O
maneio do dinheiro caracterizou sempre a burguesia; inseparável do
comércio, factor inegável de progresso, uma vez que é a base da economia
de mercado, esse maneio que atinge no nosso tempo desenvolvimentos
insuspeitos aquando das origens da burguesia, foi contrariado e limitado
durante os tempos medievais e mais tarde ainda, pela legislação
eclesiástica, sempre em vigor em Direito, ainda que caída em desuso, a
partir do século XIX.
Esta
legislação, precisada no Código de Direito Canônico de 1917, que mantém
na posse dos clérigos a interdição da prática de usura, entende essa
palavra no sentido de “empréstimo com lucro”, por outras palavras:
proveito extraído de um empréstimo de dinheiro. O termo: usurário, na
época feudal, designa aquilo a que chamamos banqueiros, manipuladores de
dinheiro.
Temos,
aliás, a tendência para simplificar abusivamente as fases por onde
passou a condenação da usura; para relembrar resumidamente as principais
etapas, o combate havia sido iniciado nesse ponto pelos Padres da
Igreja, Clemente de Alexandria, no início do século III, mas sobretudo
São Gregório Nazianzeno e os dois irmãos São Basílio e São Gregório de
Niza, que denunciam incansavelmente os danos da usura no mundo romano e a
sujeição que ela implica, levando quase automaticamente os mais
pequenos ao poder dos que detêm o dinheiro. Fundamentam-se nas
prescrições da Bíblia, Antigo e Novo Testamentos, e denunciam a
incompatibilidade entre o Evangelho e a usura, quer dizer, mais valia
produzida pelo pagamento de um lucro pelo dinheiro emprestado. Pouco a
pouco, é elaborada toda uma doutrina no seio da Igreja, que impregnará
as massas. O dinheiro em si é improdutivo: o que ele produz é o facto do
trabalho de quem beneficiou com o empréstimo. Aristóteles tinha-o
constatado e filosoficamente estabelecido, mas no mundo antigo essa
constatação mantinha-se no plano do pensamento, sem conseqüência prática
sobre a vida humana – um pouco como as aquisições científicas se
tomavam em ciência pura e não se realizavam ao nível da técnica.
Todavia, a sua influência será profunda no momento em que, a meio do
século XIII se vai operar a síntese entre pensamento aristoteliano e
pensamento cristão. Mas, muito tempo antes, a usura, livre no mundo
antigo, encontrava-se condenada no mundo cristão. Não somente, como já
se disse e repetiu, devido ao famoso versículo do Evangelho: “Empresta
sem nada esperar em troca”, mas porque o empréstimo com lucro é, nessa
qualidade, uma hipoteca sobre o trabalho do próximo, logo, uma forma de
exploração contrária à caridade. Todo o objecto mobiliário ou
imobiliário, logo que é emprestado, presta um serviço efectivo e sofre
uma certa degradação, o que justifica o pagamento de um aluguer: quer se
trate de um campo, de uma casa, etc. Sempre que se trata de um
empréstimo de dinheiro, pelo contrário, num tempo em que as moedas
consistem num metal precioso que não se altera, a soma emprestada deve
ser devolvida sem lucro, uma vez que o serviço que prestou só será
válido quando um trabalho o faça frutificar, e o dinheiro devolvido
conserva o valor que tinha no momento do empréstimo, sem degradação. Os
Padres da Igreja teceram condenações extremamente violentas no que
respeita à usura. Para São Basílio, aquele que empresta com usura comete
um crime, porque aquele a quem empresta torna-se seu escravo. O
concílio de Elvira (cerca do ano 300) ordenava excomungar o clérigo que
tivesse recebido usuras, quer dizer, lucros com dinheiro (cânone 20,
aplicável em toda a Espanha).
O
Concilio de Nicéia de 325, através do seu cânone 17, alargava esta
interdição à Igreja universal. No tocante aos laicos, as interdições
seriam mais tardias; elas só terão um alcance prático com a legislação
de Carlos Magno (Admonitio generalis de Aix-la-Chapelle,
789). O Decreto de Graciano (cerca de 1140) exprime bem os pontos
essenciais dessa mentalidade: primeiramente no que diz respeito ao
comércio: “É difícil, senão impossível, ao negociante agradar a Deus”,
especificando bem: “Aquele que compra uma coisa, não para a vender
integralmente e sem lucro, mas a fim de se servir dela para fabricar
qualquer outra coisa, não é um negociante. Mas o homem que compra uma
coisa para obter um lucro, vendendo-a tal qual a comprou, este homem é
um dos compradores e desses negociantes que foram expulsos do Templo de
Deus”. Ora, retoma ele, “de todos os negociantes, o mais maldito é o
usurário, porque vende uma coisa dada por Deus, mas adquirida pelos
homens (ao contrário do negociante) e depois da usura ele retoma a coisa
com o bem de outrem, aquilo que o negociante, não faz”. Objectar-se-á:
“Aquele que aluga um campo para receber uma renda ou uma casa para obter
um aluguer, não será semelhante a quem empresta o seu dinheiro a
juros?” Certamente que não. Primeiro, porque a única função do dinheiro é
o pagamento de um preço de compra; depois, o rendeiro faz frutificar a
terra; o locatário frui da casa: nestes dois casos, o proprietário
parece dar uso do seu bem para receber dinheiro e, de um certo modo,
trocar o ganho por ganho, enquanto que com o dinheiro avançado ele não
pode fazer qualquer uso; finalmente, o uso esgota a pouco e a pouco o
campo, degrada a casa, enquanto que o dinheiro emprestado não sofre nem
diminuição, nem envelhecimento”.
Mas,
concorrentemente a esta mentalidade geral, o gosto do lucro cresce na
época e encontra-se estimulado pelo intenso desenvolvimento do tráfico
internacional, principalmente do tráfico Oriente-Ocidente. Notemos que o
lucro do comerciante que transporta do Oriente especiarias é então
considerado como legítimo, porque ele compensa as despesas e as fadigas
nos preços de quem as procura e de quem as leva até às grandes feiras da
Champagne, da Île-de-France ou qualquer outro sítio. O comércio, assim
compreendido, é uma verdadeira função indispensável à vida da cidade. A
distinção será fortemente estabelecida a partir do século XIII; apenas o
lucro puro é considerado como condenável, e um tal Jean Gerson, no
século XV, formulará em termos perfeitamente claros esta condenação:
“Vender uma coisa mais cara do que o preço de compra, se o ganho em
excesso é assinalável, tendo em consideração todas as dificuldades, os
perigos, os melhoramentos, de que deve ser indemnizado, deve ser
considerado como uma falta, e uma falta mais grave se, sendo feita, se
aproveitar da necessidade do próximo”. Por outras palavras, a “lei” da
oferta e da procura é condenada; o comércio, ele próprio, é coisa, não
somente lícita, mas útil: aquilo que se condena é o lucro puro, obtido a
expensas do próximo. Um Santo Tomás encarava, aliás, de bom grado a
organização do comércio, indispensável à vida dos homens, num plano
colectivo: os bens necessários à vida, ao conforto, ao prazer de todos
os cidadãos, podem do mesmo modo ser transportados por iniciativa da
própria cidade. Não podemos deixar de chamar a atenção para o facto de,
na época, não ser considerado acção colectiva tudo o que diz respeito à
produção, a qual necessita de uma iniciativa individual e pede para ser
estimulada pelo ganho individual, mas que, em compensação, tudo o que
diz respeito ao transporte e distribuição, aquilo a que chamaríamos o
colectivismo é considerado e parece perfeitamente defensável.
No
que diz respeito à usura, longe de se contentar com interdições
lançadas de uma vez por todas, a procura está então muito activa. Sem
pretendermos tornar-nos pesados com os pormenores, indiquemos que, a
partir do século XIII, foram formulados os célebres “casos” que os
teólogos da Sorbonne só definirão expressamente no século XVII.
Esses
“títulos extrínsecos” que autorizam, aos olhos dos teólogos, a
percepção de uma certa soma pelo mutuante, logo que entra na posse do
seu capital, são bem conhecidos; todos os canonistas enumeraram assim, Damnum emergens, sempre que o mutuante sofre um prejuízo; Lucrum cessans, na ausência de lucro; Periculum sortis,
em compensação do risco de perda do seu capital; foram admitidos a
partir do século XIII. Tendo-se verificado no século XV uma nova
expansão da actividade económica, especialmente em Itália e nos países
da Europa Central, uma nova procura se impunha e é então que teólogos
canonistas como Santo Antonino de Florença ou São Bernardino de Sena,
debruçando-se sobre o estudo dos problemas económicos, criam a noção de
capital produtivo: o dinheiro emprestado, não apenas para solucionar uma
necessidade momentânea, mas para iniciar uma actividade produtora de
bens. Neste caso, é legítimo que o mutuante receba uma parte dos bens
produzidos, na condição, todavia, que o seu dinheiro tenha corrido os
riscos do empreendimento; por outras palavras, cria-se então a noção de
investimento e condena-se, em nome do Evangelho, a do capital garantido.
Ainda uma outra excepção vai ser considerada: stipendium laboris, a retribuição dos serviços daquele que emprestou, como seria, nos nossos dias, o salário dos seus empregados.
Por
outras palavras, ao longo dos séculos, a disciplina eclesiástica não
deixou de evoluir, considerando todas as condições novas que poderiam
surgir. Ela também não deixou de considerar como fundamentalmente
anticristã a própria noção de empréstimo com lucros; e do mesmo modo,
como contrário ao espírito da caridade – essencial à vida evangélica –,
toda a tentativa de monopólio ou de açambarcamento dos bens de consumo.
Também, no século XVIII, se vai desencadear um verdadeiro tumulto entre,
por um lado, teólogos e canonistas e, por outro lado, os defensores das
doutrinas liberais, os quais têm essencialmente como objectivo
“liberalizar” as relações entre compradores e vendedores, quer dizer,
dar ao mais poderoso toda a independência face ao mais fraco. Nessa
época, todos os princípios da economia “boa e leal” praticada nos tempos
medievais: o preço justo, tudo o que fosse uma concorrência baseada na
qualidade do produto, a interdição imperativa das compras massivas
permitindo aos capitalistas-comerciantes controlar o mercado de
trabalho, são tratados como reaccionários e ridicularizados. É então que
o papa Bento XIV dirige em 1745, em honra dos bispos de Itália, a
famosa carta Vix pervenit, que renova expressamente a condenação do empréstimo com lucros, alargada seguidamente a toda a Igreja.
A CONSCIÊNCIA TRANQUILA
Acontece
que, entretanto, se verificou um movimento que modificou, em
profundidade, a mentalidade geral: a Reforma. Embora esta tenha sido
freqüentemente discutida ou contestada, a sua influência não parece
negável no que concerne ao maneio do dinheiro. Várias vezes foi citada a
célebre frase de Calvino: “Por que razão não se permite aos possuidores
de um determinado montante de dinheiro retirar uma soma qualquer,
quando se permite ao proprietário de um campo estéril arrendá-lo
mediante uma renda?” Formulada, na época, por numerosos juristas e
teóricos, esta proposta, que punha em causa a esterilidade do dinheiro
nessa qualidade, terá uma influência dominante em todo o lado onde se
estabelecer a Reforma. Aí remonta a alteração do sentido do termo usura,
que designava até então todo o lucro proveniente de dinheiro, e passará
somente a designar o lucro excessivo recebido através de empréstimo de
dinheiro. Além disso, e sob a mesma influência, a riqueza torna-se
símbolo de prosperidade, símbolo da bênção de Deus – um sentimento
herdado do Antigo Testamento, ou, pelo menos, de certos livros do Antigo
Testamento, antes da passagem dos profetas.
Por
outras palavras, o rico podia, futuramente, ter a consciência
tranqüila; era superar um passo capital. Até então, e especialmente
durante o período feudal, o rico não podia ter a consciência tranqüila.
Constituía, aliás, uma excepção, e uma excepção visível, numa sociedade
onde as irregularidades de fortuna eram muito pouco sensíveis. Os que
conseguiram obter grandes fortunas eram os comerciantes, e sobretudo os
que faziam o comércio do dinheiro: aqueles a que se chama Lombardos, até
porque é justo reconhecer que, naquela época, em matéria de manipulação
de dinheiro, foram os italianos que inventaram tudo. Ora, estes
Lombardos, quando a sua fortuna ultrapassa o que parece razoável,
vêem-na confiscada, tal como acontece aos usurários judeus.
A
batalha decisiva sobre esta questão do maneio do dinheiro verifica-se
em França, durante o século XVIII, onde a burguesia, tal como a nobreza,
conhecem a “doce vida”; ela resume-se à batalha a favor ou contra o
empréstimo a juros, iniciada pelo pequeno clero contra a grande
burguesia.
A obra capital de Bernard Groethuysen, A Igreja e a Burguesia,
indica o número incrível de sermões, panfletos e escritos diversos,
pelos quais se exprimiram as duas posições, por um lado a da Igreja, por
outro a dos financeiros; mas estes encontram-se apoiados pela filosofia
do tempo, a qual se apresenta aqui sob o seu duplo aspecto, ao mesmo
tempo legalista e optimista. Uma confiança absoluta nas “leis naturais”
leva a ver, no livre jogo dessas “leis”, a condição de uma prosperidade
geral. É conhecido o famoso apóstrofe de Turgot: “Sem juros, não há
empréstimos; sem empréstimos, não há dinheiro; sem dinheiro, não há
comércio, não existem negócios, tudo morre, tudo está perdido”.
Conhecem-se bastante pior os escritos desses membros, quase sempre
provenientes do pequeno e do médio clero, que à análise se revelam
fortemente perspicazes: “Os que pedem emprestado indemnizam com os juros
que pagam; os negociantes de venda por grosso encontram essa
indemnização nos negociantes de venda a retalho, e estes no povo que
suporta, assim, os juros dos empréstimos do comércio, dos depósitos a
prazo e à ordem, das letras de câmbio, etc., bem como o excedente dos
preços das mercadorias vendidas a crédito, ou compradas a prazo... Todo o
prejuízo, todos os danos recaem sobre o público e, por conseguinte,
sobre os pobres que formam a maioria” (Traité, de
Hyacinthe de Gasquet, 1766). Essas mesmas vozes impotentes, sufocadas
por tudo aquilo que contar para a época, no pensamento como nos
negócios, manifestavam, todavia, uma estranha lucidez e têm hoje valor
profético: “Os que empilham bens uns sobre os outros sem fim, sem
medida; os que juntam todos os dias novos campos e novas casas às suas
antigas heranças; os que acumulam quantidades extraordinárias de trigo,
para o vender quando a ocasião lhes for mais favorável; os que emprestam
com usura, aos pobres ou aos ricos – pensam nada fazer contra a razão,
contra a igualdade, enfim, contra a lei divina, porque eles não
prejudicam ninguém, segundo eles, e ajudam aqueles que sem isso
passariam por grandes necessidades... e, por conseguinte, é uma grande
injustiça, e uma injustiça que encerra muitas outras, que uma só pessoa
possua tantas terras, e casas, e todos os dias pense em adquirir mais e
mais, o que não pode acontecer sem que se desaposse um grande número de
antigos proprietários; que uma só pessoa possa recolher os frutos de
todas as terras, de um país bastante grande e prive uma enorme multidão
de homens, reduzidos por este meio à mendicidade; que uma só pessoa
atraia para a sua casa toda a fertilidade dos campos e force tanta gente
a viver das suas esmolas; que um só homem queira ser o dono da vida e
da morte de um povo inteiro... É a maior das injustiças... porque é
declarar a guerra à espécie humana e afastar mais gente dos seus bens,
coisa que a guerra não faria”. Estas linhas foram escritas em 1697, por
um tal Padre Thomassin, num Tratado do negócio e da usura,
de que ninguém fez grande caso. Se elas não puderam conhecer as
alterações que, no século XIX, substituíram a sociedade anónima pelo
proprietário possuidor e que, no século XX, deram a essas sociedades,
até mesmo a um Estado todo-poderoso e único detentor das actividades de
uma nação, um poder aproximadamente sem limites, pelo menos encontram-se
nelas, por antecipação, o esquema das estruturas económicas levadas a
cabo em todo o Ocidente pela burguesia.
Do
mesmo modo, ela não se enganou naquela época. É um bloco anticlerícal,
pelo menos da burguesia dos negócios e – o que volta sensivelmente ao
mesmo – a dos filósofos. Um só ficará à margem: Jean-Jacques Rousseau,
que morre pobre.
Após
o primeiro obstáculo, transposto no início do século XVI, é um segundo
obstáculo no século XVIII: elabora-se uma verdadeira doutrina do lucro
pelo maneio do dinheiro, que encontra nela própria a sua própria
justificação e que, notemos, manter-se-á imutável e, aliás, muito
raramente posta em causa até ao nosso tempo.
Certamente
que o gosto e o desejo do lucro estão na própria natureza do homem e
são, aliás, inseparáveis da vida, e factores evidentes de progresso. O
que era novo era erigir em “lei natural” uma função económica, proclamar
como um imperativo do progresso aquilo que havia sido, em certos casos,
anteriormente tolerado, mas a título de expediente e como um mal menor.
A doutrina do lucro apresentar-se-á, de ora avante, como um absoluto
justificado, aliás, por deslumbrantes êxitos. Pode-se-lhe atribuir
certamente a parte mais notável dos progressos concluídos no equipamento
na Europa e em geral no Ocidente; e será interessante salientar que
esse desenvolvimento de que, hoje, toda a gente beneficia, teria sido
impossível sem o maneio do crédito e o espírito do lucro a que presidiu.
Mas temos igualmente o direito de nos questionarmos se o excessivo
passivo que comportou esse desenvolvimento terá sido inevitável.
O ACTIVO E O PASSIVO DO PROGRESSO
Hoje,
basta resumir semelhante questão, uma vez que o conteúdo é geralmente
conhecido. No século XVIII esse passivo é representado pelo
empobrecimento dos campos, num tempo onde, segundo o exemplo da
Inglaterra, começa o movimento de exploração capitalista da terra: a
terra deve produzir, e o camponês era, de facto, infinitamente menos
defendido que sob o regime da servidão feudal, que lhe garantia a
tranqüila posse do campo que cultivava. Além disso, o século XVIII,
tanto quanto o século XVII, é o da escravatura, e os filósofos são
unânimes em exigir, aquando do tratado de paz com a Inglaterra, que
sejam conservadas as Antilhas, onde o trabalho dos escravos garantia
enormes lucros tanto aos plantadores como aos armadores. Recordemos que
Montesquieu era um dos accionistas da Companhia da índias, gozando do
monopólio do comércio negreiro, enquanto que cada um conhece a posição
de Voltaire, comparando esses campos de café e de açúcar tão produtivos a
“alguns arpents* de neve” do Canadá.
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(*) Arpent é uma antiga medida agrária francesa que valia 50 a 51 ares, conforme as regiões. (N. do T.)
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No
século XIX, o passivo do desenvolvimento industrial seria representado
pela exploração elevada hoje a um grau dificilmente crível pelo
trabalhador industrial, homem, mulher ou criança. A Revolução tinha
desembaraçado nesse domínio, libertando o trabalho de todos os
regulamentos de controlo e juranda. A liberdade do trabalho tornada
total, traduziu-se, de facto, no esmagamento dos trabalhadores. Foi
necessário quase um século para que, nesse particular domínio, o termo
fosse desmistificado, ou antes, o seu emprego: uma liberdade de direito
traduzia-se numa exploração de facto, deixando face a face o possuidor e
aquele que, para viver, apenas podia contar com a força dos seus
braços.
O
passivo do desenvolvimento industrial fez-se sentir, numa perfeita
continuidade, entre o Antigo e o Novo Regime, sobre todos os territórios
de além-mar, não tendo sido nunca as guerras coloniais tão extensas e
tão sistemáticas como na Terceira República; quanto à escravatura, tinha
sido suprimida em 1848, mas esquece-se muito que o sistema do trabalho obrigatório e do trabalho forçado se tinha mantido, tendo sido abolido em 1947.
A opinião só tomou consciência muito tardiamente da injustiça imobiliária de todo o sistema colonialista. É, hoje, um
tema de acusação tornado habitual, mas deve-se salientar que se
prefere, em geral, exercer a sua indignação sobre o passado do que sobre
determinada fracção da sociedade que se expõe ao desprezo público, sob o
nome de “burguesia capitalista”. Acontece que a verdade obrigaria hoje a
reconhecer todas as camadas sociais – talvez, com excepção do
subproletariado do qual afirmam que, em França, representa ainda dois
milhões de seres humanos – que beneficiam das vantagens do
desenvolvimento industrial; a diversos níveis, mas todos beneficiam. E
isto às expensas de um mundo dito em “vias de desenvolvimento”, que se
encontra em relação à Europa e à América do Norte, na situação dos
operários que sob o reinado de Luís-Filipe povoavam os arrabaldes de
Paris.
As
doutrinas de Marx sobre as mais-valias, o lucro proveniente do
dinheiro, encontravam aproximadamente uma das posições tradicionais da
Igreja. Então, surge um novo facto: se essas posições são ainda mantidas
actualmente, deixar-se-á de falar nelas após a chegada ao poder da
burguesia. O último decreto canónico realizado a propósito da usura de
dinheiro tem um nome significativo: Non inquietandos (16 de Setembro de 1830): era nele indicado que não se deviam censurar os empréstimos que mantivessem um juro modesto, que era lícito, em virtude da lei civil. Esse decreto devia ser renovado em 1873 pela Congregação da Propagação da fé.
Às
flutuações verificadas no valor do dinheiro iriam, efectivamente,
modificar totalmente os dados do problema, mas o que parece
extraordinário é o reduzido número de cristãos que se preocupam,
futuramente, com questões deste género: se exceptuarmos os esforços de
La Tour du Pin e de cristãos sociais do século passado, constata-se que,
precisamente na época do capitalismo, crédito, especulação e maneio de
dinheiro, conhecem desenvolvimento e uma importância jamais atingida
pelo passado, mas nenhuma voz se levanta, na Igreja, para indicar sobre
este ponto o dever dos cristãos. Mesmo os sindicatos “cristãos”
adoptando, sem mais, as teses marxistas sobre quantidades de questões,
não terão colocado nunca o problema de fundo sobre as relações do
cristão e do maneio do dinheiro.
Os papas, a partir da encíclica Rerum Novarum, denunciaram
a “usura devoradora” como a calamidade capital do tempo. Essas
denúncias tomaram-se por diversas vezes nos escritos pontificais sem
provocar, ao que parece, um eco válido. Concluindo o artigo consagrado
ao termo “Usura” no Dictionnaire de la théologie catholique, o padre
Henri du Passage limita-se a constatar: “Face a esta invasão do monstro
capitalista, face a estas evoluções no terreno dos ateliers e,
muito mais ainda, na Bolsa, um número de observadores imparciais
tornaram-se mais reservados nas suas críticas com respeito à disciplina
antiga sobre a usura... Ficará por esclarecer, acrescenta, nos dados
complexos dos actuais problemas, uma doutrina de crédito que,
satisfazendo de modo plenamente coerente as leis da moral, manterá e
conduzirá o capital para o círculo dos seus deveres e dos seus direitos”
(Dictionnaire de la théologie catholique, t. 15, col.
2389). Isto foi escrito em 1946, mas o desejo formulado continuou sem
efeito; por conseguinte, cada um conhece o papel desempenhado pela praga
da usura, na miséria provocada no conjunto dos camponeses chineses e,
actualmente, esses flagelos da usura amplamente espalhados nas relações
entre países ocidentais e países em vias de desenvolvimento.
Contentemo-nos em citar um número: em 1969, a Índia havia recebido 600
milhões de dólares, a título de ajuda financeira, acordada pelas nações
ricas; ora, sobre esses 600 milhões de dólares, 550 milhões serviram
para amortização das dívidas. E sabe-se que hoje (1984) alguns países da
América Latina colocam em perigo o sistema bancário internacional, na
impossibilidade que têm de saldar dívidas que ultrapassam de longe a
receita nacional.
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