segunda-feira, 11 de abril de 2011

BIOÉTICA E AS MARCAS SOCIAIS DA GENÉTICA

Mário Antônio Sanchez
O instigante texto aqui apresentado aos leitores do jornal Universidade é parte da introdução do livro “Brincando de Deus - Bioética e as marcas sociais da genética”, que o professor Mário Antônio Sanches está lançando pela Editora Vozes.
A biologia - e particularmente a genética - desenvolveu-se de maneira expressiva nas últimas décadas. Ofuscados por tal desenvolvimento, corremos o risco da parcialidade, ora ingressando na orla dos seus admiradores incontestáveis, ora sendo admitidos nos grupos de críticos ferrenhos que bradam que o cientista não pode 'brincar de Deus'.

Não queremos nos colocar, ardilosamente, numa posição e neutralidade, mas também não pretendemos engrossar ingenuamente as filas dos entusiastas sem crítica, nem dos críticos que se recusam a aprender com a novidade. Para isso, apresentamos argumentos que raramente aparecem juntos num mesmo trabalho: análise histórica da genética, mostrando como a genética marca e é marcada pela sociedade onde se desenvolve, e uma rápida incursão na teologia, insinuando que brincar de Deus talvez seja a mais empolgante ventura do ser humano
na face da terra.

Falaremos bastante de biologia, um pouco de teologia, mas o propósito teórico deste trabalho está inserido no contexto da bioética que tem se tornado um espaço de diálogo interdisciplinar e plural. Inserimos, portanto, nesta introdução, algumas idéias básicas sobre a bioética e depois introduziremos o debate a respeito da relação natureza e cultura, pois sem estes dois elementos, boa parte do trabalho poderá não ser devidamente apreciada.
Bioética Em alguns setores da sociedade, a bioética é vista como uma área do conhecimento já bastante consolidada, porém em outros ela é ainda uma novidade. Gostaríamos, portanto, de fazer uma justificativa da bioética, apontando para as causas de seu surgimento, para a sua complexidade e para a necessidade de um aprofundamento de suas questões centrais.

Os profissionais da saúde por muito tempo têm se preocupado com a ética no exercício de suas atividades. Tendo em vista que a bioética teve seu início há menos de meio século, ela não pode ser apontada como a responsável pelo despertar da reflexão ética no mundo da saúde. Na verdade, essa preocupação é bem mais antiga e está presente em todas as sociedades, como na Índia, no povo hebreu, na China antiga, na Grécia e em outras tradições antigas.

A bioética, portanto, não rejeita a milenar reflexão que os diferentes povos acumularam sobre ética, mas, paradoxalmente, ela nasce exatamente da perplexidade frente à novidade e da percepção de que problemas atuais trazem novos e estonteantes desafios (1). O livro Upanishades, na literatura Hindu na Idade Antiga, já apresentava a saúde como primeiro fruto da prática religiosa (2), mas nem de longe poderia prever que a empreitada humana em busca de saúde alcançaria a complexidade atual, envolvendo uma grande gama de instituições e grandiosa quantidade de recursos humanos e materiais. A tradição hipocrática, originária na Grécia e tão conhecida, já falava da necessária responsabilidade do médico, mas nem de longe imaginava o poder que a medicina atual teria. Os escritos de Lao Tse, na China antiga, já falavam da importância das ervas nos cuidados de saúde, mas nem de longe prenunciavam a complexidade da farmacologia moderna nem a possibilidade de intervenção da natureza (3), como na produção de organismos geneticamente modificados em curso na biologia atual. O livro de Eclesiástico (4), na tradição bíblica, exaltava o médico sem prever a variada gama de profissionais que hoje estão envolvidos na milenar arte de cuidar.

Foi o desenvolvimento das ciências biológicas (5) que fez surgir a bioética como uma ponte que liga a reflexão que se dá no complexo e plural universo da ética aos avanços ocorridos nas biociências e no mundo da saúde. A bioética é nova, como igualmente novos são inúmeros procedimentos, tais como: transplante de órgãos, mutilação de órgãos ou parte do corpo para fins terapêuticos, inúmeras cirurgias, cultivo de células em laboratório, monitoramento eletrônico de órgãos... Boa parte dos procedimentos utilizados atualmente no universo da saúde se originou nos últimos cinqüenta anos, sem falar nas inusitadas conquistas no campo da reprodução assistida, com sua conseqüente possibilidade de separação entre o ato sexual e a reprodução humana.

A bioética, desse modo, o fruto do esforço de todos aqueles que entendem que cada novo movimento das biociências precisa ser acompanhado por um outro movimento: o da reflexão crítica sobre tal novidade. Cada conquista inusitada precisa ser acompanhada de uma reflexão sobre as suas conseqüências para a sociedade. Cada novo procedimento precisa ser seguido de orientações que possam garantir a continuidade e o aprimoramento do processo de cuidar. Por isso, em alguns movimentos, a bioética aponta caminhos (6) e em outros defende grupos vulneráveis (7), num esforço contínuo de extrair princípios (8) que possam orientar a prática.

Frente às recentes tendências de comercialização, cada vez mais presente nos diferentes setores da vida, em que as relações humanas passam a ser crescentemente regidas por contratos formais, a reflexão bioética precisa se fazer presente para proteger o espaço do profissional de saúde e o respeito e a autonomia dos pacientes, buscando a promoção e a defesa da dignidade de ambos. É necessário afirmar que os profissionais de saúde não podem se tornar marionetes das grandes empresas de saúde que visam, acima de tudo, seu próprio lucro. É preciso defender que a saúde não é um produto que pode ser minimizado e que os usuários de saúde precisam ser respeitados como cidadãos.

Por causa do grande desenvolvimento da pesquisa em nosso país, a regulamentação sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos e animais se torna cada vez mais relevante, para que brasileiros não sejam cobaias de grandes empresas estrangeiras que realizam pesquisas em diversos países. É urgente nos alertarmos e nos posicionarmos contra as tentativas de países ricos imporem um duplo padrão ético em pesquisa, como se as pessoas de comunidades carentes pudessem ser sujeitos de pesquisas jamais aprovadas e nem toleradas nas comunidades abastadas dos países onde foram planejadas. A bioética promove a pesquisa e precisa dela, mas insiste em declarar que ela não pode ser atropelada pelos ditames do mercado (9).

A bioética está num processo de amadurecimento no Brasil, e é preciso que profissionais de diferentes áreas - pois a interdisciplinaridade é uma das suas marcas (10) - se dediquem cada vez mais ao seu estudo e desenvolvimento, com pesquisas e reflexões verdadeiramente adaptadas à nossa realidade. Buscando respostas para nossos problemas e com perspectivas e critérios nossos, talvez possamos afirmar que estamos construindo de fato uma Bioética latino-americana (11). É desejável também que ela adquira visibilidade social, que saia dos círculos de reflexões das universidades para as ruas, pois as causas que ela defende são cruciais para o bem de toda a sociedade. Ninguém pode ficar indiferente, pois a bioética “envolve os profissionais e todos aqueles que, com competência e responsabilidade, dispõem-se a refletir eticamente sobre a melhor conduta a ser prestada à pessoa humana, à sociedade, ao mundo animal e vegetal e à própria natureza” (12).

Esse aprofundamento da bioética e seu engajamento político têm sido defendidos ultimamente (13), pois em saúde não basta planejar. É necessário incluir todos no planejamento (14). A denúncia precisa ser feita toda vez que as grandes conquistas da ciência continuarem “reservadas para os ricos, prestando-se à formação monopólios e latifúndios, onde a produção agrícola e animal é controlada por quem está de posse da tecnologia biológica” (15).

Gostaria de fechar essa breve reflexão sobre bioética com uma citação de João Paulo II, na qual a bioética é apresentada como um traço significativo dos nossos dias:
Particularmente significativo é o despertar da reflexão ética acerca da vida: a aparição e o desenvolvimento da bioética favoreceu a reflexão e o diálogo entre crentes e não crentes, como também entre crentes de diversas religiões sobre problemas éticos, mesmo fundamentais, que dizem respeito à vida do homem (16).
Relação entre natureza e cultura Visto que este livro aborda as marcas sociais da genética, é necessário termos em mente a complexidade das relações entre o biológico e o social, por isso introduzimos o já tradicional debate entre natureza e cultura. Não raramente natureza e cultura são apresentadas como realidades excludentes, como se fosse possível se falar de natureza humana e de cultura humana como realidades dissociadas. Num outro trabalho (17), abordamos a relação entre natureza e cultura, cujos pontos principais apresentamos a seguir.

Todo ser humano constrói sua identidade individual numa determinada cultura, ou seja, não é possível negar a realidade social como algo inerente ao humano, por isso “é preciso identificar a cultura como um dos elementos da natureza humana” (18). Nessa perspectiva é importante compreender que existe uma tensão no ser humano quanto à sua natureza: “há algo físico sobre o qual se constrói, há algo a ser construído historicamente, tanto um quanto outro fazem parte da sua natureza” (19). A natureza é apresentada como uma categoria que engloba a cultura.

Se por um lado a cultura é parte da natureza humana, por outro lado o próprio conceito da natureza muda com o tempo e com a diversidade cultural, ou seja, a natureza adquire sentido pela cultura. A 'natureza humana' precisa ser compreendida dentro dessa complexidade, na qual a cultura, sempre com sua marca histórica, é vista com um dos seus elementos constituintes. A natureza pode também ser vista como a 'criação'. A 'natureza' é apresentada como um elemento válido para as ciências, pois ir contra a natureza é ir contra as leis físicas que condicionam a existência do universo. Nesse aspecto, está sendo destacado que, apesar do reconhecimento de que a 'natureza' é interpretada pela cultura, permanece sempre nela algo de objetivo. Sem essa base objetiva da natureza, as ciências não seriam possíveis.

Parte desse debate se dá na relação entre genética e ambiente, que ficou conhecido pelo debate nature-nurture. Nature de natureza e nurture de educação, formação e cultura. “Em genética, a palavra natureza se refere ao que é entendido como herança. Herança significa diferenças no DNA transmitidas de geração em geração” (20), ou seja, o termo 'natureza' aqui aponta para as diferenças geneticamente provocadas entre os indivíduos de uma mesma espécie.

Esse debate oscilou, desde a sua origem, para os extremos, conforme a época e a origem do pensador. Francis Galton, que cunhou a expressão nature-nurture, afirmava que a natureza prevalecia enquanto os behavioristas afirmavam o contrário. No entanto, Plomin pergunta: “Existe hoje um único cientista que verdadeiramente acredita num hereditarianismo ou ambientalismo extremo?” (21). De modo que, nos últimos tempos, as pesquisas dos dados sobre genética e sobre ambiente começam a convergir. E o modelo que surge no campo comum das duas pesquisas é o de uma ativa interação do organismo com o ambiente, onde nature e nurture formam um dueto, ao invés de uma dirigir o desempenho da outra (22).

Keller lembra que a realidade genética em si é apenas parte da própria estrutura biológica dos organismos, e, se o desenvolvimento de um organismo não pode seguir em frente sem a memória da planta genética, também não pode prosseguir sem toda a maquinaria incorporada na estrutura celular. “Certamente, os elementos dessa estrutura são fixados pela memória genética, mas sua montagem é ditada pela memória da célula” (23). E a realidade celular estará amplamente à mercê do fator ambiental, basta pensar na questão da qualidade e da quantidade de nutrientes disponíveis.

Desse modo, a relação entre genética e ambiente passa a ser aquela de mútua dependência, pois, como afirma Plomin, algumas das mais interessantes e fundamentais questões a respeito de genética é que, mesmo se tratando de biologia molecular do DNA, ela envolve o ambiente. E de maneira similar, algumas das mais interessantes e fundamentais questões do ambiente envolvem genética (24).

Posições extremas já são raras, mas ainda existem, como na sociobiologia, que faz a balança pender para o lado dos genes como determinantes do fenótipo, desvalorizando os fatores ambientais. Os seguidores dessa tendência afirmam que “a explicação para boa parte do comportamento social e econômico deve ser buscada na genética”. Para mudar a sociedade, afirmam que “devemos antes estar dispostos a alterar os genes, pois, embora o meio ambiente seja um dos fatores, os genes são, em última análise, os maiores responsáveis pela definição do comportamento individual e grupal” (25).

Outros vão insistir que tendências radicais reduzem, muitas vezes, a biologia à genética, pois falar de quantas calorias alguém consome e qual a sua influência no ganho de peso, embora seja um fator biológico, é na verdade um fator do meio ambiente. Assim, “dizer que biologia é relevante para um determinado traço do organismo não significa que genética seja relevante. Há muito mais em biologia do que genética” (26).

Outros insistem na importância dos fatores ambientais como resultado de algumas experiências com gêmeos, que teriam demonstrado que os “fatores ambientais como cigarros, poluição, dieta, estilo de vida causam duas vezes mais câncer do que os fatores hereditários” (27), de tal modo que onde um dos gêmeos idênticos desenvolve câncer, o outro permanece sem a doença em 90% dos casos (28). Isso não significa que o câncer não seja uma doença genética, apenas se está insistindo que as predisposições hereditárias que o provocam são menos relevantes do que as ambientais (29). Existe um gene 'deletério' que causa câncer nos seios, embora este gene esteja presente em apenas uma pequena percentagem de mulheres que contraem câncer de seio, de modo que “o gene não é uma condição necessária para o câncer” (30).

Neste debate, o equilíbrio precisa ser recuperado, não raramente chamando a atenção para o fator que esteja sendo deixado de lado.

Dulbecco insiste que, “na época atual, em que se atribui grande importância ao estudo dos genes e de sua influência nos seres humanos e nas outras espécies, não podemos subestimar o papel do ambiente” (31). Isso não significa uma posição simplista, pois “nos casos em que um determinado fator ambiental parece exercer um papel exclusivo, como no caso de doenças infecciosas, não devemos negligenciar o fator gênico, que pode ser importante” (32).

Para se ter uma visão ampla da relação desses dois fatores, poderíamos afirmar que os fatores genéticos são vistos como capazes de possibilitar uma variada gama de fenótipos possíveis, e “qual fenótipo se concretizará vai depender do ambiente e de suas interações com o genótipo” (33). No caso dos seres humanos, é importante perceber que as pessoas de algum modo escolhem seu ambiente, e os ambientes escolhidos são influenciados, mas não determinados pelo genótipo daqueles que escolhem. Entretanto, muitos ambientes não são escolhidos, mas impostos. A imposição de determinados ambientes sobre o indivíduo pode ocorrer por razões extragenéticas, como as imposições sociais, mas também poderiam ocorrer, de algum modo, na base das características geneticamente influenciadas dos indivíduos (34).

Uma imagem muito sugestiva que fala da importância dos fatores genéticos e ambientais na construção do fenótipo é a de dois pedreiros construindo um muro, quando um prepara a massa e o outro assenta os tijolos (35). Depois de o muro feito, é impossível separar a ação de um pedreiro em relação ao outro. Assim também, depois do organismo formado, é impossível separar o papel do genótipo do papel do ambiente na sua construção. Claro que reconhecer essa dupla influência não nega que em alguns contextos são os genes que fazem a diferença e noutros é o ambiente (36).

Pode-se perceber que o debate natureza-cultura não irá deixar de existir em um futuro próximo, pois muito ainda precisa ser esclarecido, mas se pode concluir que tanto os genes quanto o ambiente têm importante papel na construção do fenótipo, incluindo o comportamento humano.
 
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