Por Alfonso Aguiló | ||||||
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PODE A CIÊNCIA CONTROLAR-SE A SI MESMA?
O
físico alemão Otto Hahn, inventor da fissão do átomo de urânio, estava
internado num campo de concentração inglês, junto com outros eminentes
cientistas. Quando, em agosto de 1945, recebeu a notícia de que
Hiroshima tinha sido arrasada por uma bomba atômica, sentiu um
profundíssimo sentimento de culpa. As suas pesquisas sobre a fissão do
urânio tinham acabado por ser utilizadas para produzir um massacre
terrível. Foi tal a sua angústia que tentou abrir as veias nos arames
farpados que cercavam o campo.
Depois
que os seus companheiros conseguiram dissuadi-lo, o velho professor
fez-lhes, desolado, a seguinte confissão: “Acabo de perceber que a minha
vida não tem mais sentido. Pesquisei pelo puro desejo de revelar a
verdade das coisas, e todo o meu saber científico acaba de se converter
num enorme poder aniquilador”.
A
experiência pessoal de Otto Hahn foi, na realidade, a experiência
amarga de toda uma época. Uma aflitiva impressão de fracasso invadiu os
espíritos de todos os que tinham lutado com tanta tenacidade por levar o
conhecimento científico à máxima altura possível, convencidos de fazer
com isso um grande bem à humanidade. Tinham trabalhado penosamente com a
profunda convicção de que o aumento do saber teórico e o incremento da
felicidade humana estavam inequivocamente vinculados. Acreditavam que
fomentar o conhecimento científico teria sempre um valor positivo, que
significaria automaticamente cotas mais elevadas de felicidade e de
dignidade. Pensaram que se tratava de um bem inquestionável, e que,
portanto, se traduziria indubitavelmente em bem-estar e perfeição para o
homem.
Mas esse entusiasmo plurissecular, que já tinha aberto fendas nas trincheiras de Verdun 1,
ruiu estrepitosamente com os horrores da Segunda Guerra Mundial. O
terrível poder destruidor das armas nucleares, os intensíssimos
bombardeios da população civil, o extermínio sistemático e profundamente
cruel de toda uma raça e um saldo de cinqüenta milhões de mortos
puseram tragicamente de manifesto que o saber teórico pode traduzir-se
num saber técnico, e este, por sua vez, num amplo poder sobre a
realidade, mas, por desgraça, todo esse domínio não leva automaticamente
a uma maior felicidade dos homens se aqueles que detêm esse poder não
possuem uma consciência ética proporcional à sua responsabilidade.
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(1) Uma das batalhas mais cruentas da Primeira Guerra Mundial (N. do E.).
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Após
séculos de febril incremento do saber científico, a idéia de que o
progresso humano é sempre contínuo e não pode haver retrocesso
revelou-se uma farsa irritante. O ideal do domínio científico e a
conseqüente forma de humanismo desfizeram-se em pedaços ao entrarem em
colisão com a obstinada realidade da história. Era patente que o futuro
não devia caracterizar-se por essa ingênua crença no progresso como
princípio motor de uma civilização, mas que era preciso alicerçá-lo em
valores mais altos e seguros.
HISTÓRIA DE UMA DESILUSÃO
O
psiquiatra austríaco Viktor Frankl, depois da sua experiência pessoal
em diversos campos de concentração, chegou à conclusão de que não foram
os ministérios nazistas de Berlim os verdadeiros responsáveis por
aquelas atrocidades, mas a filosofia niilista do século XIX. Se o homem é
um simples produto de uma natureza mutável, um simples macaco evoluído,
então, da mesma forma que o macaco pode ser enjaulado num zoológico, o
homem pode ser encarcerado num campo de extermínio. Se o homem é um
simples animal, ainda que extraordinariamente adestrado, e fazemos
sabonetes com gordura animal, por que não fazê-los com gordura humana?
O
filósofo Edmund Husserl, esclarecido pela falência do mito do eterno
progresso por ocasião da Segunda Guerra mundial – na qual viu, entre
outras coisas, aquela racionalização perfeita da matança em massa de
milhões de inocentes –, percebeu claramente que a ciência, por força do
seu método, não pode ser um princípio motor da vida humana. “O mundo da
objetividade científica – escreveu – é um mundo fechado e inóspito. A
forma pela qual o homem moderno, na segunda metade do século XIX, se
deixou determinar totalmente pelas ciências positivas e cegar pela prosperity
a elas devida, significou pôr de lado as questões decisivas para uma
humanidade autêntica. As ciências que só contemplam meros fatos fazem
com que os homens só enxerguem meros fatos”. Procurar o conhecimento
científico objetivo das coisas é lícito e fecundo. Mas considerar esse
modo de conhecer como modelo, como a única forma rigorosa de
conhecimento, é uma parcialidade inaceitável, já que empobrece
enormemente o homem.
A
Ilustração – o Iluminismo – pretendia alcançar o ideal renascentista
que sonhava entregar o homem a si mesmo, torná-lo livre, permitindo-lhe
viver sob o império exclusivo da razão. A esperança de que o homem
atingiria a felicidade para sempre num mundo já dominado e sem segredos,
por meio de uma ciência que tudo conheceria e tudo poderia, veio a ser
um sonho que nunca se alcançaria e que o horror gigantesco das duas
Guerras Mundiais converteu em algo pior que um pesadelo. O domínio da
realidade escapava ao molde estreito do pensamento racionalista. E o
perigo não derivava da ciência em si, mas dessa mentalidade que levava a
considerar que só se pode conhecer aquilo que é mensurável,
controlável, verificável, e a desprezar os aspectos da realidade que
resistem a esse tipo de controle e cálculo. Essa pretensão de domínio
sem limites deixava o homem numa situação de desamparo. Logo se viu que a
ciência, que tinha dominado com o seu prestígio o Século das Luzes, não
podia, por si só, plenificar a vida do homem. Não era a sua missão. A
ciência não fala de valores, de sentido, de metas nem de fins, e o ser
humano precisa de tudo isso para preservar a sua dignidade e ser feliz.
O otimismo ilustrado previra horizontes paradisíacos, mas a utopia científica mostrou como nunca a sua impotência.
Não
há dúvida de que o progresso científico foi grande e que esse
desenvolvimento é uma coisa boa, ou, pelo menos, não tem por que ser má.
Mas, hoje em dia, muito poucos acreditam que tudo isso seja a panacéia,
que possa fazer algo mais do que transferir a inquietação de uns temas
para outros. O domínio das coisas é muito elevado, mas necessita de um
humanismo válido que lhe dê sentido. Porque, do contrário, pode
embriagar-se com os seus próprios êxitos e crescer em direções
aberrantes para a dignidade do homem.
A
técnica permite desenvolver meios de comunicação extremamente
poderosos, rápidos, atraentes, sugestivos..., mas esses meios podem ser
uma arma de primeira grandeza para manipular as consciências, moldar as
vontades e os sentimentos dos homens. A ciência precisa de alguns limites
para a sua pretensão de soberania. Toda a grande conquista traz consigo
uma inevitável ambivalência: um avanço num aspecto e um retrocesso em
outro, talvez não menos valioso. O aumento de poder não corre sempre
paralelamente ao aumento do domínio do homem sobre esse poder. A
ciência não pode abandonar-se à sua própria dinâmica, mas deve ser
regulada por uma instância externa que a oriente e lhe dê sentido.
O PROGRESSO CIENTÍFICO IMPLICA UM DECLIVE RELIGIOSO?
A
Idade Moderna começou por cultivar insistentemente as questões de
método. Bacon, Descartes e Spinoza, por exemplo, concentraram a sua
filosofia em torno da busca de um método rigoroso que lhes permitisse
chegar à certeza e assentar a vida sobre convicções sólidas,
inquebrantáveis, inexpugnáveis.
Como
as ciências avançam sobre dados seguros e conferidos, verificados pela
experiência, foram surgindo pensadores convencidos de que, sempre que a
ciência descobria um segredo, a religião dava um passo atrás.
Parecia-lhes
que o progresso da ciência reduzia inexoravelmente o domínio do
religioso, cada dia mais confinado. Em contraposição ao que consideravam
o crédulo espírito medieval, o homem moderno haveria de encontrar,
apenas com a força da sua razão, um método sem fendas. E o grande modelo
do pensamento autêntico era, para eles, o saber matemático.
Se
se trabalha com a devida lógica, articulando bem os diversos passos do
raciocínio – afirmavam –, chega-se em matemática a conclusões
apodícticas, inquestionáveis. A ordem no raciocínio torna-se a chave do
pensamento e do conhecimento retos. E essa ordem é estabelecida pela
razão, pois a razão é o grande privilégio do homem. Por esse caminho –
acabavam por concluir –, o homem basta-se a si mesmo, já que a razão lhe
oferece recursos de sobra para descobrir as leis da realidade e
conseguir um rápido domínio sobre ela.
Mas
de novo a passagem do tempo veio a mostrar como esse domínio só é
possível em termos quantitativos, naquilo que pode submeter-se a cálculo
e medida. Mas o espírito escapa ao método matemático e à lógica
cartesiana. Ao possibilitar a opção livre, o espírito torna possíveis
muitas coisas que denunciam a insuficiência do modelo racionalista.
Poderiam
citar-se muitos exemplos. Um dos mais característicos é a tentativa
racionalista de explicar a inteligência humana. É difícil saber
exatamente o que é o pensamento, mas, se eu reduzo o problema a uma
questão de neurônios, posso conseguir uma tranqüilizadora impressão de
exatidão: 1.350 gramas de cérebro humano, constituído por 100.000
milhões de neurônios, cada um dos quais forma entre 1.000 e 10.000
sinapses e recebe a informação que lhe chega dos olhos através de
1.000.000 de axônios acumulados no nervo ótico. Por sua vez, cada célula
viva pode ser explicada pela química orgânica.... Deste modo, posso
pretender explicar a inteligência num plano biológico, a biologia em
termos de processos químicos e a química em forma de matemática.
Pois
bem, qualquer leitor medianamente crítico perguntar-se-á o que têm a
ver as porcentagens de carbono e hidrogênio, os neurônios e toda a
matemática associada a esses processos, com algo tão humano e tão pouco
matemático como conversar, entender uma piada, captar um olhar de
carinho ou compreender o sentido da justiça.
A
ciência moderna, com as suas descobertas maravilhosas, com as suas leis
de uma exatidão assombrosa, oferece a tentação – um empenho que se deu
em Descartes com uma força irresistível – de querer conhecer toda a
realidade com uma exatidão matemática. Mas costuma-se esquecer algo
essencial: que a matemática é exata à custa de considerar unicamente os
aspectos quantificáveis da realidade. E reduzir toda a realidade ao
quantificável é uma notável simplificação, é um reducionismo.
Poderíamos
replicar como aquele velho professor universitário, quando um aluno
fazia alguma afirmação reducionista: “Isso é como se eu lhe perguntasse o
que é esta mesa, e você me respondesse: cento e cinqüenta quilos”. As
grandezas matemáticas prestaram e prestarão um grande serviço à ciência,
e à humanidade no seu conjunto, mas sempre prestaram um péssimo serviço
quando se quis empregá-las de um modo exclusivista.
A
totalidade do real nunca poderá ser expressa só em cifras, porque as
cifras expressam unicamente grandezas e a grandeza é apenas uma parte da
realidade. E não é questão de dar mais números ou com mais decimais.
Por muitos ou muito exatos que sejam, oferecem sempre um conhecimento
notoriamente insuficiente. Você pesa 70 quilos, mas não é 70 quilos. E
mede 1,83 metros, mas não é 1,83 metros. As duas medidas são exatas, mas
você é muito mais que uma soma exata de centímetros e quilos. As suas
dimensões mais genuínas não são quantificáveis: não podem ser
determinadas numericamente as suas responsabilidades, a sua liberdade
real, a sua capacidade de amar, a sua simpatia por tal pessoa ou a sua
vontade de ser feliz.
Não
querer reconhecer uma realidade alegando que não pode ser medida
experimentalmente seria proceder mais ou menos como um químico que se
negasse a admitir as propriedades especiais dos corpos radioativos sob o
pretexto de que não obedecem às mesmas leis que explicam o que acontece
com os outros corpos já conhecidos.
Acima
da ciência há outra face da realidade: a mais importante, e também a
mais interessante do ser humano, aquela em que aparecem aspectos tão
pouco quantificáveis como, por exemplo, os sentimentos – não é possível
pesá-los, mas nada pesa mais do que eles na vida.
Um
pensamento ou um sentimento não podem honestamente ser qualificados
como materiais. Não têm cor, sabor ou extensão, e escapam a qualquer
instrumento que sirva para medir propriedades físicas. “Os fenômenos
mentais – afirma John Eccles, Prêmio Nobel de Neurocirurgia –
transcendem claramente os fenômenos da fisiologia e da bioquímica”.
“A
ciência, apesar dos seus progressos incríveis – escreve o médico e
pensador Gregorio Marañón –, não pode nem poderá nunca explicar tudo.
Cada vez ganhará mais terreno no campo daquilo que hoje parece
inexplicável. Mas os limites fronteiriços do saber, por muito longe que
cheguem, terão sempre pela frente um infinito mundo de mistério”.
A FÉ DESAPARECERÁ QUANDO A SOCIEDADE AMADURECER?
Em
um de seus livros, López Quintás conta que um dia, ao entardecer,
depois de visitar a catedral de Notre-Dame, enquanto vagueava pela velha
Paris, deparou, sem querer, com um pequeno edifício abandonado, com as
suas sórdidas janelas cruzadas por sarrafos de madeira. Aquela
construção quase em ruínas era o famoso “Templo da Nova Religião da
Ciência” que o filósofo francês Augusto Comte tinha erigido fazia século
e meio.
O
contraste foi tão brusco como expressivo. O templo com o qual se
pretendera dar culto ao progresso científico estava em ruínas. A velha
catedral, pelo contrário, irradiava as suas melhores galas, como na sua
brilhante época medieval. A música combinava nela com a harmonia das
linhas arquitetônicas, com as belas palavras dos oradores, com o
magnífico esplendor litúrgico que num dia de Natal, anos atrás,
emocionara o grande poeta Claudel, até levá-lo à conversão.
A
história daquele templo esquecido está aparentada com a da Ilustração,
que no seu tempo se ergueu com o sonho de “despojar o homem dos grilhões
irracionais das crenças e conhecimentos supersticiosos baseados na
autoridade e nos costumes”. O pensamento ilustrado da Enciclopédia
considerava os conhecimentos religiosos como “simples e ingênuas
explicações sobre a vida dadas pelo homem não-científico”. Na sua
aversão à fé, uma multidão de pensadores deleitava-se em atribuir a
origem mais baixa possível ao sentimento religioso. Concebiam os nossos
antepassados como “seres perpetuamente atemorizados, empenhados em
conjurar as forças hostis do céu e da terra mediante práticas
irracionais”. Viam a Deus como um simples “produto do medo das
civilizações primitivas, num tempo em que esses espíritos atrasados
ainda acreditavam em fábulas”.
Sentiam-se
chamados a “libertar toda a humanidade daquele lamentável estado de
ignorância”. A fé acabaria por desaparecer à medida que a sociedade
fosse amadurecendo. “A deusa Razão encostaria num canto essa ignorância,
iluminaria o caminho e dirigiria com mão segura os destinos da
humanidade”.
Pensavam
que a tendência que levava a buscar nos deuses uma razão de existir
pertencia a um estágio primitivo da vida humana, destinado a dar
passagem ao pensamento filosófico e, mais adiante, a ceder o lugar ao
conhecimento científico, que conferiria ao homem a primazia absoluta no
Universo e o situaria na maioridade.
A
teoria de Comte sobre a evolução humana através dos três estados –
religiosidade, pensamento filosófico e conhecimento científico – gozou
na sua época de grande aceitação e em sua honra foi erigido aquele
templo dedicado à “Nova Religião da Ciência”.
– Não é curioso que a ciência adquirisse essa faceta religiosa?
Foi
efetivamente um curioso fenômeno de substituição. Fascinado pela
ciência, o homem elevou-a até ocupar o lugar do sagrado. Mas não era um
simples conflito entre a ciência e a fé. Com efeito, entronizar uma
bonita mocinha parisiense na catedral de Notre-Dame – como fizeram
durante a Revolução Francesa –, dando-lhe o título de “Deusa Razão”, não
parece que fizesse parte das ciências experimentais. Por trás de tudo
aquilo latejava o empenho ateu de proclamar a salvação da humanidade por
si mesma, e o advento de uma sociedade iluminada unicamente pela razão
humana.
Passaram-se
menos de dois séculos, e o estado de abandono em que se encontra hoje
aquele templo laico é talvez um fiel reflexo do abandono da concepção do
homem que tanta força teve na sua época. Aquela ilusão segundo a qual o
advento da era científica permitiria eliminar o mal do mundo acabou por
ser um doloroso engano. As suas hipóteses acabaram por estar mais
impregnadas de ingenuidade do que a que eles atribuíam às épocas
históricas anteriores.
A CIÊNCIA PODE EXPLICAR TUDO?
Um
olhar sobre o progresso científico com um pouco de perspectiva
histórica deixa-nos espantados com a rapidez com que as máquinas são
ultrapassadas e vão parar nos museus. Muitas afirmações das revistas
científicas atuais provavelmente serão motivo de riso ou de assombro
para as gerações futuras, talvez em menos tempo ainda.
A
história da ciência adverte-nos, com teimosa insistência, sobre um fato
irrefutável: poucas teorias científicas conseguem manter-se em pé,
mesmo que por poucos séculos; muitas vezes, só por alguns anos; e em
alguns casos, menos ainda. A maioria das afirmações da ciência vão sendo
substituídas, uma atrás da outra, pouco a pouco, por outras explicações
mais complexas e mais fundamentadas dessa mesma realidade. Eram
hipóteses tidas como certas durante uma série de anos, ou de séculos, e
que um dia se descobre que estão superadas. Umas vezes, são englobadas
dentro de teorias mais completas, das quais a antiga hipótese é um
corolário ou um simples caso particular. Outras, ficaram obsoletas e
desapareceram por completo do âmbito científico. A postura própria da
ciência experimental deve ser, portanto, extremamente cautelosa nas suas
afirmações.
“Uma
cilada perniciosa – escrevia John Eccles pouco depois de ter recebido o
Prêmio Nobel pelas suas pesquisas em neurocirurgia – surge da pretensão
de alguns cientistas, mesmo eminentes, de que a ciência não demorará a
proporcionar uma explicação completa de todos os fenômenos do mundo
natural e de todas as nossas experiências subjetivas. É uma pretensão
extravagante e falsa, que foi qualificada ironicamente por Popper 2 como «materialismo promissório».
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(2) Karl Popper (1902-1994), a maior autoridade em filosofia da ciência do século XX (N. do E.).
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“É
importante reconhecer que, mesmo que um cientista possa manifestar essa
pretensão, não se comportaria como cientista, mas como um profeta
mascarado de cientista. Isso seria cientificismo, não ciência, embora
impressione fortemente os profanos que pensam que a ciência produz de
forma incontroversa a verdade.
“O
cientista não deve pensar que possui um conhecimento certo de toda a
verdade. O máximo que nós, os cientistas, podemos fazer é chegar mais
perto de um entendimento verdadeiro dos fenômenos naturais mediante a
eliminação de erros em nossas hipóteses. É da maior importância para os
cientistas que apareçam perante o público como o que realmente são:
humildes buscadores da verdade”.
Em
contrapartida, a imodéstia costuma caminhar a par da ignorância. A
auto-suficiência com que alguns falam reflete uma atitude muito pouco
científica, pois os cientistas sensatos nunca conferem a categoria de
dogma às suas hipóteses. O cientificismo orgulhoso prestou sempre um
péssimo serviço ao rigor da verdadeira ciência.
CIENTISTAS QUE PONTIFICAM SOBRE FILOSOFIA?
Os
cientistas sensatos – além de se vigiarem a si mesmos para não se
converterem em personagens dogmáticos – procuram basear sempre as suas
afirmações científicas em comprovações que sigam com rigor o método
científico. Cuidam, pois, de não impor como científicas afirmações que,
no fundo, se apóiam propriamente em razões de ordem filosófica.
– Penso que, se são cientistas, o que dizem estará baseado no método científico, que é aquele que conhecem, não é assim?
Certamente,
a maioria dos cientistas comporta-se desse modo, e com grande
honestidade. Mas há alguns que são menos honestos nas suas afirmações,
embora, às vezes – para desprestígio da verdadeira ciência –, sejam mais
conhecidos nos meios de comunicação. São figuras que têm uma certa
habilidade para meter-se furtivamente no vizinho campo da filosofia. E
isso não nos deve estranhar, pois já dizia Einstein que todo o
pesquisador científico é uma espécie de metafísico disfarçado, por mais
positivista que se considere.
– Mas têm todo o direito do mundo de filosofar, se assim o desejam, não é?
Sem
dúvida. Nem as ciências especulativas nem as experimentais entendem de
exclusivismos. Estão abertas a todos. Mas em todas se deve exigir que se
cumpram as regras e o método próprios da ciência em que se está
trabalhando. Não é legítimo que se pretenda impor especulações
filosóficas em nome do método científico.
Se
alguém, como cientista experimental, faz uma afirmação científica, deve
fornecer dados empíricos que avalizem essa afirmação. Se a afirmação
não é experimental, mas especulativa, deve fornecer as razões
necessárias de acordo com as normas de um bom trabalho filosófico. Mas
não goza de nenhum privilégio nesse campo, por mais que seja um bom
cientista. O que não seria lícito é que fizesse conjecturas derivadas da
razão e as apresentasse como demonstradas experimentalmente. E isso é o
que fazem alguns, que, dando um pulo sigiloso, se metem de roldão em
campo alheio, e falam dali querendo fazer-nos ver que falam de outro
lugar.
– Quer dizer, é como um pretexto para fugir ao método científico.
Exato.
E não é que o façam todos nem continuamente. Fazem-no apenas alguns e
em algumas ocasiões, e, às vezes, sem que eles mesmos o percebam. O
problema é que costumam mover-se aos tropeções no campo da filosofia e
passeiam por ela como um rinoceronte numa loja de porcelanas, fazendo
conjecturas filosóficas bastante curiosas.
– De
qualquer maneira, também não é mau fazer conjecturas de vez em quando.
Não havemos de estar sempre limitados ao estritamente demonstrado.
Com
certeza. Mas então é preciso distinguir bem entre as conjecturas e as
afirmações da ciência. Assim como, por exemplo, por um princípio ético
elementar os profissionais dos meios de comunicação devem distinguir o
que é propriamente a notícia do que é a sua opinião sobre essa notícia,
os cientistas têm o dever de fazer também essa distinção entre o que
comprovaram cientificamente e o que é mera especulação pessoal.
DEMONSTRAR QUE DEUS NÃO EXISTE?
Narrando
a história da sua conversão, o professor de Oxford C.S. Lewis explicava
como foi que percebeu, num momento concreto da sua vida, que o seu
racionalismo ateu da juventude se baseava inevitavelmente no que ele
considerava como as grandes descobertas das ciências. E o que os
cientistas apresentavam como certo, ele o assumia sem conceder o menor
espaço à dúvida.
Pouco
a pouco, à medida que ia amadurecendo o seu pensamento, espatifava-se,
uma e outra vez, contra um escolho que não conseguia superar. Ele não
era cientista. Tinha, portanto, que aceitar essas descobertas por
confiança, por autoridade..., como se fossem, em última análise, dogmas
de fé científicos. E isso ia frontalmente contra o seu racionalismo.
Relatava-o
passados anos, espantando-se com a ingenuidade da sua juventude. Sem
quase saber por quê, vira-se envolvido numa credulidade que agora lhe
parecia humilhante. Sempre tinha acreditado, às cegas, em praticamente
tudo o que aparecesse escrito em letra impressa e assinado por um
cientista. “Na época, ainda não fazia a menor idéia – dizia – da
quantidade de tolices que existem no mundo escritas e impressas”. Agora
parecia-lhe que essa candura juvenil o tinha arrastado a uma inocente
aceitação rendida de um dogmatismo mais forte que aquele do qual estava
fugindo. Os cientistas, aos olhos do grande público, têm em seu favor
uma grande vantagem: o enorme complexo de inferioridade que o homem
comum sente perante a ciência.
– E
se a ciência demonstrar um dia que Deus não existe? Porque muita gente
pensa que chegará um dia em que a ciência conseguirá prescindir do que
chamam a hipótese de Deus, forjada nos obscuros séculos da ignorância...
É
um velho temor que surge, às vezes, mesmo entre os que crêem, excitado
pela força divulgadora do ateísmo científico. No entanto, o temor do
crente perante a ciência não faz nenhum sentido. Se demonstrar com
seriedade a existência de Deus pode ser uma tarefa trabalhosa para a
filosofia, demonstrar a sua inexistência é para a ciência uma tarefa
impossível.
O
objeto da ciência é só o observável e o mensurável, e Deus não é nem
uma coisa nem outra. Para demonstrar que Deus não existe, seria preciso,
como vimos, que a ciência descobrisse um primeiro elemento que não
tivesse causa, que existisse por si mesmo, e cuja presença explicasse
tudo o mais sem deixar nada de fora. E se pudesse descobri-lo – o que
não conseguirá, porque está fora do seu âmbito de conhecimento –, seria
precisamente isso que nós chamamos Deus.
Robert Jastrow, diretor do Goddard Institute of Space Studies,
da NASA, e grande conhecedor dos últimos avanços científicos
relacionados com a origem do Universo, dizia: “Para o cientista que
passou a vida acreditando no ilimitado poder da razão, a história da
ciência desemboca num pesadelo. Escalou a montanha da ignorância, e está
a ponto de conquistar o cume mais alto. E quando está subindo o último
penhasco, saem para lhe dar as boas-vindas um monte de teólogos que
estavam sentados lá em cima faz muitos séculos”.
CIENTISTAS QUE CRÊEM?
– Alguns
estão persuadidos de que a ciência e a fé são incompatíveis. Dizem,
como Laplace, que “Deus é uma hipótese da qual não têm nenhuma
necessidade”. E afirmam que são precisamente os cientistas quem costuma
negar que se possa conhecer a Deus.
É
verdade que alguns cientistas pensam assim. No entanto, muitíssimos
outros – de indubitável e reconhecido prestígio – não hesitam em afirmar
que crêem, e não lhes parece que a fé seja de maneira nenhuma um
empecilho para as suas pesquisas; pelo contrário, afirmam que a
verdadeira ciência, quanto mais progride, mais descobre a Deus. Os
conflitos entre a fé e a razão foram sempre causados pela ignorância dos
defensores de um ou de outro lado.
O
próprio Albert Einstein, por exemplo, autor da teoria da relatividade,
afirmava que “a religião sem a ciência estaria cega, e a ciência sem a
religião estaria coxa”.
Newton
afirmava que “há um ser inteligente e poderoso... que governa todas as
coisas não como a alma do mundo, mas como Senhor do Universo, e, por
causa do seu domínio, é chamado Senhor Deus, Pantocrator”.
O
famoso prêmio Nobel alemão Werner K. Heisenberg, um dos principais
criadores da Mecânica Quântica e formulador do conhecido Princípio da
Indeterminação que leva o seu nome, ao passar por Madrid em 1969
afirmava: “Creio que Deus existe e que dEle procede tudo. A ordem e a
harmonia das partículas atômicas têm que ter sido impostas por alguém”.
Max Planck, outro alemão ganhador do prêmio Nobel, que formulou a teoria dos quanta,
é ainda mais explícito: “Em todos os lugares e por mais longe que
dirijamos o nosso olhar, não somente não encontramos nenhuma contradição
entre a religião e a ciência, mas precisamente um pleno acordo nos
pontos decisivos”.
Von
Braun, que conseguiu levar o primeiro homem à Lua, assegurava que
“quanto mais compreendemos a complexidade da estrutura atômica, a
natureza da vida ou a estrutura das galáxias, mais encontramos novas
razões para nos enchermos de admiração perante os esplendores da Criação
divina”.
O
físico britânico Paul Davies assegura que a ciência não pode responder
às questões últimas, e que tem de existir algum plano superior capaz de
explicar a vida humana. Para Davies, “é totalmente inviável atribuir a
existência do homem ao simples jogo acidental de forças cegas da
natureza: a espantosa racionalidade da natureza – com um grau
verdadeiramente incrível de organização em diferentes níveis que se
entrecruzam e complementam – não pode ser fruto de simples acasos”.
Alexis
Carrel, prêmio Nobel de Medicina, inicialmente um positivista
incrédulo, mas convertido mais tarde ao catolicismo, foi testemunha
direta em Lourdes de uma cura instantânea e inexplicável, e dizia:
“Pouco espírito de observação e muitas teorias levam ao erro. Muita
observação e poucas teorias levam à verdade”.
A
multiplicação deste tipo de testemunhos tão qualificados acabou por
provocar uma reviravolta contra essa mentalidade de agnosticismo
cientificista. É como se os agnósticos tivessem subestimado o poder da
inteligência humana para chegar a Deus através da ciência 3. Um editorial da revista Time
comentava com espanto essa mudança dentro do mundo científico: “Através
de uma silenciosa revolução no pensamento e na argumentação – uma
revolução impensável faz vinte anos –, é como se Deus estivesse
preparando a sua volta”.
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(3) Sobre
este tema, e outros testemunhos de cientistas, ver Jorge Pimentel
Cintra, Deus e os cientistas, Quadrante, São Paulo, 1990 (N. do E.).
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A RAZÃO PRECISA DA FÉ?
O
combate que o homem trava contra o mal excede infinitamente os meios da
razão e da ciência. É o que demonstram fatos tão atuais como o racismo,
a droga ou o álcool. Ou como todos esses terríveis crimes cometidos por
totalitarismos ateus sistemáticos e pretensamente científicos ao longo
do século XX: desde o genocídio nazista de Hitler até o de Pol Pot no
Camboja, passando pelos do leninismo, do stalinismo ou do maoísmo.
O
pior é que a maior parte desses crimes em massa foram cometidos em nome
de teorias que, na sua época, receberam o aplauso de milhões de
pessoas. Foram autênticos infernos fabricados por homens que procuravam
um mundo perfeito que se bastasse a si mesmo e já não tivesse
necessidade de Deus.
E
assim como, lendo Lênin, se podia notar que os direitos do indivíduo
não iam ser respeitados num sistema comunista, do mesmo modo, estudando
as premissas da Ilustração, viu-se claramente que a Modernidade não
atenderia às necessidades globais do ser humano. Não basta a razão para
que uma sociedade seja justa, solidária e equilibrada. Para que haja
equilíbrio na pessoa e na sociedade, é preciso atender, juntamente com a
razão, à vontade e à sensibilidade. A pessoa e a sociedade devem ter
por objetivo procurar o bem, a verdade e a beleza; e isso significa
falar de vontade, inteligência e sentimentos; e, por sua vez, de ética,
de ciência e de arte. Quando se idolatra um método da inteligência, como
é a razão, sem elevar à sua altura a ética e a estética,
desequilibram-se o indivíduo e a sociedade. Esse foi o fracasso da
Ilustração.
Fracassou
por ter pensado que da razão deriva automaticamente a ética, coisa que
se demonstrou falsa ao ser confrontada com a realidade. A razão não pode
ser salva pela razão. Isso seria ilusório. Esses crimes demonstraram o
que o homem pode chegar a fazer. E vimos co, mo a , razão não os
impediu.
Os
ilustrados pensavam que, mostrando ao homem o que é racional, este o
adotaria, e a razão seria suficiente para organizar a sociedade. Mas não
foi assim. Não basta proclamar o que é racional para que os homens o
pratiquem.
O
comportamento humano está cheio de sombras e de matizes alheios à
razão, que desembestam cada qual por sua conta movendo as molas da
vontade e do coração. Reconhecer os perigos que a razão encerra – afirma
Jean-Marie Lustiger – é salvar a sua honra. Conceber a razão como a
grande soberana, independente do bem que o homem deve procurar, é mais
ou menos como pôr-se nas mãos de um computador: é um instrumento muito
capaz, processa grande quantidade de dados que toma do exterior, todo o
seu desenvolvimento é perfeitamente lógico, mas alguém tem de garantir
que está bem programado. A verdadeira fé é um guia insubstituível, pois a
razão pode extraviar-se.
Não
quero, com isto, menosprezar a razão, antes pelo contrário. A razão é
uma das mais nobres capacidades que distinguem a espécie humana, e
alegra-nos ver os seus triunfos, bem como as conquistas da ciência e a
sua luta por construir um mundo melhor. Mas convém nunca esquecer a
limitação humana, e igualmente a ordem natural imposta por Deus, que
permite ao homem preservar a sua dignidade e evitar muitos erros.
A
história está cheia de cadáveres ideológicos, e ninguém acha estranho
encontrá-los perfeitamente alinhados quando olha para trás com a
disposição de aprender. E, entre eles, espalhados ao longo dos séculos,
pode-se ver toda uma legião de profetas que foram anunciando – sobretudo
nos últimos duzentos anos – o próximo e definitivo desaparecimento da religião e da Igreja.
No
entanto, a história mostra que são precisamente aqueles que, com tanta
paixão, lançam essas condenações e essas profecias os que desaparecem
uns após outros, enquanto a Igreja continua adiante depois de dois mil
anos, e a religiosidade continua a ser uma constante em todas as
civilizações de todos os tempos.
A
Igreja, que presenciou catástrofes que varreram impérios inteiros,
testemunha pela sua mera subsistência a força que palpita nela. “Os
povos passam – observava Napoleão –, os tronos e as dinastias
desmoronam-se, mas a Igreja permanece”. É uma realidade que leva a
pensar que o fato religioso faz parte da natureza do homem, e que a
Igreja está animada de um espírito que não é de origem humana.
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Alfonso Aguiló |
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Fonte: É razoável crer? Quadrante. São Paulo, 2006. Pág 26-44 |
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
São compatíveis a Ciência e a Fé?
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