Por Phillip Elias | ||||||
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Richard
Dawkins passou grande parte do ano passado pensando em Deus. Em
janeiro, estrelou um programa televisivo sobre Deus e a religião: The Root of All Evil? [“Raiz de todos os males?”]. Deus foi um assunto constante na sua nova página oficial. Dawkins brigou com Deus no rádio, falou de Deus para a revista TIME; chegou mesmo a ler um livro sobre Deus em público e em voz alta.
O livro, evidentemente, era o seu próprio: The God Delusion [traduzido no Brasil como Deus, um delírio]. Dawkins descreve-o
como sendo “provavelmente a culminância” da sua guerra contra a
religião. Embora seja um catatau de 416 páginas, trata-se de uma leitura
fácil e, poderíamos dizer, leve. Há nele poucas coisas que Dawkins não
tenha dito antes. O estilo é despojado e a estrutura, concisa.
O
autor começa por isentar cientistas como Einstein de quaisquer
suspeitas acerca de crenças religiosas e também por condenar o lugar
privilegiado que a religião ocupa na sociedade. Depois, argumenta contra
o agnosticismo, baseando-se na idéia de que a “hipótese Deus”
é científica e, portanto, empiricamente verificável. Os dois capítulos
subseqüentes são dedicados a desmontar os argumentos favoráveis à
existência de Deus. Um deles trata do argumento ontológico, da primeira
via de São Tomás e de diversos argumentos psicológicos; o outro detém-se
exclusivamente no argumento do design inteligente.
Dawkins
foca a sua atenção na religião em geral. Medita sobre as possíveis
razões para a ubiqüidade da religião nas sociedades humanas e tenta
explicar o sentido moral por meio do conceito darwiniano de seleção
natural. Nos três capítulos seguintes, parte para a ofensiva: diz que os
preceitos religiosos são imorais, que as crenças religiosas causaram a
maioria dos problemas do mundo; chama de abuso mental a educação das
crianças numa fé específica. O capítulo final traz a visão de Dawkins
sobre o modo como a ciência pode ocupar o papel inspirativo que teria
sido usurpado pela religião.
Se
encarado como um trabalho sério, o livro tem poucos méritos. Há poucas
referências diretas a textos de filosofia e teologia (ou mesmo de
ciência, diga-se de passagem). Os argumentos mais ricos e conhecidos são
os que menos atenção recebem: dedicam-se apenas três páginas a Tomás de
Aquino. O tom de conversa confere ao texto clareza pelo preço da
superficialidade; Dawkins esgrime abundantes metáforas, mas poucos
argumentos. Atua como um franco-atirador. Se as pessoas acreditassem
realmente em Deus, não se sentiriam tristes quando estão para morrer. O
Deus do Antigo Testamento é “ciumento, mesquinho, injusto, implacável,
opressor; um genocida vingativo e sedento de sangue”... (esse epítetos
continuam por várias linhas). A maior parte do livro é constituída por
episódios pessoais, piadas engraçadinhas sobre fundamentalistas
cristãos, terroristas islâmicos e devoções populares católicas, e há
ainda histórias de terror sobre o fanatismo religioso.
POPULARIDADE E PERSUASÃO
Por
outro lado, é quase certo que Dawkins não quis escrever um trabalho
acadêmico. Afinal, ele ocupa a cátedra Charles Simonyi para a
Compreensão Pública da Ciência, e “compreensão pública”, para Dawkins,
significa somente duas coisas: popularidade e persuasão.
É certo que The God Delusion se tornou popular. Atingiu o segundo lugar na lista de mais vendidos da Amazon.com e atualmente o nono na seção de não-ficção em capa-dura do New York Times.
Contudo, a obra deve ser vista num contexto mais amplo. Trata-se de um
livro essencialmente moderno. Teve o seu terreno preparado pela série de
TV The Root of All Evil? Foi inflado por uma
legião de blogueiros e pela página oficial de Dawkins. Chegou
tempestuosamente às prateleiras, “cheio de som e fúria”.
Particularmente, eu estava esperando também bonés e adesivos de carro
promocionais.
A personalidade e a posição de Dawkins asseguraram a popularidade de The God Delusion.
E quanto à persuasão? Em primeiro lugar, deixemos claro que Dawkins
queria uma persuasão de tipo psicológico. O autor diz explicitamente que
deseja conscientizar o público para quatro pontos: a força da seleção
natural como ferramenta de explicação do mundo; a educação religiosa
como abuso infantil; a possibilidade de se ser feliz, equilibrado, e
realizado moral e intelectualmente como ateu; e o “orgulho ateu” como um
contraponto da perseguição aos ateus. Dawkins quer que as pessoas
“enredadas na religião” sejam capazes de “sair do armário” e assumir o
seu ateísmo.
Nesse sentido, o livro pode ser visto como um tipo de guia de auto-ajuda para ateus. O subtítulo poderia ser: Como eu descobri o ateísmo e como você também pode fazê-lo.
Há um apêndice com entidades de apóio àqueles que precisam de “ajuda
para escapar da religião”. Só faltou mesmo uma seção de encontros (ateu
de 40 anos procura uma companheira…). Embora Dawkins ache a idéia do
culto à personalidade algo “altamente indesejável”, conforme disse ao Sunday Times,
o seu livro está abarrotado de episódios pessoais e risonhas digressões
em louvor da sagacidade coletiva do autor e dos seus pares
intelectuais. Espera-se que nos sintamos privilegiados por captar esse
lampejo do sutil intelecto da elite evolucionista. Mas será que isso
persuade alguém?
A SELEÇÃO NATURAL MAL APLICADA
A
seleção natural é uma teoria extremamente poderosa e Richard Dawkins
nutre uma paixão incomum por expressá-la. Ainda assim, cai numa
redundância insolúvel ao aplicá-la à filosofia. Veja-se, por exemplo, a
maneira como trata da moral. Sustenta que temos códigos morais porque
estes foram uma vantagem seletiva no passado. Como sabemos que os
códigos morais eram uma vantagem seletiva? Porque nós os temos.
Expressando em silogismo:
1) Os códigos morais existem porque sobreviveram e foram bem-sucedidos.
2) Os códigos morais que sobreviveram e foram bem sucedidos existem.
3) Logo, os códigos morais existem porque existem.
Ficamos,
portanto, com uma moral que tínhamos de ter: uma conclusão redundante e
determinista. (Curiosamente, Dawkins simplesmente “não está interessado”
no tema do livre arbítrio.) A mesma conclusão inadequada vale para as
suas aplicações da seleção natural a todos os fenômenos metafísicos:
Deus, a causalidade, a verdade e a própria existência. A seleção natural por si só não é capaz de explicar o porquê de nada.
A
próxima conscientização de Dawkins – “não existe essa história de
crianças cristãs” – é uma simples manifestação do seu preconceito
anti-religioso. Ele admira-se de uma criança religiosa não seja
considerada algo tão odioso como o seria uma “criança marxista” ou mesmo
uma “criança atéia”. Será que a existência de crianças “inglesas” ou
“indianas” o deixa igualmente nervoso? E um “criança judia”? E a
“criança aborígene”? No fundo, Dawkins esconde o seu objetivo real –
descolar a religião da identidade cultural – com uma acusação
sentimental de abuso infantil. (Um dos subtítulos leva o tocante nome de
“Em defesa das crianças”).
Acaso
o livro de Dawkins atinge a sua meta principal? Fomenta o “orgulho
ateu” e ajuda as pessoas que têm fé e inteligência a “saírem do
armário”? Parte da resposta ainda está para ser vista. Uma outra parte,
pequena, é evidente: as pessoas que concordam com Dawkins provavelmente
vão achar o livro engraçado, e talvez desenvolvam um pouco de orgulho. O
mais provável é que se tornem arrogantes.
A SÍNDROME DA TORRE DE MARFIM
Pouquíssimas
pessoas estão dispostas a seguir Dawkins sem restrições. Isso que ele
poderia chamar de “destino solitário de um pioneiro intelectual” pode
ser simplesmente a síndrome da torre de marfim. A revista The Economist foi uma das suas poucas fontes de apoio integral – o que não é surpresa. Mas o aliado mais próximo de Dawkins, Daniel Dennett, enxerga alguma utilidade na religião, e não está convencido de que ela devesse “votada à extinção”. O físico Lawrence Krauss, na revista Nature, desejou que o autor “não fosse além das suas forças” e evitasse fazer sermões. O marxista Terry Eagleton descreve Dawkins como alguém “assombrosamente
sacana..., teologicamente analfabeto” que nem sequer fala por todos os
ateus. Na verdade, Dawkins seria apenas um representante “da classe
média liberal e racionalista da Inglaterra”.
Richard Kirk faz a crítica mais destrutiva do livro, ao qualificá-lo de “um exemplo de descaso..., uma diatribe gárrula e
mal editada”. A crítica constante é de que Dawkins não conhece o seu
inimigo; antes, põe um espantalho no seu lugar. Mas isso não é tudo.
Dawkins confecciona um espantalho, mas acerta a sua lança nos blocos de
feno que estão no cercado. Depois, pragueja contra o capataz que pôs o
feno ali e castiga o gado por ter causado um alvoroço. Um exemplo desse
seu comportamento quixotesco é o seu argumento central. Dawkins acredita
que a assim chamada “hipótese Deus” – a de que “existe uma inteligência
sobre-humana e sobrenatural que projetou e criou deliberadamente o
universo e tudo o que ele contém, inclusive nós” – é cientificamente
suscetível de ser verificada. Ciência, no sentido moderno, é o estudo
das coisas naturais ou físicas. Pois então como pode verificar uma
hipótese que é, por definição, sobrenatural e metafísica?
Dawkins,
na verdade, não acredita que Deus é cientificamente verificável. Mas
não admite nenhuma epistemologia além da ciência. O seu raciocínio pode
ser resumido da seguinte maneira: não existe realidade imaterial,
portanto Deus não existe. Não é de admirar que ele “não esteja
interessado” no livre arbítrio, ou na razão da existência da própria
matéria. Dawkins não esclarece nenhum problema filosófico real. É um
positivista démodé que tem preconceito contra a metafísica; a sua
verdadeira querela deveria ser com os estruturalistas e
desconstrucionistas, pois foram eles que conduziram o positivismo à sua
conclusão lógica e, para Dawkins, indesejada. Mas ele, evidentemente,
não se incomoda com isso; toca o tema apenas de passagem ao qualificá-lo
de “alta francofonia”.
Dawkins acredita que a maior partes das pessoas estaria delirando,
mas alguém poderia perguntar se Dawkins está assim tão sóbrio. As suas
afirmações acerca de perseguição e marginalização soam suspeitosamente
como paranóia, a sua verborréia nauseabunda beira a obsessão, e ele demonstra uma profunda ausência de noção
acerca da sua competência filosófica, ou melhor, da sua falta de
competência filosófica. Este livro pode fazer Dawkins perder mais amigos
do que ganhá-los. Pode ser que em breve ele esteja navegando sozinho
– rumo a quem sabe onde – com a sua própria carga de delírios. Pelo
menos, ainda poderá rir das suas próprias piadas.
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Phillip Elias Formado em História e estudante de Medicina na Universidade de New South Wales, em Sydney (Austrália). |
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
“Deus, um delírio”
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