Ricardo da COSTA
Texto encomendado pelo Jornal Gazeta do Povo1
Texto encomendado pelo Jornal Gazeta do Povo1
Negras novas a caminho da Igreja para o batismo.
Jean Baptiste Debret (1768-1848).2
Vivemos em uma época conturbada. Qualquer coisa
afirmada levianamente ganha auréola de verdade. Por exemplo, recentemente, o
deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) disse que sessenta por cento dos
congressistas brasileiros utilizavam serviços de prostitutas e que, por isso,
eles gostariam de gozar essa atividade em “locais mais seguros”. Conclusão:
para o deputado, deveríamos regulamentar a vida das meninas.3 Rapidamente a notícia
ganhou as manchetes dos jornais. Contudo, dias depois, Wyllys voltou atrás – em
uma matéria infinitamente menor, claro: disse que baseou sua afirmação em sua
“percepção da sociedade brasileira”, e que, de fato, desconhecia casos de
pagamento de prostitutas por colegas.4
Bem, cito o deputado do PSOL porque o próprio se
valeu de um trecho de uma mensagem do papa Bento XVI no XLVI
Dia Mundial da Paz para mais uma de suas afirmações
bombásticas. O papa defendera a “estrutura natural do matrimônio” – a união
entre um homem e uma mulher – quando negou que quaisquer outras formas
radicalmente diversas de união fossem igualmente consideradas, pois elas “prejudicam,
desestabilizam e obscurecem a função insubstituível do casamento”. Fazer essa
equiparação constituía uma “ofensa contra a verdade da pessoa humana e uma
ferida grave infligida à justiça e à paz”. Parafraseando o papa, o deputado
afirmou que “ferida grave infligida à justiça e à paz foi a escravidão de
negros africanos apoiada pela Igreja Católica”.5
Nesse caso, Jean Wyllys não está só.
Essa é uma das acusações costumeiras feitas à Igreja. Teria ela, segundo seus
detratores, apoiado o sistema escravocrata, especialmente o ocorrido na África
no período moderno (séculos XVI-XIX). Isso é verdade? Não. A
verdade é exatamente o contrário disso. Vamos (mesmo que brevemente) aos fatos?
Na Bíblia há várias passagens relativas a escravos
(especialmente o Antigo Testamento). Quase sempre são prescrições atenuantes. Por exemplo: não se deve entregar um
escravo fugitivo6, nem
utilizá-lo em tarefas degradantes ou serviços desnecessários7; ao escravo
é reservado o dia de descanso (sábado).8 Em
resumo: apesar de reconhecer a escravidão, a religião a atenuava. Essa foi basicamente
a herança do mundo antigo no que diz respeito aos preceitos religiosos.
Com a ascensão social e política da Igreja na Idade
Média e a consequente cristianização das monarquias, a pressão a favor dos
pobres, das mulheres e dos escravos tornou-se maior. Por exemplo, uma lei do
século VI (sob influência da Igreja) afirmava que nenhum escravo poderia ser
preso caso estivesse em um altar católico: seu dono deveria pagar uma pesada
multa caso fizesse isso. Nesses séculos conhecidos pelos especialistas como Alta Idade Média (V-X) o Catolicismo que se
difundiu na Europa pressionou aquelas sociedades a considerar a escravidão algo
ultrajante aos seres humanos, já que, pela fé em Jesus Cristo, somos todos
filhos de Deus.9
Apesar disso, a escravidão só
lentamente diminuiu – para dar lugar, pouco a pouco, à servidão. Com ela, a
dignidade humana estava muito acima da escravidão. Nessa, o escravo era uma
coisa que falava; naquela, o servo tinha deveres (e muitos!) – mas também
direitos (como, por exemplo, a inalienabilidade da terra).
Mas os homens são dificilmente civilizados (e com
revezes regulares). Mesmo com a pregação regular da Igreja, na Europa medieval
a escravidão continuou tão comum que teve que ser reiteradamente condenada pela
Igreja (Concílios de Koblenz, em 922, de Londres, em 1022, e no Conselho de
Armagh, ocorrido na Irlanda em 1171). Naquele Concílio de Londres, por exemplo,
foi decidido: “Que futuramente, na Inglaterra, ninguém queira entrar naquele
comércio nefasto no qual estavam acostumados a vender homens como animais
irracionais” (artigo 27).
O problema era que as antigas leis romanas, seu
código civil, reorganizado nos anos 529-534 pelo imperador bizantino Justiniano
I como Corpus Iuris Civilis (Conjunto do Direito Civil), regulamentava a escravidão.
Segundo ele, embora o estado natural da Humanidade fosse a liberdade, os
direitos dos povos poderiam, no entanto, substituir a lei natural e escravizar
pessoas. Basicamente um escravo era: 1. alguém cuja mãe era
escrava, 2. qualquer pessoa capturada em batalha, 3. qualquer
um que se vendeu para pagar uma dívida (fato comum nos primeiros séculos
medievais).
Com a ascensão do Cristianismo, o direito também se
cristianizou. Os advogados medievais, a partir do século XI, chegaram à
conclusão que a escravidão era contrária ao espírito cristão. Isso para cristãos (e que não me venha nenhum fariseu
acusar a Igreja de não legislar para não cristãos). Em contrapartida, por
exemplo, foi o Islã quem difundiu largamente a escravidão. Vejamos isso com
mais pormenor.
Começo com uma citação do grande historiador
Fernand Braudel (1902-1985): “O tráfico negreiro não foi uma invenção diabólica
da Europa. Foi o Islã, desde muito cedo em contato com a África Negra
através dos países situados entre Níger e Darfur e de seus centros mercantis da
África Oriental, o primeiro a praticar em grande escala o
tráfico negreiro (...). O comércio de homens foi um fato geral e conhecido de
todas as humanidades primitivas. O Islã, civilização escravista por
excelência, não inventou, tampouco, nem a escravidão nem o comércio de
escravos”.10
Aqui chegamos à escravidão negra. Muitos séculos
ANTES da chegada dos brancos europeus à África, tribos, reinos e impérios
negros africanos praticavam largamente o escravismo, exatamente como os
berberes (e demais etnias muçulmanas). Os europeus do século XVI tinham
verdadeiro pavor de deixar o litoral ou mesmo desembarcar de seus navios e
avançar para longe da costa e capturar escravos. Estes eram trazidos pelos
próprios africanos, que tinham grandes mercados espalhados pelo interior do
continente, abastecidos por guerras entre as tribos, ou mesmo puro sequestro.
Isso pode ser facilmente comprovado, por exemplo, com a descrição do império de
Mali feita pelo cronista muçulmano Ibn Batuta (1307-1377), um dos maiores
viajantes da Idade Média, e o depoimento de al-Hasan (1483-1554) sobre
Tumbuctu, capital do império de Songai. Ademais, havia tribos africanas que
praticavam sacrifícios humanos, naturalmente de escravos. Às vezes, para
interromper a chuva, mulheres negras (e escravas) eram crucificadas.11
Entrementes, a Igreja Católica, reiteradamente,
condenava a escravidão. Há inúmeras bulas papais a respeito: Sicut Dudum (1435) – Eugênio IV manda libertar os
escravos das ilhas Canárias; em 1462, Pio II instrui os bispos a pregarem
contra o tratamento de escravos negros etíopes, e condena a escravidão como um
tremendo crime; Paulo III, na bula Sublimus Dei (1537)
recorda aos cristãos que os índios são livres por natureza (isto é, ao
contrário dos negros, eles não praticavam a escravidão); em 1571 o dominicano
Tomás de Mercado declarou desumana e ilícita a escravidão; Gregório XIV (Cum Sicuti, de 1591) e Urbano VIII (Commissum nobis, de 1639) condenaram a escravidão. 12
Paro no século XVII. Há muito mais.13 Mas qual é o resumo
da ópera? Devemos estudar o passado, não inventá-lo.
Notas
·
2.Paris: Firmin Didot Frères, 1839.
“Embora tenha caído em desuso o artigo da primitiva lei sobre a escravidão, que
prescrevia aos brasileiros mandarem batizar seus negros novos dentro de um
determinado prazo, deixou, entretanto, vestígios de seu objetivo moral no
coração dos proprietários indígenas. É raro, com efeito, encontrar-se hoje em
dia um negro que não seja cristão; por outro lado, do ponto de vista político,
esse freio de uma religião tão tolerante torna-se também uma garantia para os
senhores obrigados a dirigir uma centena de escravos reunidos. A observância
desse costume é tanto mais fácil para o citadino quanto circulam nas ruas
alguns velhos negros livres, corretores de profissão, professores dos
princípios da religião católica e que são principalmente apreciados porque têm
a vantagem de falar várias línguas africanas, o que facilita os progressos dos
novos catecúmenos (...) É em geral o escravo mais antigo que serve de padrinho
e nas casas ricas concede-se essa honra aos mais virtuoso. Entretanto, isso não
acarreta nenhuma obrigação em relação ao escravo e o senhor se desobriga de
seus escrúpulos mediante uma simples esmola oferecida à Igreja.” – Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Jean Baptiste Debret. Belo Horizonte: Itatiaia,
1978, Tomo II, Volume III, Prancha 8, p. 166.
·
3.“Eu
diria que 60% da população masculina do Congresso Nacional faz uso dos serviços
das prostitutas, então acho que esses caras vão querer fazer uso desse serviço
em ambientes mais seguros”. Internet.
·
6.“Não entregarás a seu senhor o
servo que, tendo fugido dele, se acolher a ti” – Deuteronômio 23:15.
·
7.“Porque são meus servos, que
tirei da terra do Egito; não serão vendidos como se vendem os escravos. Não
te assenhorearás dele com rigor, mas do teu Deus terás temor.” – Levítico
25:42-43.
·
8.“Mas o sétimo dia é o sábado do
SENHOR teu Deus; não farás nenhum trabalho nele, nem tu, nem teu filho, nem tua
filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem
animal algum teu, nem o estrangeiro que está dentro de tuas portas; para que o
teu servo e a tua serva descansem como tu.” – Deuteronômio 5:14.
·
9.“Mas a Escritura encerrou tudo
debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos
crentes. Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e
encerrados para aquela fé que se havia de manifestar. De maneira que a lei
nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos
justificados. Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de
aio. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque
todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de
Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho
nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” – Gálatas 3:22-28.
·
11.COSTA,
Ricardo da. “A expansão árabe na África e os Impérios Negros de Gana, Mali e
Songai (sécs. VII-XVI)”.In: NISHIKAWA, Taise Ferreira da Conceição. História
Medieval: História II. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2009, p.
34-53.
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