A cultura do pensamento contemporâneo, herdeira do pensamento iluminista, ainda apregoa que a Idade Média foi um período envolto em trevas. Neste período, costuma dizer-se que não existiu um pensamento filosófico. Contudo, a tese de Etienne Gilson, em sua reflexão presente no texto O espírito da filosofia medieval, busca uma alternativa totalmente oposta ao problema que o Iluminismo pensou ter resolvido: há um pensamento cristão? Há uma filosofia cristã?
O estudo de Gilson é considerado o principal, do século XX, acerca de tal assunto. Ele mesmo inicia seu prefácio já colocando que é um tema difícil de ser definido. Entretanto, o grande desafio a Gilson é a própria pré-noção iluminista de que a Idade Média é um período cuja arte e literatura foram muito bem difundidas e desenvolvidas, mas, contudo, não apresenta uma produção filosófica por assim dizer. Analisando bem a produção do tempo medieval, há que se dar razão para a reflexão de Gilson. Para o autor, não só há uma produção filosófica, como, na Idade Média, ela encontra seu ápice daquilo que se poderia chamar de filosofia cristã.
Com isso, nasce um outro problema, semelhante à primeira pergunta: pode haver uma filosofia cristã? Até mesmo o autor diz que, em princípio, teve a tentação de negar a possibilidade de tal fato, como idéia. Mas, para identificar que existe uma filosofia que possa dizer-se cristã, sem deixar de ser filosofia, o passo seguinte seria demonstrar que os seus representantes mais eloqüentes se encontram na filosofia medieval.
Nossa reflexão não se limita em saber da existência ou não dos cristãos filósofos. O pensamento é se houveram e se se pode conceber a idéia de que existiram filósofos cristãos. A pergunta, portanto, se a própria noção de filosofia cristã tem sentido e se a mesma corresponde a uma realidade. Não se trata de saber se houve cristãos filósofos, mas de saber se pode haver filósofos cristãos.
Não há quem negue que as grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) foram verdadeiros berços para grandes nomes do pensamento ocidental. Tanto é que se nota na escola judaica, na mulçumana e na cristã a existência de homens que tentaram fazer a seu modo uma síntese entre filosofia e religião. O período da Escolástica é um bom exemplo na tentativa de se localizar pensadores cristãos que conciliaram a razão com a fé.
Para alguns, a escolástica se apresenta como uma colcha de retalhos mal tecida e elaborada por homens que, ingenuamente ou não, se apropriaram do pensamento grego, tentando fazer uma síntese que, na realidade, era impossível de ser feita. Por isso, há os que digam que tal apropriação se fez de forma indevida.
A síntese feita pelos escolásticos parece, conforme os pensadores do iluminismo, tentar, em certos momentos, conciliar seus dogmas religiosos com a filosofia platônica. Em outros momentos, parecem realizar um tipo de combinação desajeitada entre aristotelismo e cristianismo, tentando a todo custo fazer a conciliação entre filosofia e religião.
Os pensadores modernos costumavam dizer que o pensamento da Escolástica eram retalhos da filosofia grega costurados a uma teologia. E é quase tudo o que os pensadores cristãos nos deixaram, tomando emprestado de Platão e a de Aristóteles. Não é difícil imaginar que, para estes, o cristianismo em nada contribuiu para o progresso do pensamento filosófico da humanidade. Não é difícil também apreender o pressuposto segundo o qual a conclusão a que chegaram se torna perfeitamente inteligível. Ela consiste em estabelecer uma oposição essencial entre filosofia e religião. Esta oposição, que separa as duas coisas, é a seguinte: a filosofia pertence à ordem da razão e a religião se estende ao campo do irracional.
Assim como não pode haver acordo entre racionalidade e irracionalidade também não se pode estabelecer qualquer contato entre o que é racional e o que é irracional.Do lado cristão também não há unanimidade já que se admite que houve a Revelação e que esta modificou profundamente o exercício da razão, a tradição filosófica cristã não está totalmente de acordo a estabelecer os termos aos quais este encontro ocorreu ou possa ocorrer.
Após a Revelação, não se pode mais se entregar à razão pura como se a Revelação não existisse. Isso causaria os mesmos erros que cometeram tanto Platão quanto Aristóteles e muitos outros. O único modo seguro para se filosofar, sem cair em contradições, é tomar a Revelação por guia e procurar, na medida do possível, torná-la inteligível pela razão. Nisto consiste a filosofia para o cristão: procurar inteligir a Revelação.
Toda filosofia que pretender se bastar a si mesma incorrerá em erros piores, o que significa que o único método seguro consiste hoje em tomar a Revelação como guia a fim de alcançar a inteligência do seu conteúdo. É essa inteligência da Revelação que é a própria filosofia. Mas, se até certo ponto possa existir algum acordo, podemos constatar também algumas dificuldades. Estas se iniciam quando se resolve explicitar o modo como se deve entender a sentença do fides quaerens intellectum na filosofia. A forma como se compreende esta filiação, na qual a filosofia passa a ser tutelada pela teologia, é que causa o desacordo.
Muitos entendem, por isso, que reduzir pura e simplesmente a filosofia na fórmula do fides quaerens intellectum (a fé em busca do intelecto) é confundi-la com a teologia. É necessário, então, buscar outro modo de se estabelecer uma ligação entre fé e razão que não elimine a autonomia da filosofia. Como é possível estabelecer este acordo e esta concórdia entre filosofia e teologia sem que arruinar ambas?
A fides quaerens intellectum é o princípio de toda especulação medieval. Entretanto, isso também poderia parecer uma ruína da própria filosofia. Quem vai tentar eliminar este problema é a neo-escolástica (ou neotomismo), assumindo parte da posição dos racionalistas. De fato, para o neotomismo, não houve uma filosofia genuinamente filosófica. Salvo a de Santo Tomás de Aquino.
Foi para escapar desse perigo que certos neo-escolásticos acharam por bem adotar parcialmente a posição de seus adversários. Concedendo o princípio, tentam provar que nunca houve outra filosofia digna desse nome na Idade Média, além da de São Tomás. Se, por um lado, Anselmo e Boaventura absorveram a filosofia na teologia, já os averroístas sujeitaram-se aos mesmos erros a que estão propícios todos os que se recusam a receber qualquer auxílio da Revelação. Ambos fracassaram: uns porque acabaram por reduzir a filosofia a simples serva da teologia e, outros, porque comprometeram o seu filosofar às conclusões não tão racionais quanto as que pretendiam.
Tanto Santo Anselmo quanto São Boaventura partem da fé. Os averroístas encerram-se na razão, mas renunciam aceitar como verdadeiras as conclusões racionais mais necessárias. Só o tomismo se apresenta como uma verdadeira filosofia, pois consegue chegar a conclusões verdadeiramente filosóficas.
Por meio de um procedimento puramente racional, o tomismo se inclui no que se pode chamar de um espírito autenticamente filosófico: somente o tomismo se oferece como um sistema cujas conclusões filosóficas são deduzidas de premissas puramente racionais. Este acordo entre razão e fé, entre filosofia e teologia se realiza fundado no pressuposto segundo o qual a verdade nunca poderá contradizer a verdade. Porquanto, se uma conclusão filosófica é verdadeira nunca estará em desarmonia com a verdade da fé, pois a verdade só pode concordar com a verdade.
A diferença essencial entre um racionalista puro e um tomista reside no fato de que, se houver discordância entre as conclusões, o primado da fé permanece e o erro deve estar na conclusão filosófica. Sem dúvida, entre um neo-escolástico puro racionalista resta uma diferença fundamental. Para o neoescolástico, a fé permanece e toda discordância entre sua fé e sua filosofia é um sinal certo de erro filosófico. Portanto, a filosofia não concorda com a Revelação em virtude de ela ser cristã, mas por ser ela racional. Se existe concordância entre fé e filosofia, o único recurso legítimo que a Revelação pode acrescentar à razão, em filosofia, é o de apontar-lhe o erro para que ela a razão se critique e se corrija sozinha.
Se a filosofia for racional, ela será verdadeira. Gilson sintetiza, de forma muito feliz, esta posição dos tomistas ao dizer que, se uma filosofia é verdadeira, isso só pode se dever ao fato de ela ser racional. Mas, se ela merece o título de racional, isso não pode se dever ao fato de ela ser cristã. É por nisso que nenhum tomista se sentiria ofendido se alguém lhe dissesse que a sua filosofia não é uma filosofia cristã, embora não vá de encontro a nenhuma das verdades cristãs.
Se Tomás corrigiu Aristóteles, ele o fez racionalmente. Assumindo os princípios aristotélicos, Tomás corrigiu alguns, aprofundou outros, tirando deles todas aquelas conseqüências que faltaram às conclusões de Aristóteles. Deste ponto de vista, não existe qualquer intervenção da fé ou da Revelação nos aperfeiçoamentos que Tomás fez a Aristóteles. O tomismo seria um aristotelismo corrigido e completado, racionalmente, por São Tomás. Entre Tomás e Aristóteles existe apenas um homem debatendo com outro homem, não lhes é preciso acrescentar nem o adjetivo de cristão nem o de pagão.
No caso de haver discordâncias entre uma filosofia e a Revelação, tal fato não se dá porque esta filosofia não é cristã. Mas porque esta filosofia não é verdadeiramente uma filosofia, e sim uma deturpação desta. Da mesma forma, se uma filosofia se põe de acordo com os dados da fé, não é porque ela seja cristã, mas porque ela é uma filosofia e as suas conclusões se baseiam corretamente nos primeiros princípios da razão. Assim os tomistas proclamam uma relativa autonomia da filosofia.
Em última análise, a verdade filosófica para um tomista não está associada ao fato dela ser cristã, mas à sua racionalidade. O mais curioso a se notar, contudo, não é isso. A principal definição da posição destes tomistas racionalistas é a negação do conceito de filosofia cristã.
Recordem-se antes de tudo dos protestos veementes feitos pelos agostinianos de todos os tempos contra a paganização do cristianismo pelo tomismo. É que, para os agostinianos, uma filosofia só pode ser verdadeira se for cristã e para ser cristã precisa deixar de ser uma filosofia no sentido mundano. Já para os neotomistas, uma filosofia pode ser cristã, sem precisar contradizer os princípios cristãos e nem precisar ser cristã, ou seja, sem precisar recorrer à fé cristã.
Se, por um lado, é verdade que o neotomismo, em nome da autonomia, elimina o cristã da filosofia, por outro, é igualmente verdadeiro que o agostinismo exclui o conceito de filosofia para dar lugar à noção cristã do filosofar. Portanto, tentando definir o que seja uma filosofia cristã, os dois extremos só a tornam indefinível e sem sentido.
Antes de os tomistas negarem que no agostinismo se encontre alguma filosofia, são os agostinianos que se adiantaram em dizem que o tomismo não se manteve fiel à tradição cristã. Se alguns tomistas modernos negam que o agostinismo seja uma filosofia, os agostinianos da idade Média tomaram-lhe a dianteira negando que o tomismo fosse fiel à tradição cristã. A solução do problema, portanto, estaria no meio termo.
Não existe uma razão cristã. Entretanto, quando dizem que existe um uso cristão da razão, também não se está errando. Com efeito, se, por um lado, é verdade que a filosofia não tem religião, por outro, também é igualmente verdadeiro, que ter uma religião não é indiferente para quem filosofe. Pode ser que, falando abstratamente, a filosofia não tenha religião, mas tem-se o direito de perguntar se é indiferente que os filósofos tenham uma ou não.
Para um cristão, a razão não basta a si mesma. É um fato que a razão apenas não baste à razão. O que não significa que a filosofia cristã deva as suas conclusões à Revelação. A filosofia, propriamente falando, isso inclui a cristã, deve unicamente à razão as suas conclusões. Mas, nem Agostinho, nem tão pouco Anselmo, negaram isso.
Não devemos ignorar que, tanto em filosofia quanto em teologia, o método da sabedoria cristã é o mesmo: fides quaerens intellectum. Tornar a verdade acreditada em verdade que se sabe é um itinerário tanto para a teologia quanto para a filosofia cristã. No entanto, a aplicação deste método é diversa nas duas ordens tanto filosófica quanto teológica. Assim, das verdades contidas na Revelação descobrem-se algumas que podem ser conhecidas. O corpo da filosofia cristã é formado por estas verdades racionais que, muito embora reveladas, são naturalmente cognoscíveis.
O conteúdo da filosofia cristã é, portanto, o corpo das verdades racionais que foram descobertas graças à ajuda que a Revelação deu à razão. Cabe ao filósofo cristão, ao tomar contato com o dado revelado, discernir se ele é ou não cognoscível unicamente pela razão. O primeiro trabalho do uso cristão da razão é, portanto, investigar o que, na Revelação é inteligível à razão. Uma vez discriminado certo número de verdades que a razão pode por si só conhecer, deve o filósofo proceder de forma unicamente racional para alcançá-las novamente, só que desta vez como objetos da sua ciência.
Na verdade, a fé entra como uma luz para a razão, fazendo-a enxergar uma série de respostas que, ela mesma a razão poderá conquistar sozinha. Aquele que reconhecer, com humildade, que o objeto de seu estudo, no qual se aplica a sua filosofia, ele o deve à luz da fé, pode ser chamado de filósofo cristão e a sua filosofia de filosofia cristã. Étienne é muito claro neste ponto ao dizer que o filósofo cristão se pergunta é simplesmente se, entre as proposições que ele crê verdadeiras, não há um certo número que sua razão poderia saber verdadeiras. Mas, assim que encontra entre as suas crenças verdades que podem se tornar objetos de ciência, ele se torna filósofo, e, se é à fé cristã que ele deve essas novas luzes filosóficas, ele se torna um filósofo cristã.
O filósofo cristão é aquele que escolhe os seus problemas filosóficos à luz da Revelação cristã. Ora, como a Revelação cristã trata da salvação do homem por Deus, fica claro que a sua projeção na filosofia abarca apenas certo número de problemas muito bem definidos: Deus e a sua natureza; o homem: sua alma e natureza e o seu destino. Como a Revelação cristã nos ensina somente as verdades necessárias à salvação, sua influência só pôde se estender às partes da filosofia que concernem à existência de Deus e sua natureza, à origem da nossa alma, sua natureza e seu destino.
Muitas vezes podemos reconhecer um filósofo cristão pelos assuntos que lhe interessam ou por aqueles em que ele realmente se destaca. Sem desprezar os méritos indiscutíveis de Tomás de Aquino como comentador de Aristóteles, é preciso notar que em toda a filosofia de Tomás, ele tenha efetivamente ultrapassado e superado o seu mestre grego. Lá se encontra o que há de mais original e criativo na filosofia de Tomás de Aquino.
A questão não se pauta em diminuir os méritos como intérprete e comentador de Aristóteles e sim destacar as visões geniais pelas quais, prolongando o esforço de Aristóteles, ele o supera. Essas visões, quase sempre a propósito de Deus, da alma ou da relação da alma com Deus que vamos encontrá-las. O real é inesgotável e é impossível fazer uma síntese dele na sua totalidade. A fé, no entanto, ao filósofo cristão, possibilita fazer esta síntese do real, porque o simplifica. Uma filosofia norteada pela fé pode selecionar, o que constitui uma síntese original da realidade: Deus, o homem, e as relações do homem com Deus.
Assim, uma filosofia pode dizer-se cristã quando se mantiver nitidamente distinta da teologia, não abrindo mão do auxílio da Revelação cristã para escolher o que lhe interessa considerar. Atenuando os radicalismos opostos das duas escolas agostiniana e neotomista Gilson conclui uma definição de filosofia cristã que consegue, ao mesmo tempo, abarcar um caráter estritamente filosófico, salvaguardando toda a sua integridade exclusivamente racional, e preservar o âmbito em que o auxílio da Revelação cristã se faz indispensável. Ele chama a filosofia da Idade Média de filosofia cristã, distinguindo formalmente as duas ordens (teologia e filosofia) e considerando a Revelação cristã uma auxiliar indispensável da razão.
Referências bibliográficas:
GILSON, Etienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
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