Os personagens escolhidos que compõem este guia politicamente incorreto de nuestra america
foram bem escolhidos, inclusive porque suas biografias acabam inserindo
personagens que hoje são politicamente atuantes. Ao falar de Simón
Bolivar, é inevitável que se mencione o presidente venezuelano Hugo
Chávez. O bolivarismo está presente em todos os instantes nos discursos
de Chávez, servindo como mola propulsora para a discussão da política
externa daquele país, por exemplo. Outro personagem citado é Che
Guevara, médico argentino qvirou guerrilheiro e acabou por se tornar um
dos principais ideólogos da Revolução Cubana. Ao morrer, “Che” se
transformou num ícone, ganhando o mundo em imagens. Eva e Juan Perón, o
casal mais famoso de todos os tempos na Argentina também são lembrados,
inclusive tendo papel importantíssimo na construção não somente do
Peronismo, mas também como líderes trabalhistas e fundadores do
Justicialismo, tendo como lemas, “Paz, Amor e Justiça Social”. O
Peronismo virou religião na Argentina, a ponto de até hoje em dia
possuir seguidores apaixonados. Compõem ainda o livro, as figuras do
mexicano Pancho Villa, os astecas, os incas, os maias, o presidente
chileno Salvador Allende – que tentou revolucionar o Chile pela via
pacífica do socialismo e terminou por se suicidar no Palácio La Moneda,
em Santiago, em meio aos bombardeios das Forças Armadas comandadas pelo
general Augusto Pinochet -, além de figuras populares existentes no
Haiti pré-independente e escravocrata, como Jean-François, Julien
Raimond, Jean Kina, Toussaint L´Ouverture, Henri Christophe, entre
outros líderes, originários das massas populares, que se
auto-determinaram oficiais militares e exerceram papel importante na
conquista da independência do Haiti e de São Domingos.
Prestou atenção ao parágrafo anterior?
Muito bem: procure esquecer pelo menos metade de tudo que contaram a
você, até hoje, sobre o heroísmo das personagens acima. Esse é o
propósito do livro: dessacralizar, desmistificar, pormenorizar certos
feitos, jogar luz a fatos que ficaram obscuros e que atenderam
interesses particulares, a quem interessava um história direcionada para
um determinado fim, que acabou por se transformar numa história
oficial. A todo instante os autores se lançam à desconstruir os mitos.
Não é propósito desta crítica avaliar se determinado mito realmente
merece ser questionado, mas é importante ressaltar que os autores
tiveram como base de apoio uma lista de fontes variadas. A revisão
técnica da obra é do historiador Marco Antonio Villa, da Universidade
Federal de São Carlos.
Entretanto, o que incomoda na obra é
justamente perceber que o propósito é desconstruir – e não agregar
esclarecimentos. Uma coisa é revisar conceitos, idéias e personagens
históricos. Fazer isso, com o sentimento de desdém, do tipo “Fulano não
foi ninguém” ou “Cicrano na verdade era bandido”, já é outra coisa – e
aí não reside mais o ato de historicização. É calúnia mesmo. E isso fica
bem claro quando o livro aborda Che Guevara, Salvador Allende e o casal
Perón. É importante lembrar que os dois jornalistas trabalham no Grupo
Abril (ambos trabalham na revista Veja e Narloch já comandou a
Superinteressante e a Aventuras na História). Foi justamente essa a
sensação que tive após ler o livro (em exatos cinco dias): a de ter
acabado de ler a Veja da semana, tendo Allende, sido massacrado – será
que se ainda fosse vivo, seria convocado para alguma CPI no Senado?
Lembro mais uma vez que isso não quer dizer que os autores tenham não
escrito verdades sobre as personagens – em grande parte escreveram sim
coisas reais -, mas a forma como fizeram as sucessivas desconstruções
incomodam – e muito. As únicas partes onde ocorreu uma brisa de
independência de idéias foram nas abordagens dos astecas, maias e incas,
e nas revoltas no Haiti. Nas personagens mais contemporâneas a
má-vontade dos autores foi extrapolada a olhos vistos.
Os autores traçam um panorama sensacional
sobre a Argentina antes da chegada de Perón ao poder. E acusam o
presidente argentino de ser o único culpado da derrocada do país nos
anos que se seguiram após assumir a presidência. “É só Perón aparecer
para a Argentina começar a apontar para baixo”, escrevem em certa altura
do texto. Trata-se, sem dúvida, de um erro crasso. Seria a mesma coisa
que dizer que Vargas foi o grande culpado pelo fim do Estado Novo, ou
então que Castello Branco foi o único responsável pelo golpe
civil-militar de 1964 no Brasil. Ou ainda que a proclamação da República
só aconteceu porque Marechal Deodoro da Fonseca, num ato heróico (?),
ergueu sua espada e pôs fim à monarquia. Esse tipo de pensamento,
pormenorizante, baseado numa história factual, é raso, superficial e
tosco. É condição sine qua non para qualquer historiador (ou
pesquisador de qualquer área) entender que um acontecimento tem por trás
uma série de fatores, uma dinâmica de forças, relações, conflitos… um
processo que desencadeia enfim, uma transformação na história. O próprio
trabalho de investigação, que o historiador faz, leva a conhecer os
caminhos e descaminhos que se traduzem, no fim das contas, nos
acontecimentos.
O leitor mais atento e acostumado com a
História saberá certamente fazer a distinção entre o que é História e o
que é jornalismo histórico. Mas é justamente aí que reside o perigo: o
livro claramente não é voltado para historiadores. O público-alvo
abrange desde estudantes e profissionais que nada têm a ver com História
e que aproveitando essa nova onda de obras de teor histórico publicadas
por jornalistas (“1808 e 1822″, de Laurentino Gomes, e livros de
Eduardo Bueno, entre outros). Pessoas que vão a uma Megastore qualquer ,
vêem o livro e pensam: “finalmente um livro de ‘História’
descomplicado, sem linguagem difícil e com diagramação fácil de ler!”. É
aí que reside o perigo: da apropriação (indevida) que jornalistas fazem
da História, transformando ela num produto que atenda a interesses de
terceiros (grupos editoriais, por exemplo), colocando o conteúdo que
produzem num patamar onde passem a ser referências no assunto. Por outro
lado, é perceptível que existe também um certo preconceito por essa
popularização da história. Prefiro acreditar que o preconceito ocorra
justamente pela preocupação que expressei acima. Já que, enquanto
historiadores ou interessados no constante aprendizado, devemos sempre
estar atentos a tudo que é escrito e publicado – inclusive porque, para
criticarmos ou argumentarmos, precisamos primeiro ler as obras.
Popularizar a História não é errado,
muito pelo contrário: é preciso transpor os muros que separam a Academia
da grande massa de leitores ávidos por aprender história. Só que pra
fazer isso é importante fazer com responsabilidade, clareza e
independência editorial.
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