quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Conquista e a colonização da América, A



 
Por Rafael Ruiz
 
 
 
A versão mais em voga da história da conquista e colonização da América foi descrita e popularizada sobretudo por historiadores e jornalistas anglo-americanos e franceses dos séculos XVIII e XIX – precisamente os povos que assumiram a hegemonia cultural do Ocidente no momento em que a influência espanhola declinava –, imbuídos em geral de um vigoroso preconceito anticatólico e anti-ibérico.
 
 
 
A leyenda negra que criaram deve-se em parte ao seu viés protestante ou iluminista, em parte à rixa que, durante os séculos XVI a XIX, opôs a Inglaterra e a França, por um lado, à Espanha e a Portugal pelo outro. Por intermédio dos enciclopedistas e dos historiadores agnósticos do século XIX (Michelet, Taine), essa versão reducionista e negativa impregnou as ciências humanas atuais, continuando a ser difundida sobretudo por servir de apoio a determinadas análises de tendência marxista. A sua fonte principal e quase única são os relatos de Bartolomé de las Casas, exagerados e passionais, embora inspirados por uma excelente intenção.


Motivações misturadas
Do ponto de vista jurídico o primeiro motivo da conquista da América foi a evangelização. É o que distingue nitidamente o empreendimento português e espanhol de todos os colonialismos anteriores e posteriores, desde os egípcios até os impérios coloniais europeus do século XIX e, na verdade, de todas as guerras de conquista que houve ao longo da História. A Recopilación de las Leyes de Indias confirma-o claramente:

“Os senhores reis, nossos progenitores, desde o descobrimento das nossas Índias Ocidentais, Ilhas e Terra Firme do Mar Oceano, ordenaram e mandaram aos nossos oficiais, descobridores, colonizadores e quaisquer outras pessoas, que, uma vez que chegassem àquelas províncias, procurassem logo dar a entender aos índios e aos moradores, através dos intérpretes, como tinham sido enviados para ensinar-lhes bons costumes, afastá-los dos vícios e de comer carne humana, instruí-los na nossa Santa fé católica para sua salvação” (Liv. I, Tít. I, Lei II).

Por outro lado, num só fôlego, a mesma lei acrescenta:

“... e atraí-los ao nosso senhorio, para que sejam tratados, favorecidos, defendidos como nossos outros súditos e vassalos”.

Os fins secundários e temporais – a grandeza da pátria, a glória pessoal e a riqueza – pareciam a todos indissoluvelmente vinculados ao fim principal. Os próprios soldados, em geral homens rudes e mais versados nas artes militares do que no catecismo, tinham consciência da prioridade do fim evangelizador sobre os outros; como diz ingenuamente Bernal Díaz del Castillo, soldado de Cortés e cronista da conquista do México, os motivos que os impeliam eram

“... servir a Deus, a sua Majestade, e dar luz àqueles que estavam nas trevas:.. e também ganhar riquezas, que é o que todos os homens geralmente procuramos” (cit. por Francisco Morales Padrón, Fisionomía de la conquista indiana, Escuela de Estudios Hispano-Americanos, Sevilha, 1955).

E o mesmo Cortês escreve num dos seus relatórios ao imperador:

“Estávamos na disposição de ganhar para Vossa Majestade os maiores reinos e domínios que havia no mundo. Além disso, ao fazer aquilo que, pelo fato de sermos cristãos, devíamos fazer, ganharíamos a glória no outro mundo, e, neste, conseguiríamos mais honra e renome que jamais uma nação conquistou até hoje” (ibid.).

Como ocorrera ao longo de toda a Idade Média, o temporal e o eterno estavam tão inextricavelmente entrelaçados na consciência de praticamente todos os protagonistas da conquista – soldados e sacerdotes, funcionários da coroa e simples desperados fora-da-lei –, que não lhes era possível perceber a contradição que havia entre os meios empregados (a guerra de conquista, com todas as suas cruéis conseqüências) e o desejo de difundir a verdade de Cristo. Uma vez enfronhados em guerras e intrigas, e expostos a enormes tentações de cobiça, sob a forma dos fabulosos tesouros asteca e inca, não admira nada que perdessem de vista facilmente a devida ordem dos fins...


Na raiz da modernidade
A conquista e colonização do Novo Mundo, na verdade, suscitou dois problemas que estão na própria raiz da modernidade: a questão da guerra justa e a questão da natureza humana e dos direitos e deveres dela decorrentes.

O Direito Romano, reintroduzido na Europa no século XIII e difundido pelos juristas que desejavam fortalecer o poder dos reis absolutistas em detrimento da autoridade do Papado, legitimava a guerra de conquista como o único meio definitivo de resolver as divergências entre os povos. Na prática, isso significava apenas reconhecer a realidade bruta dos fatos – todos os povos e civilizações que se conhecem, incluídos os índios americanos do Norte e do Sul, sempre a haviam praticado –, mas no âmbito da mentalidade cristã era um autêntico retrocesso, se considerarmos os esforços desenvolvidos pela Igreja para fazer cessar a violência entre as nações (cf. a este respeito Daniel Rops, História da Igreja, vol. II, cap. X, par. A paz de Cristo, e vol. III, cap. I, par. Havia uma Europa).

A iniciativa de formular a questão sobre o que era ou não guerra justa e se se podia falar de um direito de conquista coube aos teólogos Francisco de Vitória, Luís Molina e Francisco Suárez, catedráticos das universidades de Salamanca e Coimbra. Tanto na Universidade como na Corte e entre o povo, o debate que suscitaram ganhou proporções de uma “questão de consciência nacional”, e a opinião pública espanhola não poupou as críticas aos homens que tinham feito a conquista e aos meios que empregaram: Lope de Vega, na peça El Nuevo Mundo, diz sem rebuços que “so color de religión / van a buscar plata y oro” (At. I, c. III), e Cervantes não se peja de dizer, nas Novelas ejemplares, que a empresa das índias é “engano comum de muitos e remédio particular de poucos”, “refúgio de todos os desesperados da Espanha”.

“Em parte alguma se ventilaram os problemas éticos relativos às colônias com o ardor, a seriedade e a profundeza que os clássicos espanhóis consagraram ao estudo do direito natural e do direito das gentes no Século de Ouro”, diz o historiador alemão Höffner (Joseph Höffner, A ética colonial espanhola do Século de Ouro, Ed. Presença, Rio de Janeiro, 1977, pág. 16).

Em menos de cinqüenta anos – um recorde de velocidade para aqueles tempos – chegou-se a formular as medidas jurídicas possíveis na altura para defender os direitos dos povos conquistados (as Leyes Nuevas), fenômeno sem precedentes na História da humanidade: era, em certo sentido, uma revolução no mundo jurídico, pois exigia nada menos que uma redefinição dos próprios conceitos de liberdade, de direitos humanos e até do próprio ser humano:

“Encontramo-nos diante da questão capital empreendida pelo Renascimento: a valorização definitiva da dignidade humana e a declaração formal do conceito de liberdade” (Francisco Javier de Ayala Delgado, El descubrimiento de América y la evolución de las ideas políticas, em Arbor, n. 8, Madrid, 1945, pág. 311).

Com efeito, para a ordem política e jurídica medieval, baseada na “teoria das duas
espadas” (cf. História da Igreja vol. III, cap. V. par. Para quem o primado?), apenas o cristão era sujeito de direitos, na medida em que se encontrava inserido em duas ordens distintas mas harmonicamente complementares: a ordem natural, cujo chefe era o Imperador, e a ordem sobrenatural, cujo chefe era o Papa. Apesar das muitas lutas e conflitos práticos havidos entre os dois poderes (cf. idem, cap. V, par. A Igreja perante os poderes), o modelo teórico era perfeito e indiscutido: a noção de soberania estava inseparavelmente unida à religião católica, de maneira que só o monarca católico era legítimo; e da mesma forma só se podia falar em direitos e deveres da pessoa humana enquanto esta se encontrasse submetida ao imperador e à verdade católica (cfr. F.J. de Ayala Delgado, op. cit., pág. 314). Observemos que esse conceito continua em vigor hoje por exemplo nos Estados muçulmanos, e que essa mentalidade representava já um avanço nada desprezível com relação à civitas ou pólis antiga, em que era “cidadão” apenas quem pertencesse por nascimento a determinada casta ou estamento superior, como ainda continua a ocorrer na Índia.

Graças aos esforços dos teólogos e juristas espanhóis do século XVI, reformulou-se desde a base toda essa concepção da ordem política: reconheceu-se que a ordem social está baseada na natureza humana e não na religião. Conclusão fecunda em conseqüências: passavam a ser titulares de direito todos os seres humanos pelo simples fato de sê-lo; suprimia-se, ao menos em tese, a escravidão (com efeito, essa instituição inexistiu na América espanhola dos séculos XVII e XVIII, ao contrário dos Estados Unidos ou do Brasil); a legitimidade do poder temporal deixava de depender do credo religioso; e, por fim, abria-se a possibilidade de procurar a concórdia e a paz entre as nações, concebidas como agrupamentos humanos dotados de igual soberania, independentemente da sua religião.

Como é evidente, essas idéias levaram mais de quatro séculos para traduzir-se nos sistemas legais dos diversos Estados e sobretudo para impregnar a mentalidade das populações. A Declaração dos direitos do homem e do cidadão (1790) demoraria ainda mais de dois séculos, e seriam necessárias duas Guerras Mundiais para que começasse a impor-se a idéia de uma Sociedade das Nações, de um tribunal internacional de crimes de guerra, etc. Na verdade, esse processo de “fermentação” humanitária do direito e das mentalidades está ainda longe de completar-se, mas também não é pequeno o caminho que já se percorreu.


Acertos e desmandos
Para compreender essa época, precisamos compreender também que a Coroa espanhola e, em menor grau, a portuguesa delegaram a conquista, por assim dizer, à “iniciativa privada”: eram o descobridor, o guerreiro e mesmo o missionário que tinham de providenciar o financiamento, as embarcações, os homens, os armamentos e as provisões. E o risco corria igualmente a cargo desses particulares: se fracassavam, tornavam-se nulas todas as autorizações e concessões anteriormente recebidas do imperador; em contrapartida, quando triunfavam, tinham apenas de pagar o quinto de todos os bens móveis, apreendidos e eram geralmente recompensados com terras, funções de governo, títulos nobiliárquicos e, possivelmente, isenções tributárias.

A Coroa, por sua vez, fiscalizava como podia as expedições, fazendo-as acompanhar de notários, legistas e sacerdotes que se dedicassem à evangelização. Mas, a distâncias de 5.000, 10.000 ou 20.000 km por mar e terra, e na dependência de relatórios que chegavam com três, seis ou mais meses de atraso, se é que chegavam, essa fiscalização não era tarefa fácil... É natural que, nessas circunstâncias, a fase de conquista se desenrolasse em clima de “faroeste”, e que a ordem e a justiça dependessem na prática da qualidade moral dos particulares envolvidos na conquista: do conquistador, dos seus soldados, e dos colonos que os seguiam.

Por isso mesmo, no entanto, é caricaturesco e injusto traçar retratos genéricos do “conquistador sádico e cruel”. Não houve um protótipo geral, mas apenas indivíduos, homens de carne e osso, com virtudes e defeitos em proporções diversas. Cortés, de temperamento violento, foi ao mesmo tempo um administrador escrupulosamente honesto, clemente e justo, ao passo que Pizarro não hesitava em lançar mão da traição e da mentira. Da mesma forma, não eram iguais os soldados que os acompanhavam. A título de exemplo, basta lembrar que um dos infantes de Cortés quis estabelecer-se como eremita num antigo templo indígena destinado aos sacrifícios humanos, a fim de consagrar a sua vida à penitência pelos horrores que ali se tinham cometido.

Não há dúvida de que a conquista da América foi acompanhada de um sem-número de desmandos e crimes, embora não tenha sido mais sangrenta que o monótono desfile de violências que acompanhou e continua a acompanhar todas as guerras que houve e há sobre a face da terra. Em nenhum momento, porém, esses crimes foram legitimados pelo poder público como “necessidade histórica”, nem se revestiram do caráter de genocídio programado que caracterizou, por exemplo, a conquista do faroeste americano – para usar as palavras do general Custer (1876): “Índio bom é índio morto” – ou a colonização da Austrália. Ao contrário do que se deu em qualquer outra conquista de que temos notícia, a partir de 1542 as violências contra os indígenas foram sempre denunciadas e, na medida do possível, castigadas pela Coroa. A voz da justiça nem sempre conseguiu fazer-se ouvir, mas ao menos não cessou de clamar desde então.

Curiosamente, os ressentimentos entre colonizados e colonizadores na América são geralmente coisa recente, e apóiam-se menos em desmandos históricos do que em motivações políticas atuais. No primeiro momento e na maioria dos casos, uns e outros aceitaram a nova dominação com naturalidade, como parte da “ordem das coisas”. Garcilaso de la Vega, filho de uma princesa inca e de um conquistador espanhol, e autor da primeira Relación da conquista do Peru, narra sem ressentimentos e até com orgulho a tomada do império quíchua por Pizarro, precisamente um dos protagonistas mais dúbios da conquista. Não só não deplora a queda do Império inca, mas afirma explicitamente que se tratou de um fato providencial e agradece a Deus a possibilidade de que o seu povo tenha podido ter assim contacto com o cristianismo. É sem dúvida uma aplicação impressionante do velho provérbio que diz que “Deus escreve direito por linhas tortas”.


Períodos diferentes
Convém distinguir, ao apreciar o conjunto da atuação espanhola na América, entre o período da conquista e o da colonização. Na fase inicial dos descobrimentos e da conquista, até o falecimento da Rainha Isabel (1504), autêntica defensora da liberdade e da conversão dos índios, preponderaram as razões missionárias e políticas.

Já durante a primeira parte do reinado de Carlos V, enquanto o imperador se encontrava absorvido principalmente pelas questões européias – Alemanha, Flandres, França –, o fator econômico passou a ocupar o primeiro plano, atiçado pela descoberta das minas de ouro e prata do México, da Bolívia e do Peru; esses anos, entre 1510 e 1540, foram os dos piores desmandos dos conquistadores. Mais tarde, porém, quando o imperador voltou a sua atenção para os domínios de além-mar, e sobretudo depois que promulgou as Leyes Nuevas de 1542, entrou-se na fase de pacificação, em que os abusos iniciais foram reprimidos, a administração colonial ganhou corpo e começou realmente a obra de construção da América espanhola.

Com efeito, a América espanhola nunca chegou a ser considerada mera “colônia” no sentido moderno, isto é, como uma região que gozasse de um status jurídico inferior e dependente da metrópole. Desde muito cedo, o “Novo Mundo” foi organizado em Vice-reinos e Províncias, como o próprio território espanhol. O sistema social indígena foi integrado quase que imediatamente nas formas de governo colonial, que reconheciam, por exemplo, os cacicados das tribos indígenas. As famílias nobres indígenas tiveram os seus títulos e privilégios reconhecidos e “adaptados” – os condes de Montezuma, por exemplo, descendentes diretos do imperador asteca vencido, pertenceram até este século à alta nobreza espanhola. E mesmo o sistema de encomiendas, apesar dos abusos a que deu ocasião, não passou de uma medida de caráter provisório: no momento em que os índios estivessem em condições de igualdade cultural e econômica com os europeus, deviam receber de volta a liberdade e as terras.

As mesmas Leyes Nuevas introduziram avanços literalmente revolucionários, nunca dantes vistos na História das conquistas e dos impérios, que antecipariam em duzentos e cinqüenta anos a Declaração dos direitos do cidadão e em trezentos anos o direito trabalhista nascido na esteira dos abusos da Revolução industrial européia. Todos os índios eram declarados vassalos livres da Coroa de Castela (hoje diríamos “cidadãos”), aptos para trabalhar como e quando quisessem. Concedia-se-lhes expressamente o direito a umas condições mínimas de segurança no trabalho; para os que trabalhavam nas minas, estabeleciam-se quarenta dias de férias a cada cinco meses, e para as mulheres uma licença-maternidade que começava a partir do quarto mês de gravidez e durava até a criança cumprir três anos de idade. O próprio Rei passava a ser a instância jurídica competente para dirimir as causas litigiosas entre índios e espanhóis. Por fim, para garantir que essas leis fossem cumpridas, estabelecia-se que deviam ser enviadas a todos os religiosos que se ocupavam da instrução dos nativos e traduzidas para as línguas indígenas, a fim de que todos pudessem tomar conhecimento do seu conteúdo.

Também o esforço educativo foi impressionante: em menos de um século, a Espanha transferiu para o Novo Mundo toda uma elite cultural e pedagógica, constituída sobretudo pelos professores universitários franciscanos, dominicanos e jesuítas, que representavam o melhor da cultura européia de então. Em 1559, as ordens estabelecidas na Nova Espanha (México) informavam Filipe II de que “os franciscanos têm 380 religiosos e 80 conventos; os dominicanos 210 e 40 conventos, e os agostinianos 213 religiosos e 40 conventos” (Venancio D. Carro, op. cit., p. 84).

Esses números não deixarão de crescer ao longo dos séculos XVI e XVII, e logo se chegará a cinco e depois a dez mil religiosos que trabalham diretamente com os índios. Os franciscanos inauguraram já em janeiro de 1536 o Colégio de Santa Cruz de Santiago de Tlatelolco, onde se estudava “gramática latina, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia, música, elementos de Sagrada Escritura, cursos avançados de Religião, Pintura e até Medicina” (Pedro Borges, Análisis del Conquistador espiritual de América, Escuela de Estudios Hispano-Americanos, Sevilha, 1961).

Em 1551, menos de trinta anos depois da conquista, já havia Universidades no México e Lima (São Marcos), plenamente equiparadas à de Salamanca; antes de terminar o século XVI, havia-as igualmente em São Domingos, Quito e Cuzco; e, cem anos mais tarde, eram já catorze. Para efeitos de comparação: os primeiros cursos superiores de Direito no Brasil datam do século XIX. Igualmente introduziram-se desde o começo as Imprensas reais, num momento em que muitas cidades européias ainda careciam delas.




Rafael Ruiz
foi Professor de História de América Colonial da Universidade de São Paulo e leciona atualmente na FAAP.
 
 
Fonte: História da Igreja - Volume 5, Quadrante, 1999, pp. 280-284.

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