E é justamente esta inquietação que parte da minha leitura, que me leva a analisar a originalidade do discurso fundante, os interesses e críticas que o mesmo sofre no decorrer do século XIX e XX, e que ainda hoje é objeto de pesquisa para historiadores(as). Dentro desta perspectiva, José Carlos Reis diz o seguinte:
"Francisco Adolfo de Varnhagen(1816 – 78) é considerado o Heródoto brasileiro, portanto o fundador da história do Brasil, mesmo se antes dele entre outros, Pero de Magalhães Gândavo, Frei Vicente do Salvador, Sebastião da Rocha Pita, Robert Southy escreveram, respectivamente,(...) Southey disputa comVarnhagen, sem nunca ter estado no Brasil, aquele título historiográfico. Ele pintou em sua História do Brasil um quadro sombrio quanto às possibilidades futuras da colonização comercial portuguesa no Brasil: degredação dos costumes, da religião e da moral, causada pela escravidão e pela falta de agricultura – miséria, fome, turbulências, crimes, doenças... ."( REIS, 2000, P. 23)
Esta citação retirada da parte 1, O "Descobrimento do Brasil", é altamente pertinente para a análise, pois "José Carlos Reis" cita Varnhagen como Heródoto do Brasil, mesmo reconhecendo que antes dele existiam escritores respectivos. Mas o que a torna digno de ser chamado de Heródoto Brasileiro? Ora, se "Southey" mesmo sem nunca ter estado no Brasil, vê a colonização do Brasil como uma degeneração dos costumes, da religião e da moral, portuguesa. Varnhagen faz o caminho oposto em suas análises, ele percebe o Brasil como uma obra divina e ilumina por Portugal, contendo um grande futuro pela frente, onde a elite nacional branca católica, encabeçada pela casa de Bragança, garantirá os conceitos de "progresso", "civilização" e "evolução" do Brasil, conceitos altamente influentes no imaginário do século XIX, o século dos nacionalismos europeus.
Varnhagen lança mão nesta perspectiva do início do século XIX, á concepção e idéia de "identidade nacional brasileira", daí a origem do discurso fundante. A obra, "História Geral do Brasil(1854 – 57)", é a sua principal síntese de descrição em relação ao Brasil, e o seu projeto nacional.Descreverei mais detalhadamente a obra, "História Geral do Brasil", na parte final do artigo, pois agora me prenderei a um ponto que acho central, o lugar social e as influências teóricas do contexto de Varnhagen que nos ajudaram a entender melhor o seu pensamento. Pois como nos chama a atenção Michel de Certeau, toda "representação" do passado, seja ela qual for, não parte de um "não lugar social e temporal" , muito pelo contrário, toda representação parte de um "lugar social e temporal" carregado de interesses, e influências. Na sua "Escrita da História", Certeau aponta que:
"De toda maneira, a pesquisa está circunscrita pelo lugar que define uma conexão do possível e do impossível. Encarando-a apenas como um "dizer", acabar-se-ia por reintroduzir na história a lenda, quer dizer, a substituição de um não-lugar ou de um lugar imaginário pela articulação do discurso com um lugar social, Pelo contrário, a história se define inteira por uma relação da linguagem com o corpo (social) e, portanto, também pela sua relação com os limites que o corpo impõe, seja à maneira do lugar particular de onde se fala, seja à maneira do objeto outro (passado, morto) do qual se fala." ( CERTEAU, 1982, p. 68 – 69)
A partir da pergunta que nos historiadores(as) formulamos sobre o passado, com as influências, interesses e discursos do nosso contexto, é que nos atrevemos a fabricar "história", sempre na minha concepção entendida como representação do real.É por isto que insisto no aprofundamento analítico do contexto social de Varnhagen, para que não caiamos na ingenuidade de cometermos "anacronismos" que distorcem a análise historiográfica comprometida em perceber as especificidades temporais e sociais que configuram qualquer contexto. Esses destaques de José Carlos Reis reforçam o pensamento de que:
"... A influência alemã sobre o seu pensamento deve ser forte também em virtude de sua origem paterna. Ele estará bem adaptado á produção de sua época. Não só estava atualizado com o que se fazia na Europa, como foi um dos pioneiros da pesquisa arquivística e do método crítico que o século XIX redescobriu e aprimorou. Tanto quanto Ranke, Varnhagen é um historiador típico do século XIX. (Canabrava, 1971 Odália 1979)"(REIS, 2000, p. 24)
Fiz questão de expor esta citação acima para ratificar o peso do lugar social na produção de Varnhagen, e sobre a sua concepção histórica em relação ao Brasil do século XIX. Filho de um oficial engenheiro metalúrgico alemão e uma portuguesa, Varnhagen tem em sua formação na Europa, contato com o "método crítico e erudito" de "Leopold Von Ranke", que tem como objetivo formular a "realidade histórica e científica", separada da filosofia da história de Hegel, queespecula através da metafísica o saber histórico."AAlemanha produziu a filosofia da historia e seu antídoto: Hegel e Ranke são, respectivamente, os maiores representantes da filosofia da história e da história científica"(REIS, 1999. P. 15). Tal método erudito rankiano que visa dar sustentabilidade a história como ciência, ainda hoje, como cita o próprio José Carlos Reis é confundido com o "positivismo" que cresce na França, após a guerra (Franco – Prussiana) em 1870, e principalmente a partir de 1876, com a fundação da "Révue Historique", que influencia pesquisadores franceses como Monad, Lavisse e Seignobos por exemplo.
Tais positivistas carregam explicitamente o espírito iluminista em direção a moral, igualdade e fraternidade universal em suas concepções. Tal confusão, ainda segundo Reis, em relação a método "erudito" e "positivismo", se deve por conta das grandes críticas feitas pelos "annales" com "Febre" e "Bloc", historiadores com grandes espírito patriota francês, que chamam de positivista os historiadores vencidos de 1870, que passam a ser associados, inclusive ainda hoje, ao método crítico e científico proposto por Ranke. "Porém, herdeiros desse tema, os pensadoresda Alemanha romântica, antes de o retransmitir a nossos historiadores seus discípulos, o ornamentaram, por sua vez, com os prestígios de muitas seduções ideológicas novas."( BLOCH, 2001, p. 57)
Delimitar o método erudito rankiano é importante aqui no artigo para podermos entender o porque e como se sustenta o discurso fundante de Varnhagen e quais as suas resonâncias no campo no social e administrativo do Brasil Império. Desde a década de 30 do século XIX, o IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), já lançará mão da concepção de uma história do Brasil a ser feita. Em 1845 o prêmio ganho por "Karl Philipp VonMartins", como sua monografia, "como se deve escrever a história do Brasil", mas o próprio Von Martins não se propôs a dar continuidade aos alicerces lançados por ele como o do, "mito da democracia racial brasileira", que lhe deu o prêmio do concurso lançado pelo IHGB em 1840. Sinteticamente, o que Reis quer dizer é que:
"...Varnhagen tomará para si esta tarefa e se tornara o primeiro grande "inventor do Brasil". As sínteses anteriores sobre o Brasil foram válidas em sua época e continuavam e continuaram ainda válidas. Mas a grande síntese do Brasil do século XIX será a de Varnhagen." (REIS, 2000, P. 28)
Atualizado com a produção teórica de sua época, seja na busca arquivística, organização, catalogação e descrição narrativa dos documentos que visam como vimos nométodo erudito, trazer os eventos ao presente do analista tal como aconteceram, onde o pesquisador não modifica e nem altera o resultado bruto do documento que está pronto para descrever o fato como aconteceu de forma objetiva e científica. "O acto de categorização, quando consegue fazer-se reconhecer ou quando é exercido por uma autoridade reconhecida, exerce poder por si..."(BOURDIEU, 1989, p. 116).
Além desta capacidade de "dizibilidade" e "visibilidade" dos documentos minunciosamente analisados, o caminho encontra-se aberto para Varnhagen como vimos na citação acima. Trata-se de uma grande deficiência de uma produção historiográfica brasileira, que dê visibilidade e dizibilidade, aos vultos, heróis, datas, eventos, reis, rainhas, e uma continuidade do mito da democracia racial deixado precocemente por Von Martius, em fim, um projeto que fortaleça a identidade nacional brasileira como um outro Portugal aqui nos trópicos.
Com o lugar e as influências sociais de Varnhagen contextualizadas, retomarei a discussão em torno da obra, "História Geral do Brasil" dos anos de 1850, pois ela é a síntese do discurso fundante de Varnhagen ao meu ver, e que ainda hoje desperta o interesse, críticas e admirações, como é o caso da posição do historiador " J. H. Rodrigues, citado por Reis " ninguém pode graduar-se em história do Brasil sem ter lido Varnhagen" (REIS, 2000, p. 29). Talassertiva de Rodrigues é pertinente, pois o ofício do(a) historiador(a) é pesquisar em suas fontes disponíveis, o máximo possível de indícios que o leve a fabricar a sua concepção sobre seu objeto de pesquisa.
Chamo atenção para isto, porque não podemos cobrar de Varnhagen uma identificação com a idéia de República por exemplo, já que o seu lugar ideológico é a monarquia por ideologia. Logo o olhar de N. Odália cai terra ao querer analisar História Geral do Brasil, com o olhar de sua época. " Para Odália, o interesse da leitura da sua obra, hoje, é muito restrito. Seria um autor superado não só por suas limitações, mas porque a história do Brasil é outra hoje."(REIS, 2000, p. 29). Perceber historiograficamente a síntese de Varnhagen é procurar entender pelo contrário do arbítrio de Odália, a consciência histórica, teórica e metodológica de sua época, e é esta a minha proposta no artigo.
Em "História Geral do Brasil", de forma explícita, o comando político e administrativo do Brasil deve ser feito pela família real, liderada pelo Imperador D. João VI, uma vez que Varnhagen só admite a Independência do Brasil por conta da sua liderança estar nas mãos do sangue real. O Brasil deve favores a Portugal por conta de sua colonização que lhe trouxe a civilização. O bandeirante é visto como um herói que desbrava os sertões e povoa as áreas mais afastadas do poder central, garantindo a unidade geográfica e espacial do Brasil. O catolicismo como ponta de lança evangelizadora da " gente nômade", é o carro chefe que determina e legitima a colonização, pois Deus é quem envia Portugal para salvar da barbárie tal gente vagabunda, promíscua, imoral, antropofágica, e em muitos casos infiel ao seu salvador, o que legitima o massacre de várias tribos indígenas por suas rebeldias.
Varnhagen também sustenta que os índios deveriam sim trabalhar como mão-de-obra serviu, ao contrário do que pretendiam alguns evangelizadores como os Jesuítas. Desde 1760, o marquês de Pombal, então primeiro ministro D. José I de (1750 – 1777), já tinha suas discórdias para com os jesuítas, os expulsando do Brasil nesta data. A visão de Varnhagen já para os negros era outra. "Para ele, os traficantes negreiros fizeram um grande mal ao Brasil entulhando as suas cidades do litoral e engenhos de negrarias."(REIS, 2000, p. 42).
Para Varnhagen os traficantes negreiros cometeram o grande erro de entulharem as suas cidades com as negrarias trazidas do continente africano. Varnhagen ironicamente reconhece que os escravos não possuíam laços de identidade aqui do ladro do Atlântico, pois suas raízes encontravam-se todas do lado de lá, família, cultos religiosos e etc, mesmo reconhecendo que os negros tiveram sorte de terem tido contato com o cristianismo e a civilização. Na minha concepção após a leitura de Reis, compreendo o olhar de Varnhagen contrário a entrada de negro no Brasil, numa perspectiva de querer o embraquecimento da nação, uma vez que o negro foi a contra-mão da evolução racial para o Brasil, trata-se de percebermos a concepção epistemológica da historiografia de Varnhagen, que pretendem equiparar o Brasil com as nações européias em plena direção de uma suposta evolução. Trata-se de um discurso que quer a verdade histórica é científica.
"Varnhagen quis produzir a "verdade histórica" do Brasil com uma "histórica científica", isto é, documentada conforme o método, afastando o lendário e o maravilhoso e evitando os juízos de valor. Sua história, ele pretende que seja movida pelo amor à verdade e, assim como Ranke, ele quis narrar os eventos tal como se passaram. (REIS, 2000, p. 48)
Para concluir o artigo, como foi dito no seu início, problematizar e especificar a originalidade do discurso fundante de Varnhagen apesar de qualquer crítica que se faça, antes devemos reconhecer a sua configuração é importância historiográfica do século XIX. Confesso que, ao ter contato pela primeira vez com a síntese do discurso fundante de Varnhagen, mesmo sendo feito por um comentador, no caso José Carlos Reis, com "As Identidades do Brasil de Varnhagen a FHC", fiquei inquieto como o seu projeto de identidade nacional para o Brasil, órfão no início do século XIX de uma produção histórica que lhe dê credibilidade e unidade nacional.
À creditei de inócua, preconceituosa, racista, vazio de teoria e inconseqüente. Mas, a partir da minha inquietação por tal escrita, me dispus a analisá-la, e a minha sensibilidade do historiador falou mais alto, e pude perceber realmente que Varnhagen é digno do título, "Heródoto Brasileiro".Capistrano conclui enfaticamente sua avaliação da História geral do Brasil: "mãos a bolos! É preciso reconhecer nele o mestre da história do Brasil"(Abreu, 1975a)" (REIS, 2000, p. 30).
"Capistrano de Abreu" sofre grande influência do contexto e da obra de Varnhagen e é considerado como um dos seus maiores críticos, além de ser também um grande inovador da historiografia do Brasil, na segunda metade do século XIX, onde inaugura a hermenêutica que visa analisar de forma mais profunda o conhecimento das ciências sociais. Mas como não poderia deixar de ser e pela sensibilidade historiográfica que possuía, reconhece o discurso fundante de Varnhagen como ponto de partida para qualquer análise sobre história do Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA
- BLOCH, March Leopold Banjamim. Apologia da história, ou, O ofício de historiador; prefácio, Jacques Lê Goff; apresentação à edição brasileira, Lilia Moritz Schwarcz; tradução, André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. pp. 51 – 68.
- BOURDIEU, Pierre. " Capítulo V: A identidade e a representação – Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região". In.: "O poder simbólico". Lisboa, Difel/Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989. pp. 107 – 132.
- CERTEAU, Michel de. A Escrita da história; tradução de Maria de Lourdes Menezes ;*revisão técnica [de] Arno Vogel. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 68 – 69.
- REIS, J. C. Anos 1850: "Varnhagen: o elogio da colonização portuguesa". In: REIS, J. C. "As identidades do Brasil: de Varnhagen à FHC". Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2000.
- REIS, José Carlos. A história, entre a filosofia e a ciência. 2º ed. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. pp. 15 – 32.
Autor: Luciano Agra
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