Estudo IntrodutórioJean Lauand
(Estudo introdutório e tradução)(Orig. publ.: "Cadernos de História e Filosofia
da Educação" EDF-FEUSP, vol. II, No.3, 1994)1. O De modo studendi de Tomás.
O De modo studendi é uma carta de autoria de Tomás de Aquino [1] , aconselhando sobre o modo de estudar. Tomás dava muita importância à correspondência. Victor White observa que não é raro que Tomás deixe de lado seu trabalho em obras maiores para elaborar respostas a cartas, especialmente de seus irmãos dominicanos [2] .
O destinatário da carta De modo studendi, um tal "irmão João", é um dominicano jovem [3] , iniciando seus estudos, e afoito por mergulhar no "oceano da sabedoria", resolveu escrever ao mestre consumado, perguntando sobre atalhos.
Tomás, que - no Comentário à Ética de Aristóteles - afirma ser o tempo o grande colaborador (bonus cooperator), começa por responder ao impaciente Frei João que não há atalhos, mas caminhos: pelos riachos é que se chega ao mar e o "difícil deve ser atingido a partir do fácil" (DMS, intr.).
Já no início da carta, Tomás, referindo-se à tarefa de obter o conhecimento, emprega sugestivamente o gerúndio - acquirendo, adquirindo - como que a indicar que a formação intelectual é mais um contínuo processo do que pacífica posse decorrente de uma ação que se perfaz de uma vez. Significativo, nesse sentido, é o uso do verbo incedere, caminhar, marchar. Com efeito, já na primeira questão da Summa, referindo-se à busca pela razão humana da verdade mais elevada, Tomás diz que "só poucos, depois de muito tempo e com mistura de muitos erros, podem chegar". O tempo ébonus cooperator, o grande aliado de quem almeja o "tesouro do conhecimento" (DMS, intr.).
O De modo studendi é um espelho em que se reflete uma concepção de educação totalmente diferente da que prevalece em nosso tempo. Se um grande educador de hoje fosse consultado sobre "o modo de estudar" ou sobre como "adquirir conhecimentos", certamente sua reposta dirigir-se-ia a questões técnicas, programático-curriculares, motivacionais...: o conhecimento é, para nós, compartimentado, separado da existência. Já Tomás, que pensa no saber como algo integrado à existência, ante as mesmas perguntas, aconselha "sobre como deve ser tua vida" (DMS, intr.).
Se o objetivo da escola, hoje, é formar o bom profissional, ou, quando muito, "educar para a cidadania" ou formar para uma análise crítica do mundo; os conselhos de Tomás, no século XIII, incidem sobre a própria estrutura nuclear íntima do ser humano.
2. A educação para a sabedoria.
Assim, já na primeira questão da Suma Teológica, ao procurar caracterizar o que é a sabedoria, Tomás explica que a sabedoria não deve ser entendida somente como conhecimento que advém do frio estudo, mas como um saber que se experimenta e saboreia. Tomás, sempre muito atento aos fenômenos da linguagem, à fala do povo, como fonte de profundas descobertas filosóficas, encanta-se com o fato - para ele experiência pessoal vivida - de que em sua língua latina sapere signifique tanto "saber" como "saborear". Esta coincidência de significados na linguagem do povo - Tomás bem o "sabe" - não é casual: se há quem saiba porque estudou, verdadeiramente sábio, porém, é aquele que sabe porque saboreou...
Se a sabedoria não pressupõe só uma dimensão intelectual, mas está integrada ao todo da existência, não é de estranhar, que, dentre os conselhos dados por Tomás sobre o modo de estudar, encontremos a exortação ao silêncio, à vida de oração, à amabilidade, à humildade, à pureza de consciência, à santidade...
Nesse sentido, deve-se observar também que o alcance semântico da própria palavra studium em latim é muito mais abrangente do que a nossaestudo. Studium significa amor, afeição, devotamento, a atitude de quem se aplica a algo porque ama e, não por acaso, esse vocábulo acabou especializando-se em dedicação aos estudos. Assim, o próprio título do opúsculo de Tomás Sobre o modo de estudar, sugere algo assim como: Sobre o modo de aplicar-se amorosamente...
E, na verdade, o que Tomás propõe é nada menos do que uma dedicação integral, uma consagração à vida intelectual. Um estilo de vida muito exigente, que supõe uma ascese de relacionamento do homem com Deus (cfr. p. ex. DMS, 3), com os outros (cfr. p. ex. DMS, 5) e consigo mesmo (cfr. p. ex. DMS, 12).
Na visão compartimentada do conhecimento que temos hoje, esperamos que nosso aluno demonstre teoremas, calcule empuxos, balanceie equações químicas, escreva redações sugestivas e conjugue corretamente os verbos; o que ele é enquanto homem, isto é lá com ele... Já para Tomás, como se vê no De modo studendi, alguém dedicado ao estudo deve, antes de mais nada, cuidar das atitudes da alma.
3. O silêncio como pressuposto da vida intelectual.
Talvez não haja nada mais oposto ao espírito de nosso tempo do que os conselhos de Tomás que recomendam o cultivo do silêncio. E, no entanto, trata-se, como explica, um dos principais filósofos da educação contemporâneos, Josef Pieper (Viver do Silêncio), de uma das regras fundamentais da vida intelectual e da vida do espírito.
4. A descoberta da realidade como objetivo da vida intelectual.
No que se refere à vida intelectual, Tomás afirma a existência de uma ordo, de uma dinâmica própria do conhecimento, daí que o Aquinate freqüentemente compare o sábio ao arquiteto. Certamente, essa ordo exige uma ordenação do próprio objeto de estudo: do mais fácil para o mais difícil; do riacho para o alto mar. Mas a aquisição do tesouro do saber exigirá também uma ordenação interior do sujeito que estuda. A essa ordo interius referem-se os conselhos do De modo studendi. Afinal, o conhecimento da realidade é, para Tomás, o objetivo da educação, e mais, a própria realização do homem.
DE MODO STUDENDIQuia quaesisti a me, in Christo mihi charissime frater Joannes, quomodo oportet incedere in thesauro scientiae acquirendo, tale a me tibi super hoc traditur consilium: ut per rivulos et non statim in mare, eligas introire, quia per facilia ad difficilia oportet devenire. Huiusmodi est ergo monitio mea de vita tua:
1. Tardiloquum te esse iubeo, et tarde ad locutorium accedentem.
2. Conscientiae puritatem amplecti.
3. Orationi vacari non desinas.
4. Cellam frequenter diligas, si vis in cellam vinariam introduci ( [4] ).
5. Omnibus amabilem te exhibeas, vel exhibere studeas, sed nemini familiarem te multum ostendas; quia nimia familiaritas parit contemptum et retardationis materiam a studio subministrat.
6. Et de factis et verbis saecularium nullatenus te intromittas.
7. Discursum super omnia fugias.
8. Sanctorum et proborum virorum imitari vestigia non omittas.
9. Non respicias a quo, sed quod sane dicatur memoriae recommenda.
10. Ea quae legis fac ut intelligas, de dubiis te certificans.
11. Et quidquid poteris, in armariolo mentis reponere satage sicut cupiens vas implere.
12. Altiora ne te quaeras.
13. Illius beati Dominici sequere vestigia, qui frondes, flores et fructus, utiles ac mirabiles, in vinea Domini Sabaoth, dum vitam comitem habuit, protulit ac produxit.
Haec si sectatus fueris, ad id attingere poteris, quidquid affectas.
Vale.
SOBRE O MODO DE ESTUDARTomás de AquinoJá que me pediste, frei João - irmão, para mim, caríssimo em Cristo -, que te indicasse o modo como se deve proceder para ir adquirindo o tesouro do conhecimento, devo dar-te a seguinte indicação: deves optar pelos riachos e não por entrar imediatamente no mar, pois o difícil deve ser atingido a partir do fácil. E, assim, eis o que te aconselho sobre como deve ser tua vida:
1. Exorto-te a ser tardo para falar e lento para ir ao locutório.
2. Abraça a pureza de consciência.
3. Não deixes de aplicar-te à oração.
4. Ama freqüentar tua cela, se queres ser conduzido à adega do vinho da sabedoria.
5. Mostra-te amável com todos, ou, pelo menos, esforça-te nesse sentido; mas, com ninguém permitas excesso de familiaridades, pois a excessiva familiaridade produz o desprezo e suscita ocasiões de atraso no estudo.
6. Não te metas em questões e ditos mundanos.
7. Evita, sobretudo, a dispersão intelectual.
8. Não descuides do seguimento do exemplo dos homens santos e honrados.
9. Não atentes a quem disse, mas ao que é dito com razão e isto, confia-o à memória.
10. Faz por entender o que lês e por certificar-te do que for duvidoso.
11. Esforça-te por abastecer o depósito de tua mente, como quem anseia por encher o máximo possível um cântaro.
12. Não busques o que está acima de teu alcance.
13. Segue as pegadas daquele santo Domingos que, enquanto teve vida, produziu folhas, flores e frutos na vinha do Senhor dos exércitos.
Se seguires estes conselhos, poderás atingir o que queres.
Saudações.
( [1] ) Martin Grabmann - em seu Die Werke des Hl. Thomas von Aquin, Münster, Verlag der Aschendorffschen Verlagsbuchhandlung, 2a. ed., 1931, p. 372-373 - considera o De modo studendi um opúsculo autêntico. Contra as reservas (embora mínimas) que Mandonnet guarda a propósito da autoria do De modo studendi - incluído por ele entre os vix dubia de Tomás, Opusculum XLIV, opúsculos de que dificilmente se pode duvidar de que o autor seja o Aquinate (S. Thomae Aquinatis: Opuscula Omnia cura et studio R.P. Petri Mandonnet, vol. IV Paris, Lethielleux, 1927) -, Victor White, em seu How to study, 2a. ed., Oxford, Blackfriars, 1949, aponta razões intrínsecas que confirmam a tese da autenticidade desse opúsculo. Para a tradução, valemo-nos do texto latino apresentado por White.( [2] ) Como é o caso de sua carta Resposta a Seis Questões do Ir. Gerardo de Soissons: "Embora esteja muito ocupado em diversos assuntos, cuidei de responder logo que me foi possível, para não desatender a vosso pedido". E o mesmo diz a um importuno veneziano que escreveu uma carta dirigindo-lhe 36 questões exigindo, como ironicamente frisa Tomás, "resposta em quatro dias".( [3] ) White observa que S. Tomás, seguindo o uso do século XIII, sempre se vale do tratamento "vós" para superiores ou iguais; nesta carta, porém, emprega o "tu".( [4] ) Citação implícita da Bíblia: "Introduxit me in cellam vinariam" Cant. 2, 4.
domingo, 13 de janeiro de 2013
Sobre o modo de estudar - o De Modo Studendi de Santo Tomás de Aquino
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