segunda-feira, 11 de abril de 2011

Bioética católica ou bioética laica?



Cícero de Andrade Urban

O século XX representou o ápice da luta da modernidade em conceber uma medicina autônoma, fundamentada apenas na ciência, isolando-a das instituições religiosas, da metafísica e também da filosofia, com temor de que estas pudessem contaminá-la com idéias supersticiosas que viessem em prejuízo da razão positiva.
Entretanto, como afirmou Lain Entralgo, "[...] a ciência pode sempre mais daquilo que deve...", e muitos acontecimentos fizeram com que a opinião pública e o ambiente acadêmico começassem a se preocupar com o desenvolvimento desordenado e sem controles do discurso científico. O distanciamento das humanidades tornou a ciência incompleta em seu objetivo fundamental de servir ao homem.
A bioética surgiu dentro deste ambiente histórico conturbado e mais precisamente devido a dois fatores fundamentais: a proteção dos sujeitos vulneráveis nas pesquisas científicas e aquela dada aos pacientes na clínica. A experiëncia moral, por outro lado, sempre existiu nos seres humanos individuais e na coletividade. É o fenômeno que verdadeiramente antecede ao discurso bioético e é também, como a bioética, objeto da razão. Entretanto, ao mesmo tempo, é subordinada a aspectos considerados pouco racionais, tais como as emoções, os valores, as crenças e as tradições, o que a torna ainda mais complexa em suas interpretações. O verdadeiro desafio para a bioética contemporânea está no respeito à autonomia individual aliado à objetividade da ciência, inserindo-os em um sistema de valores que possam ser condivisíveis.
Neste sentido, a bioética possui um vínculo irrenunciável com a ética filosófica. Constitui uma das maiores encarnações do espírito filosófico em toda a história, a ponto de caracterizar o ethos (originário do grego e escrito aqui com eta para significar morada) atual em que vivemos, assim como foram o Iluminismo e o Renascimento. Em poucas décadas a bioética tornou-se parte integrante do ambiente acadêmico e das discussões de alguns dos temas mais conflitantes da atualidade, vencendo uma série de críticas iniciais que lhe foram feitas. Para aqueles que estão envolvidos com ela, tanto no ambiente acadêmico quanto à beira do leito, encontrar no seio da sociedade pluralista e secular os elementos filosóficos para fundamentá-la dentro da linguagem da razão e inserí-los no discurso bioético é algo muitas vezes oneroso e difícil.
A contribuição dos teólogos, sobretudo os protestantes e católicos, assim como dos filósofos com inspiração cristã, foram marcantes para o desenvolvimento da ética profissional nos Estados Unidos e, posteriormente, ao da bioética. De fato, algumas das figuras mais proeminentes da bioética mundial são teólogos e filósofos moralistas. Mesmo no nosso meio grandes contribuições surgiram de pessoas com inspiração religiosa. Talvez porque a experiência moral, sobretudo aquela inserida dentro da tradição tomista, baseada na lei natural, não seja imposta de fora, mas uma exigência interna e pessoal vivenciada como uma maneira de sintonizar a natureza humana imperfeita com a vontade de Deus. Assim, com esta fonte de inspiração, o bem seria a tendência natural para os seres humanos. Isto, permitiu uma maior clareza de conceitos para estes indivíduos no estabelecimento das fundamentações para o discurso bioético.
Mas a ética não precisa de Deus, mesmo considerando que existe proximidade entre a ética e a religião dentro da chamada experiência moral em relação à exigência do dever e do absoluto e da sua importância inegável para o surgimento da bioética. Para Jorge José Ferrer e Juan Carlos Álvarez reduzir a teologia e a religião à ética é empobrecê-las, e reduzir a ética à teologia e à religião constituiria um grave problema dentro da sociedade pluralista e secular em que vivemos. Na tradição cristã o núcleo da experiência religiosa encontra-se em Deus, no Amor Absoluto e não na observância de determinadas normas morais.
O elemento básico fundamental para a bioética e para a ética filosófica é a alteridade, o respeito ao próximo. Nesse sentido, aproxima-se novamente do discurso religioso, mas podendo prescindir do mesmo sem nenhum prejuízo prático. Um indivíduo isolado em uma ilha deserta não têm necessidade da ética ou da bioética. Estaria apenas, com as suas decisões, buscando preservar a sua própria existência, sem preocupar-se com os demais ou com a continuidade da espécie. Assim sendo, como então podemos conceber a existência de uma bioética de inspiração católica e outra laica?

Bioética laica ou bioética da qualidade de vida
“Non enim vivere bonum est, sed bene vivere” - não é um bem viver, mas o viver bem - Seneca
Para Francesco D`Agostino a bioética é ética, um ramo da filosofia e não da teologia moral. Portanto nela devem ser empregados argumentos meramente racionais, controversos entre si, mais ou menos condivididos, mas nunca dogmáticos. Para ele, assim como para outros autores, a bioética é laica (mesmo a personalista), é antidogmática e antimetafísica. Norberto Bobbio dá um senso de exclusão de doutrina religiosa à palavra laico. O estado laico não confessional não é nem religioso e nem ateu, nem cristão e nem não cristão. Não representa uma nova cultura, mas uma condição de sobrevivência para todas as culturas. Da mesma forma para Umberto Eco, em seu debate com o Cardeal Carlo Maria Martini, a bioética laica não está vinculada a nenhum magistério que não seja aquele da reta razão. Neste sentido, ser laico não significa ser ateu ou agnóstico, mas apenas excluir as premessas metafísicas e religiosas que pretendam valer para toda a sociedade.
A experiência moral então seria uma construção humana, sem uma fonte externa de valores. Existem diversas correntes que fazem da bioética laica um conjunto de teorias morais diversas e não uma única visão dominante: utilitarista, contratualismo, principialismo, liberalismo, etc. Entretanto, como afirma Giovanni Fornero, em muitos aspectos, as suas argumentações se aproximam e partem do princípio da autonomia como o mais importante, da disponibilidade da vida humana (auto-disponibilidade), do conhecimento como instrumento de progresso, da não aceitação do sofrimento e a defesa do valor qualitativo da vida humana. Apresenta um conceito funcional de pessoa, sendo este o aspecto mais original e controverso da bioética laica. Enquanto para a bioética personalista ser pessoa depende da existência da natureza humana (substrato ontológico essencial existente em todos os seres humanos), para a bioética laica ser pessoa (e portanto sujeito ético e jurídico) depende da existência de determinadas características e funções tais como: consciência, capacidade de interação com outros seres e capacidade de auto-determinação. Assim sendo, fetos, pacientes terminais, inconscientes ou com graves problemas neurológicos estariam fora do sacrário secular da bioética laica.
Esta opção pluralista e liberal é o reconhecimento das diferenças como condição preliminar e normativa ao discurso bioético laico. O seu raciocínio é como se Deus não existisse. Mas nesse ponto, a bioética personalista também está de acordo, pois se utiliza de argumentações filosóficas e não teológicas em seu discurso. A bioética laica secular, com suas diversas ramificações, é a corrente dominante na bioética atual e aquela que encontra o maior número de seguidores, inclusive no Brasil.

O que é a bioética católica e qual a sua importância?
“Non videtur esse lex, quae justa non fuerit” - uma lei injusta não é uma lei - Santo Agostinho
Existe uma longa tradição dentro da Igreja Católica na reflexão sobre temas que hoje são abordados dentro da bioética. Desde os escritos da patrística sobre o suicídio e sobre as leis até os documentos recentes do Magistério da Igreja sobre eutanásia e reprodução assistida. A bioética católica está fundamentada na fé e na razão. Dentro da visão católica existe o paradigma da sacralidade da vida, que está articulado em três princípios fundamentais: criação por Deus, indisponibilidade e inviolabilidade da vida humana. Apesar disso, a vida não é considerada como um valor absoluto, pois o mais importante seria o que estaria esperando na Jerusalém celestial, no pós-morte. Mesmo assim, dentro da lei natural da tradição tomista, a vida sendo um dom, não poderia ser objeto de especulações utilitarísticas. Para Angelo Bompiani a linha teológica de matriz católica, sem renegar os fundamentos deontológicos, considera na sua totalidade a complexidade do agir humano: nas intenções do agente, nos valores em jogo, na conseqüências que derivam das decisões e no ambiente sócio-cultural em que está inserido o sujeito. Apesar de admitir excessões em casos particulares, para o Catequismo da Igreja Católica existem atos que por si mesmos, independente das circunstâncias em que se encontrem e das intenções do sujeito, que serão sempre ilícitos, tais como o homicídio e o adultério. Dentro desta visão não é lícito realizar um mal, mesmo que com ele se possa atingir um bem.
O conhecimento da bioética de inspiração católica é importante pois pacientes e familiares que professam a religião católica esperam que seus valores sejam respeitados, independente do credo do profissional de saúde que esteja responsável pelos cuidados. Além disso, oferece uma visão diversa daquela existente na antropologia pós-cartesiana que fundamenta a bioética laica secular, que insiste na primazia do agir sobre o ser e que nega a existência de uma natureza humana pré-constituída. A bioética de inspiração católica é representada na Europa pelo personalismo de Sgreccia e nos Estados Unidos, o que mais se aproxima desta visão é a do paradigma das virtudes de Edmond Pellegrino. No Brasil ainda existem poucos expoentes desta visão personalista.

Dicotomia no discurso e na prática?
O ex-presidente dos Estados Unidos Ronald Regan declarou que "[...] legisladores, médicos e cidadãos devem reconhecer que o grande problema está em afirmar e tutelar a sacralidade da vida humana ou abraçar, por outro lado, uma ética social onde alguns tipos de vida devem ser mais protegidos, enquanto outros não. Como nação, nós devemos escolher entre a ética da sacralidade da vida e a ética da qualidade de vida". Os Estados Unidos atualmente convivem com este dilema em suas decisões políticas.
Ambas as visões dominantes - a da sacralidade da vida e a da qualidade de vida - exprimem a complexa realidade da bioética atual. Este conflito dualista é mais intenso e em muitos aspectos inconciliável em suas visões quando se discutem problemas como o aborto, a eutanásia, a fertilização assistida e as pesquisas com células tronco embrionárias. Nestes temas, a antítese entre as duas bioéticas - a metafísica e a relativista - é notória. Apesar disto, ambas estão constritas a co-existirem e dialogarem dentro do panorama da sociedade pós-moderna. Dentro deste espírito, podemos conceber uma bioética sem Deus, ou até que a bioética verdadeiramente seja laica em suas raízes fundamentais, como filha da ética filosófica e da reta razão. Mas todas aquelas correntes que anulem a visão do homem como centro da fundamentação bioética, que forem contrárias ao respeito ao próximo (alteridade) e à responsabilidade do homem para com o homem (sobretudo para com aqueles mais vulneráveis) e para com o meio ambiente em que vivemos (compromisso para com a continuidade da espécie) estarão e deverão estar condenadas a viverem isoladas no academicismo, formalmente de fora do universo prático.

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