de bens que, por sua natureza, não são nem podem ser simples mercadoria».(10) Hoje, é necessário acolher sem hesitação a sua advertência e percorrer um caminho mais em sintonia com a dignidade e com a vocação transcendente da pessoa e da família humana. 3. O governo da globalização No caminho rumo à construção de uma família humana mais fraterna e justa e, antes ainda, de um renovado humanismo aberto à transcendência, parece ainda muito actual o ensinamento do Beato João XXIII. Na profética Carta encíclica Pacem in terris, de 1963, ele previa que o mundo se ia encaminhando rumo a uma unificação cada vez maior. Portanto, reconhecia o facto de que, na comunidade humana, faltava uma correspondência entre a organização política, «no plano mundial, e as exigências objectivas do bem comum universal».(11) Por conseguinte, desejava que um dia se pudesse criar «uma Autoridade pública mundial».(12) Face à unificação do mundo, favorecida pelo complexo fenómeno da globalização; perante a importância de garantir, para além dos demais bens colectivos, o bem representado por um sistema económico-financeiro mundial livre, estável e ao serviço da económica real, hoje o ensinamento da Pacem in terris parece ainda mais vital e digno de urgente concretização. O próprio Bento XVI, no sulco traçado pela Pacem in terris, manifestou a necessidade de constituir uma Autoridade política mundial.(13) A necessidade parece evidente, se pensarmos no facto de que a agenda das questões a serem abordadas a nível global se torna constantemente mais ampla. Pensemos, por exemplo, na paz e na segurança; no desarmamento e no controle dos armamentos; na promoção e na tutela dos direitos fundamentais do homem; no governo da economia e nas políticas de desenvolvimento; na gestão dos fluxos migratórios e na segurança alimentar; e na salvaguarda do meio ambiente. Em todos estes âmbitos, é cada vez mais evidente a crescente interdependência entre Estados e regiões do mundo, e a necessidade de respostas, não apenas sectoriais e isoladas, mas sistemáticas e integradas, inspiradas pela solidariedade e pela subsidiariedade, e orientadas para o bem comum universal. Como recorda Bento XVI, se não percorrermos este caminho, também «o direito internacional, não obstante os grandes progressos realizados nos vários campos, correria o risco de ser condicionado pelos equilíbrios de poder entre os mais fortes».(14) A finalidade da Autoridade pública, já recordada por João XXIII na Pacem in terris, consiste antes de tudo em servir o bem comum. Portanto, ela deve dotar-se de estruturas e mecanismos adequados e eficazes, ou seja, à altura da própria missão e das expectativas que nela são depositadas. Isto é particularmente verdadeiro no interior de um mundo globalizado, que torna pessoas e povos cada vez mais interligados e interdependentes, mas que mostra também o peso do egoísmo e dos interesses sectoriais, entre os quais a existência de mercados monetários e financeiros de cunho predominantemente especulativo, prejudiciais para a economia real, de modo especial dos países mais frágeis. É um processo complexo e delicado. De facto, tal autoridade supranacional deve possuir uma delineação realista e ser realizada com gradualidade, com o objectivo de favorecer também a existência de sistemas monetários e financeiros eficientes e eficazes, ou seja, mercados livres e estáveis, disciplinados por um adequado quadro jurídico, funcionais para o desenvolvimento sustentável e para o progresso social de todos, inspirados nos valores da caridade na verdade.(15) Trata-se de uma Autoridade com horizonte planetário, que não pode ser imposta com a força, mas deveria ser expressão de um acordo livre e partilhado, além das exigências permanentes e históricas do bem comum mundial e não fruto de coerção ou de violências. Ela deveria surgir de um processo de amadurecimento progressivo das consciências e das liberdades, e da rectidão de responsabilidades crescentes. Por conseguinte, não podem ser descuidados como supérfluos elementos tais como a confiança recíproca, a autonomia e a participação. O consenso deve dizer respeito a um número cada vez maior de países que aderem de modo convicto, mediante aquele diálogo sincero que não marginaliza, mas sim, valoriza as opiniões minoritárias. A Autoridade mundial deveria, por conseguinte, abranger coerentemente todos os povos, numa colaboração na qual eles são chamados a contribuir com o património das suas virtudes e civilizações. A constituição de uma Autoridade política mundial deveria ser precedida de uma fase preliminar de concertação, da qual emergirá uma instituição legitimada, capaz de oferecer uma guia eficaz e, ao mesmo tempo, de permitir que cada país expresse e persiga o próprio bem particular. O exercício de uma Autoridade como esta, colocada ao serviço do bem de todos e de cada um, será necessariamente super partes, isto é, acima de qualquer visão parcial e de qualquer bem particular, em vista da realização do bem comum. As suas decisões não deverão ser o resultado do pré-poder dos países mais desenvolvidos sobre os países mais débeis. Ao contrário, deverão ser assumidas no interesse de todos, não só em benefício de alguns grupos, quer eles sejam formados por lobby privadas ou por Governos nacionais. Uma instituição supranacional, expressão de uma «comunidade das Nações», não poderá entre outras coisas durar por muito tempo, se as diversidades dos países, a nível das culturas, dos recursos materiais e imateriais, das condições históricas e geográficas não são reconhecidas e plenamente respeitadas. A ausência de consenso convicto, alimentado por uma incessante comunhão moral da comunidade mundial, debilitaria a eficácia da respectiva Autoridade. O que é válido a nível nacional é válido também a nível mundial. A pessoa não é feita para servir incondicionadamente a Autoridade, cuja tarefa é pôr-se ao serviço da própria pessoa, em coerência com o valor proeminente da dignidade do homem. De igual modo, os Governos não devem servir incondicionadamente a Autoridade mundial. Ao contrário, é ela que se deve pôr ao serviço dos vários países membros, segundo o princípio de subsidiariedade, criando, entre outras coisas, aquelas condições socioeconómicas, políticas e jurídicas, indispensáveis também para a existência de mercados eficientes e eficazes, porque não são superprotegidos por políticas nacionais paternalistas, nem debilitados por deficit sistemático das finanças públicas ou dos produtos nacionais, que de facto impedem que os próprios mercados ajam num contexto mundial como instituições abertas e concorrenciais. Na tradição do Magistério da Igreja, retomada com vigor por Bento XVI,(16)o princípio de subsidiariedade deve regulamentar as relações entre Estado e comunidades locais, entre Instituições públicas e Instituições privadas, sem excluir as monetárias e financeiras. Assim, a um nível ulterior, deve reger as relações entre uma eventual futura Autoridade pública mundial e as instituições regionais e nacionais. Um princípio como este é uma garantia quer da legitimidade democrática quer da eficácia das decisões de quantos são chamados a tomá-las. Permite que se respeite a liberdade das pessoas e das comunidades de pessoas e, ao mesmo tempo, que elas sejam responsabilizadas em relação aos objectivos e aos deveres que lhes competem. Segundo a lógica da subsidiariedade, a Autoridade superior oferece o seu subsidium, ou seja, a sua ajuda, quando a pessoa e os agentes sociais e financeiros são intrinsecamente inadequados ou não conseguem fazer por si o que lhes é pedido.(17) Graças ao princípio de solidariedade, estabelece-se uma relação duradoura e fecunda entre a sociedade civil planetária e uma Autoridade pública mundial, quando os Estados, os corpos intermédios, as várias instituições — incluídas as económicas e financeiras — e os cidadãos tomam as suas decisões dentro da perspectiva do bem comum mundial, que transcende o nacional. «O governo da globalização» — lê-se na Caritas in veritate — «deve ser de tipo subsidiário, articulado a vários níveis e em diversos planos, que colaborem reciprocamente».(18) Só assim se pode evitar o perigo do isolamento burocrático da Autoridade central, que correria o risco de ser deslegitimada por um afastamento demasiado grande das realidades sobre as quais se funda, e poderia facilmente cair em tentações paternalistas, tecnocráticas, ou hegemónicas. Contudo, ainda resta a percorrer um longo caminho antes de chegar à constituição de uma tal Autoridade pública de competência universal. A lógica pretenderia que o processo de reforma se desenvolvesse tendo como ponto de referência a Organização das Nações Unidas, em virtude da extensão mundial das suas responsabilidades, da sua capacidade de reunir as Nações da terra e da diversidade das suas tarefas e das suas Agências especializadas. O fruto de tais reformas deveria ser uma maior capacidade de adopção de políticas e opções vinculantes porque orientadas para a realização do bem comum a nível local, regional e mundial. Entre as políticas são mais urgentes as relativas à justiça social global: políticas financeiras e monetárias que não danifiquem os países mais débeis;(19) políticas destinadas à realização de mercados livres e estáveis e a uma distribuição equitativa da riqueza mundial através também de formas inéditas de solidariedade fiscal e global, que trataremos mais adiante. No caminho da constituição de uma Autoridade política mundial não se podem separar as questões da governance (ou seja, de um sistema de simples coordenação horizontal sem uma Autoridade super partes) das questões de um shared government (isto é, de um sistema que, além da coordenação horizontal, estabeleça uma Autoridade super partes) funcional e proporcionada ao desenvolvimento gradual de uma sociedade política mundial. A constituição de uma Autoridade política mundial não pode ser alcançada sem a prévia prática do multilateralismo, não só a nível diplomático, mas também e sobretudo no âmbito dos planos para o desenvolvimento sustentável e para a paz. Não se pode chegar a um Governo mundial a não ser dando expressão política a preexistentes interdependências e cooperações. 4. Para uma reforma do sistema financeiro e monetário internacional correspondente às exigências de todos os Povos Em matéria económica e financeira, as dificuldades mais relevantes derivam da carência de um conjunto eficaz de estruturas, capaz de garantir, além de um sistema de governance, um sistema de government da economia e das finanças internacionais. Que dizer desta perspectiva? Quais os passos a dar concretamente? Com referência ao actual sistema económico e financeiro mundial devem ser realçados dois factores determinantes: o primeiro é uma diminuição gradual da eficiência das instituições de Bretton Woods, a partir dos primeiros anos Setenta. Em particular, o Fundo Monetário Internacional assumiu um carácter essencial para a estabilidade das finanças mundiais, o de regular a criação global de moeda e de vigiar sobre o montante de risco de crédito assumido pelo sistema. Em conclusão, já não se dispõe daquele «bem público universal» que é a estabilidade do sistema monetário mundial. O segundo factor é a necessidade de um corpus mínimo partilhado de regras necessárias à gestão do mercado financeiro global, que cresceu muito mais rapidamente do que a economia real, tendo-se desenvolvido velozmente por efeito, por um lado, da ab-rogação generalizada dos controles sobre os movimentos de capitais e da tendência à desregulamentação das actividades bancárias e financeiras; e por outro, dos progressos da técnica financeira favorecidos pelos instrumentos informáticos. A nível estrutural, na última parte do século passado, a moeda e as actividades financeiras a nível global cresceram muito mais rapidamente do que a produção de bens e serviços. Neste contexto, a qualidade do crédito tendeu para diminuir até expor os institutos de crédito a um risco superior àquele razoavelmente sustentável. É suficiente olhar para o destino de grandes e pequenos institutos de crédito no contexto das crises que se manifestaram nos anos Oitenta e Noventa do século passado e por fim para a crise de 2008. Sempre na última parte do século passado, cresceu a tendência a definir as orientações estratégicas da política económica e financeira no âmbito de clubes e grupos mais ou menos difundidos de países mais desenvolvidos. Mesmo sem negar os aspectos positivos desta abordagem, não se pode deixar de observar que ela parece não respeitar plenamente o princípio representativo, em particular dos países menos desenvolvidos ou emergentes. A necessidade de ter em consideração a voz de um maior número de países induziu, por exemplo, ao alargamento dos supracitados grupos, passando assim do G7 ao G20. Esta foi uma evolução positiva, porque permitiu chamar em causa na economia e na finança global, a responsabilidade de países com mais elevada população, em vias de desenvolvimento e emergentes. Por conseguinte, no âmbito do G20 podem amadurecer orientações concretas que, oportunamente elaboradas nas apropriadas sedes técnicas, poderão orientar os órgãos competentes a nível nacional e regional para a consolidação das instituições existentes e para a criação de novas instituições com instrumentos apropriados e eficazes a nível internacional. Os próprios representantes do G20, na Declaração final de Pittsburg de 2009, aliás, afirmam como «a crise económica demonstra a importância de iniciar uma nova era da economia global fundada na responsabilidade». Para fazer face à crise e abrir uma nova era «da responsabilidade», além das medidas de tipo técnico e a curto prazo, os representantes sugerem a proposta de uma «reforma da arquitectura global para enfrentar as exigências do século XXI»; e por conseguinte a de «um quadro que permita definir as políticas e as medidas comuns para gerar um desenvolvimento global sólido, sustentável e equilibrado».(20) Por conseguinte, é necessário iniciar um processo de reflexão profunda e de reformas, percorrendo caminhos criativos e realistas, que tendam a valorizar os aspectos positivos das instituições e dos fora já existentes. Deveria ser dedicada uma atenção específica à reforma do sistema monetário internacional e, em particular, ao compromisso por dar vida a algumas formas de controle monetário global, aliás já implícita nos Estatutos do Fundo Monetário Internacional. É evidente que, de certa forma, isto equivale a pôr em questão os sistemas de câmbio existentes, para encontrar modos eficazes de coordenação e supervisão. Trata-se de um processo que deve incluir também os países emergentes e em vias de desenvolvimento ao definir as etapas de uma adaptação gradual dos instrumentos existentes. No horizonte delineia-se, em perspectiva, a exigência de um organismo que desempenhe as funções de uma espécie de «Banco central mundial» que regule o fluxo e o sistema dos intercâmbios monetários, como os Bancos centrais nacionais. É necessário redescobrir a lógica de fundo, de paz, coordenação e prosperidade comum, que levaram aos Acordos de Bretton Woods, para fornecer respostas adequadas às actuais questões. A nível regional tal processo poderia ser praticado com a valorização das instituições existentes, como por exemplo o Banco Central Europeu. Isto exigiria, contudo, não só uma reflexão a nível económico e financeiro, mas também e antes de tudo, a nível político, em vista da constituição de equivalentes instituições públicas que garantam a unidade e a coerência das decisões comuns. Estas medidas deveriam ser concebidas como alguns dos primeiros passos na perspectiva de uma Autoridade pública de competência universal; como uma primeira etapa de um esforço mais prolongado da comunidade mundial de orientar as suas instituições para a realização do bem comum. Outras etapas deverão seguir-se, tendo em consideração que as dinâmicas que conhecemos podem acentuar-se, mas também ser acompanhadas de mudanças que hoje seria vão tentar prever. Neste processo é necessário recuperar a primazia do espiritual e da ética e, com eles, a primazia da política — responsável do bem comum — sobre a economia e sobre as finanças. É preciso reconduzir estas últimas para dentro dos confins da sua real vocação e da sua função, incluída a social, tendo em conta as suas evidentes responsabilidades em relação à sociedade, para dar vida a mercados e instituições financeiras que estejam efectivamente ao serviço da pessoa, isto é, que sejam capazes de responder às exigências do bem comum e da fraternidade universal, transcendendo qualquer forma irrelevante de economicismo e mercantilismo performativo. Por conseguinte, com base nesta abordagem de tipo ético torna-se então oportuno reflectir, por exemplo: sobre medidas de aplicação de taxas das transações financeiras, mediante impostos equitativos, mas reguladas com encargos proporcionados à complexidade das operações, sobretudo das que se efectuam no mercado «secundário». Este modo de imposto seria muito útil para promover o desenvolvimento global e sustentável segundo princípios de justiça social e da solidariedade; e poderia contribuir para a constituição de uma reserva mundial, para apoiar as economias dos países atingidos pela crise, assim como o saneamento do seu sistema monetário e financeiro; sobre formas de recapitalização dos bancos também com fundos públicos condicionando o apoio a comportamentos «virtuosos» e finalizados a desenvolver a economia real; sobre a definição do âmbito e da actividade de crédito ordinário e de Investment Banking. Esta distinção permitiria uma disciplina mais eficaz dos «mercados-sombra» privados de controles e de limites. Um realismo sadio exigiria o tempo necessário para construir amplos consensos, mas o panorama do bem comum universal está sempre presente com as suas exigências iniludíveis. Portanto, é desejável que todos os que, nas Universidades e nas várias Instituições, são chamados a formar as classes dirigentes de amanhã se dediquem a prepará-las para as suas responsabilidades de discernir e de servir o bem público global num mundo em constante mudança. É necessário eliminar a diferença actual entre formação ética e preparação técnica, evidenciando de modo particular a iniludível sinergia entre os dois planos da praxis e da poiésis. O mesmo esforço é exigido a todos aqueles que estão em condições de iluminar a opinião pública mundial, para a ajudar a enfrentar este mundo novo já não na angústia mas na esperança e na solidariedade. Conclusões Nas actuais incertezas, numa sociedade capaz de mobilizar meios ingentes, mas cuja reflexão a nível cultural e moral permanece inadequada em relação ao seu uso em vista da consecução de fins apropriados, somos convidados a não desanimar e a construir sobretudo um futuro com sentido para as gerações vindouras. Não se deve temer propor coisas novas, mesmo se podem desestabilizar equilíbrios de forças preexistentes que dominam os mais débeis. Elas são uma semente lançada à terra, que germinará e não tardará a dar os seus frutos. Como exortou Bento XVI, são indispensáveis pessoas e agentes a todos os níveis — social, político, económico, profissional — movidos pela coragem de servir e promover o bem comum mediante uma vida boa.(21) Só eles conseguirão viver e ver além das aparências das coisas, apercebendo-se da diferença entre o real existente e o possível nunca experimentado. Paulo VI ressaltou a força revolucionária da «imaginação perspéctica», capaz de entrever no presente as possibilidades nele inscritas, e de orientar os homens para um futuro novo.(22) Libertando a imaginação, o homem liberta a sua existência. Mediante um compromisso de imaginação comunitária é possível transformar não só as instituições mas também os estilos de vida, e suscitar um futuro melhor para todos os povos. Os Estados modernos, com o tempo, tornaram-se conjuntos estruturados, concentrando a soberania no âmbito do próprio território. Mas as condições sociais, culturais e políticas mudaram progressivamente. Cresceu a sua interdependência — de tal modo que se tornou natural pensar numa comunidade internacional integrada e regida cada vez mais por um ordenamento partilhado — mas não desapareceu uma forma inferior de nacionalismo, segundo a qual o Estado considera poder obter de modo autárquico o bem dos seus cidadãos. Actualmente tudo isto parece uma forma irreal e anacrónica. Hoje todas as nações, pequenas ou grandes, juntamente com os seus Governos, estão chamadas a superar aquele «estado de natureza» que vê os Estados em perene luta entre eles. Apesar de alguns seus aspectos negativos, a globalização está a unificar em maior medida os povos, solicitando-os a orientar-se para um novo «estado de direito» a nível supranacional, apoiado por uma colaboração mais intensa e fecunda. Com uma dinâmica análoga à que no passado pôs fim à luta «anárquica» entre clãs e reinos rivais, em vista da constituição de Estados nacionais, a humanidade deve hoje comprometer-se na transição de uma situação de lutas arcaicas entre entidades nacionais, para um modelo de sociedade internacional mais concorde, poliárquico, respeitador das identidades de cada povo, dentro da multíplice riqueza de uma única humanidade. Tal passagem, aliás já timidamente em acto, garantiria aos cidadãos de todos os países — qualquer que seja a sua dimensão ou força — paz e segurança, desenvolvimento, mercados livres, estáveis e transparentes. «Como no âmbito dos Estados individuais […] o sistema da vingança privada e da represália foi substituído pelo império da lei» — adverte João Paulo II — «de modo que agora é urgente que um semelhante progresso se realize na Comunidade internacional».(23) Os tempos para conceber instituições com competência universal chegam quando estão em jogo bens vitais e partilhados por toda a família humana, que os Estados individualmente não são capazes de promover e proteger sozinhos. Por conseguinte, existem as condições para a superação definitiva de uma ordem internacional «westphaliana», na qual os Estados sentem a exigência da cooperação, mas não aproveitam a oportunidade de uma integração das respectivas soberanias para o bem comum dos povos. É tarefa das gerações presentes reconhecer e aceitar conscientemente esta nova dinâmica mundial rumo à realização de um bem comum universal. Certamente, esta transformação será feita ao preço de uma transferência gradual e equilibrada de uma parte das atribuições nacionais para uma Autoridade mundial e para as Autoridades regionais, mas isto é necessário num momento em que o dinamismo da sociedade humana e da economia e o progresso da tecnologia transcendem as fronteiras, que no mundo globalizado estão de facto viciadas. A concepção de uma nova sociedade, a construção de novas instituições com vocação e competência universais, são uma prerrogativa e um dever para todos, sem distinção alguma. Está em jogo o bem comum da humanidade e o próprio futuro. Neste contexto, para cada cristão há uma especial chamada do Espírito a comprometer-se com decisão e generosidade, para que as múltiplas dinâmicas em acto se orientem para uma perspectiva de fraternidade e de bem comum. Abrem-se imensos estaleiros de trabalho para o desenvolvimento integral dos povos e de cada pessoa. Como afirmam os Padres do Concílio Vaticano II, trata-se de uma missão ao mesmo tempo social e espiritual, que «na medida em que pode contribuir para ordenar melhor a sociedade humana, é de grande importância para o reino de Deus».(24) Num mundo em vias de rápida globalização, a referência a uma Autoridade mundial torna-se o único horizonte compatível com as novas realidades do nosso tempo e com as necessidades da espécie humana. Mas não se deve esquecer, contudo, que esta passagem, considerando a natureza ferida dos homens, não se realiza sem angústias e sem sofrimentos. A Bíblia, com a narração da Torre de Babel (Génesis 11, 1-9) adverte sobre como a «diversidade» dos povos se possa transformar em veículo de egoísmo e instrumento de divisão. Na humanidade está muito presente o risco de que os povos acabem por já não se compreenderem e de que as diversidades culturais sejam motivo de contraposições insuperáveis. A imagem da Torre de Babel adverte-nos também que é preciso evitar uma «unidade» só aparente, na qual não cessam egoísmos e divisões, porque os fundamentos da sociedade não são estáveis. Nos dois casos, Babel é a imagem do que os povos e os indivíduos podem tornar-se, quando não reconhecem a sua intrínseca dignidade transcendente e a sua fraternidade. O espírito de Babel é a antítese do Espírito de Pentecostes (Actos 2, 1-12), do desígnio de Deus para toda a humanidade, isto é, a unidade na diversidade. Só um espírito de concórdia, que supere divisões e conflitos, permitirá que a humanidade seja autenticamente uma única família, chegando a conceber um novo mundo com a constituição de uma Autoridade pública mundial, ao serviço do bem comum. Notas 1 Paulo VI, Carta encíclica Populorum progressio, n. 13. 2 Bento XVI, Carta encíclica Caritas in veritate, n. 21. 3 Leaders’ Statement, The Pittsburgh Summit, September 24-25, 2009; Annex, 1. 4 Concílio Vaticano II, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, n. 34. 5 Carta encíclica Populorum progressio, nn. 76 ss. 6 Cf. International Monetary Fund, Annual Report 2007, págs. 8 ss. 7 Cf. Carta encíclica Caritas in veritate, n. 45. 8 Ib., n. 77. 9 João Paulo II, Carta encíclica Centesimus annus, n. 34. 10 Ib., n. 40. 11 João XXIII, Carta encíclica Pacem in terris, n. 134. 12 Cf. ib., nn. 134-141. 13 Cf. Carta encíclica Caritas in veritate, n. 67. 14 Ib. 15 Cf. ib. 16 Cf. ib., nn. 57 e 67. 17 Cf. ib., n. 57. 18 Ib. 19 Cf. Concílio Vaticano II, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, n. 70. 20 Leaders' Statement, The Pittsburgh Summit, September 24-25, 2009; cf. Annex, § 1; G20 Framework for Strong, Sustainable, and Balanced Growth, § 1; Leaders' Statement, nn. 18, 13. 21 Cf. Carta encíclica Caritas in veritate, n. 71. 22 Paulo VI, Carta apostólica Octogesima adveniens, n. 37. 23 Carta encíclica Centesimus annus, n. 52. 24 Concílio Vaticano II, Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, n. 39.