por Régine Pernoud
Em síntese: O livro de Régine Pernoud em foco sugere ao leitor uma revisão do conceito pejorativo de Idade Média que comumente é propalado. Tal noção se deve, em parte, a preconceitos de pensadores dos séculos XVI e seguintes, os quais, movidos por premissas anticatólicas e anticristãs, tinham interesse em denegrir a Idade Média. Esta não foi perfeita (pois nada do que é humano é isento de falhas); todavia não foi bárbara nem obscurantista, como freqüentemente se diz, mas teve gestos e valores que suscitariam rubor no homem moderno. Assim, por exemplo, a escravatura romana extinguiu-se no começo da Idade Média para ceder ao regime do servo da gleba (que respeitava os direitos do pequeno camponês); todavia foi restaurada no século XVI nas terras da América, onde vigorou o colonialismo. Régine Pernoud julga que o cultivo do Direito Romano (que teve início no século XI em Bolonha) contribuiu poderosamente para, aos poucos, desfazer as instituições e os costumes da Idade Média Ascendente; o Direito Romano finalmente fundamentou o menosprezo da mulher e outros males que tomaram pleno vulto a partir do século XVI.
O presente artigo tenta reproduzir a tese da autora e ilustra-a mediante exemplos e dados colhidos no livro em pauta.
***
Comentário:
Régine Pernoud é especialista em estudos medievais. Sua primeira obra,
"Lumière du Moyen-Age", publicada em 1945, mereceu-lhe o prêmio
Fémina-Vacaresco de Crítica e História. Em 1978, a
autora editou "Pour en finir avec le Moyen-Age", obra que lhe valeu o
prêmio Sola-Cabiati da cidade de Paris e a consagração da crítica como
sendo uma das mais notáveis conhecedoras da Idade Média. Tal obra foi
traduzida para o português com o título "A Idade Média: o que não nos
ensinaram". Visto que convida o estudioso a rever as concepções comuns
relativas à Idade Média, vamos, a seguir, propor as linhas mais características desse estudo, acompanhadas de conclusão final.
1. Idade Média: preconceitos e lendas
A autora, no capítulo I, lembra o conceito que geralmente se tem até nossos dias com relação à Idade Média.
Esta equivaleria a mil anos de obscurantismo: ... obscurantismo intelectual, moral, cultural...
A
grande maioria das pessoas que falam sobre a Idade Média, nunca a
estudaram devidamente. Mas apenas a conhecem por "fama", fama esta que
não corresponde aos resultados das pesquisas historiográficas dos
últimos cento e cinqüenta anos.
Para ilustrar este fato, a autora cita alguns episódios:
Certa vez Régine Pernoud recebeu telefonema de uma documentarista da TV, das mais especializadas em programas históricos.
"Parece-me, disse-me ela, que a senhora tem dispositivos. Terá, por acaso, alguns que representem a Idade Média?
- ???
-
Sim, que dêm uma idéia da Idade Média em geral: execuções, massacres,
cenas de violência, fome, epidemias... Não pude deixar de rir" (p.
105s).
Conta ainda R. Pernoud:
"Era
encarregada do Museu da França nos Arquivos Nacionais, há pouco tempo,
quando chegou uma carta perguntando: 'Poderia informar-me a data do
tratado que marca oficialmente o fim da Idade Média? 'Havia ainda uma
pergunta complementar: 'Em que cidade se reuniram os diplomatas que
prepararam esse tratado?'
...O
autor pedia uma resposta rápida, pois, dizia ele, precisaria desses
dois dados para uma conferência que pretendia fazer em data muito
próxima" (p. 9).
Em
suma, é freqüente ouvirem-se observações como "Não estamos mais na
Idade Média" ou "É um retorno à Idade Média" ou "É uma mentalidade
medieval".
Aliás, a própria designação "Idade Média" implica um juízo pejorativo sobre os mil anos em pauta. Significa,
sim, que entre a antigüidade greco-romana e o Renascimento da mesma no
século XVI tenha havido um período neutro, sem cultura nem valores, mas
torpe ou bárbaro. Note-se, aliás, que a divisão da história em três
grandes períodos (Idade Antiga, Idade Média e Idade Moderna) foi
proposta, pela primeira vez, pelos humanistas dos séculos XV/XVI; só no
século XVII foi introduzida em livros didáticos de História
Universal'.
Não há dúvida, os humanistas renascentistas tencionavam caracterizar a
Idade Média como fase de escuridão e estagnação cultural.
Em
nossos dias, porém, há estudos que dissipam tal imagem da Idade Média.
O fato, pois, de continuarem em voga as concepções pejorativas sobre
tal período deve-se a certa rotina, que não se justifica. É o que
Régine Pernoud observa:
"Há
pouco tempo, um programa de televisão apresentava como histórica a
frase famosa: 'Matai-os todos, Deus reconhecerá os seus!’ durante o
massacre de Béxiers em 1209. Ora, há mais de cem anos (exatamente em
1866), em erudito demonstrou, acima de qualquer dúvida, que a frase não
poderia ter sido pronunciada, já que não a encontramos em nenhuma das
fontes históricas da época, mas apenas no Livro dos Milagres, Dialogus Miraculorum,
um, cujo título fala por si mesmo sobre o que pretende dizer, composto
aproximadamente sessenta anos depois dos fatos pelo monge alemão Cesário
de Heisterbach, autor provido de imaginação ardente e bastante
suspeito quanto à autenticidade histórica. Desde 1866, nenhum
historiador... levou em conta o famoso 'Matai-os todos'; mas os
escritores de história o utilizaram ainda. Isto basta para provar quanto
as descobertas científicas, neste caso, custam a penetrar no domínio
público" (p. 16).
Dos subseqüentes capítulos do livro, escolheremos quatro, em que a autora aborda temas de especial interesse para o leitor.
2. A Idade Média e a mulher
Tal tema é considerado no capítulo VI sob o título "A mulher sem alma".
Régine
Pernoud costuma distinguir no período medieval duas fases divididas
entre si pelo ressurgimento do Direito Romano. Este começou a ser
cultivado em Bolonha, onde o célebre legista Irinério fundou célebre
escola de Direito Romano (1084). A influência do Direito Romano assim
reavivado só aos poucos se fez sentir sobre a vida medieval. A aplicação
de seus princípios à realidade civil e religiosa dos séculos XII e XIV
modificou um tanto os costumes das épocas anteriores. Todavia somente na
segunda metade do século XV o Direito Romano foi amplamente adotado
pelos juristas - o que teve ulteriores conseqüências no modo de pensar e
agir da sociedade em relação à mulher e a outros valores da sociedade.
"O
Direito Romano... foi a grande tentação do período medieval; ele foi
estudado com entusiasmo não só pela burguesia das cidades, mas também
por todos os que viam nele um instrumento de centralização e de
autoridade. Ele se ressente, com efeito, das suas origens imperialistas
e - por que não dizer? - colonialistas. Ele é o Direito, por
excelência, dos que querem firmar uma autoridade central estatizada...
Em meados do século XII, o Imperador Frederico II, cujas tendências
eram as de um monarca, fez deste tipo de Direito a lei comum dos países
germânicos" (p. 79s).
Feita esta observação, registramos com R. Pernoud o papel eminente que certas mulheres desempenharam na Idade Média:
2.1. Famílias reais
Na
fase anterior à do Direito Romano (fase que a autora chama "tempos
feudais") a rainha era coroada, como o rei, geralmente em Reims, pelas
mãos do arcebispo de Reims; atribuia-se à coroação da rainha tanto valor
quanto à do rei (cf. p. 78).
A
medida que o Direito Romano foi ascendendo, a coroação das rainhas foi
sendo considerada menos importante que a dos reis. A última rainha a
ser coroada foi Maria de Médicis na véspera do assassinato do seu marido
Henrique IV. No século XVII a rainha desaparece literalmente da cena em
proveito da "favorita"!
Em
sua época, Eleonora de Aquitania (+ 1204) e Branca de Castela (+ 1252)
exerceram autoridade sem contestação nos casos de ausência do rei,
doente ou morto; tiveram suas chancelarias, suas alfândegas e seus
setores de atividade pessoal.
A
primeira disposição que afastava a mulher da sucessão ao trono foi
tomada por Filipe IV, o Belo (1285 - 1314), sob a influência de juristas
romanos. Na verdade, o Direito Romano não era favorável à mulher nem à
criança; era um Direito monárquico, que exaltava o paterfamilias,
pai, proprietário, chefe da família com poderes sagrados, sem limites
no tocante aos filhos (tinha sobre estes direito de vida e de morte) e à
esposa.
Note-se ainda a propósito que somente a partir de fins do século XVII a mulher toma obrigatoriamente o nome do marido.
2.2. A Igreja e a mulher
É
habitual dizer-se que a Igreja foi misógina ou hostil à mulher até
época recente. A mulher terá sido considerada uma criatura sem alma! ...
Ora
R. Pernoud observa que, entre os mais antigos santos, se encontram as
mártires Inês, Cecília, Águeda, Luzia, Blandina... Mais: Algumas
mulheres (não necessariamente oriundas de famílias nobres) desempenharam
notáveis funções na Igreja medieval. Assim certas abadessas eram
senhoras feudais, cujos poderes eram respeitados como os de outros
senhores; usavam báculo, como os bispos; não raro, administravam vastos
territórios com cidades e paróquias. Tenha-se em vista, por exemplo, a
abadessa Heloísa, do Mosteiro do Paráclito, no século XII: além de
exercer amplas funções administrativas, conhecia o grego e o hebraico,
que ela ensinava às monjas.
Outro
caso merece especial registro: o pregador de penitência Roberto de
Arbrissel (+ 1117) conseguiu levar tanta gente à conversão que houve por
bem fundar a Ordem de Fontevrault em 1100/1101, com base na Regra de S.
Bento. Esta Ordem distinguiu-se pela penitência severa e pelos
"mosteiros duplos": entre um cenóbio de homens e outro de mulheres
achava-se a igreja, único lugar em que monges e monjas se podiam
encontrar. Ora a direção suprema desses mosteiros duplos competia, em
honra da Santa Mãe de Deus, à abadessa de Fontevrault: esta devia ser
viúva, tendo feito a experiência do casamento!
Sabe-se
também que havia na Idade Média Religiosas muito instruídas. Assim, por
exemplo, a mais conhecida enciclopédia do século XII é da autoria da
abadessa Herrade de Landsberg; tem por título Hortus deliciarum
(jardim de delícias) e nela os eruditos hauriam os ensinamentos mais
corretos sobre o avanço das técnicas em sua época. Poder-se-ia dizer o
mesmo com respeito às obras de Santa Hildegardis de Bingen. Outra monja,
Gertrudes de Helfta, no século XIII, conta-nos como se sentiu feliz ao
passar do estado de "gramaticista" ao de "teóloga"! Pode-se mesmo dizer
que entrar para o mosteiro era o caminho normal das jovens que
desejassem desenvolver seus conhecimentos além do nível comum.
De
resto, observe-se que a Idade Média se encerra com a figura de Joana
d'Arc (+ 1431), jovem que, nos séculos seguintes, jamais teria
conseguido obter a audiência e suscitar a confiança que lhe foram
outorgadas no século XV.
No
fim da Idade Média e depois, os legisladores foram retirando à mulher
tudo o que lhe conferia alguma autonomia ou instrução. A mulher foi
excluída da vida eclesiástica e da vida intelectual. O
movimento se precipitou quando no começo do século XVI foi reconhecido
ao rei Francisco I da França (1515 - 1547) o direito de nomear abades e
abadessas; inspiradas por critérios políticos, tais nomeações
acarretaram a decadência de muitas casas religiosas.
2.3. Mães de família e camponesas
Através
do documentário existente (cartulários, estatutos das cidades,
documentos judiciários...), podem-se colher pormenores relativos à vida
cotidiana da mulher medieval. E surpreendente o quadro que se delineia
a partir da concatenação desses dados.
Assim,
por exemplo, as mulheres votavam. Por ocasião dos Estados Gerais de
1308 as mulheres são explicitamente citadas entre as votantes em
diversas partes do território francês, sem que isto venha apresentado
como uso particular do lugar. É conhecido o caso de Gaillardine de
Fréchou, que, diante de um arrendamento proposto aos habitantes de
Cauterets nos Pireneus pela abadia de Saint-Savin, foi a única a votar
NÃO, quando todo o resto da população votou SIM.
Nas
atas de tabeliães é muito freqüente ver uma mulher casada agir por si
mesma: abre, por exemplo, uma loja ou uma venda, sem ser obrigada a
apresentar autorização do marido. Os registros de impostos, desde que
foram conservados (como em Paris, a partir de fins do século XIII),
mostram multidão de mulheres a exercer as funções de professora, médica,
boticária, estucadora, tintureira, copista, miniaturista,
encadernadora, etc.
Somente no fim do século XVI, por decreto do Parlamento francês datado de 1593, a
mulher foi explicitamente afastada de toda função do Estado. A
influência crescente do Direito Romano finalmente confinou a mulher às
suas tarefas peculiares de cuidar da casa e educar os filhos. No século
XIX, mediante o Código de Napoleão, o processo de despojamento da mulher
deu novo passo: deixou de ser reconhecida como senhora dos seus
próprios bens, e, em casa mesmo, passou a exercer papel subalterno.
A
reação a tal estado de coisas tem ocorrido nos últimos tempos, ... mas
de maneira decepcionante, pois a mulher parece preocupada exclusivamente
na conquista de equiparação ao homem: quer imitar o homem, exercer as
mesmas funções que este, adotar os hábitos do seu parceiro, sem se
questionar a respeito do que ela reproduz, ou sem pensar em salvar a
sua própria identidade e originalidade! Ora isto prejudica não só a
mulher, mas também a própria sociedade, pois esta precisa de valores
peculiares da mulher e da feminilidade!
Passemos a outro capítulo do livro em foco.
3. O servo da gleba
Tal tema é abordado no capítulo V, que traz o título "Rãs e Homens".
Fala-se
da escravidão vigente na Idade Média, sem levar em conta que a
escravidão existente no Império Romano foi desaparecendo a partir do
século IV; cedeu a um regime diverso do da escravidão antiga.
Infelizmente, foi restaurada no século XVI, nas colônias da América.
A
instituição medieval do servo da gleba não pode ser comparada à
escravatura dos tempos romanos e coloniais, pois ela respeitava o servo (servus)[2] como pessoa, reconhecendo-lhe direitos. A origem de tal regime é a seguinte:
Na
época das invasões bárbaras, muitos pequenos camponeses viam-se
constantemente ameaçados em suas terras. Daí o contrato que faziam com
grandes senhores aptos a defendê-los mediante tropas e armas. Os
camponeses se obrigavam a morar na propriedade do senhor e a cultivá-la.
Era-lhes proibido deixar a terra, como também era vetado ao senhor
expulsá-los. Assim os pequenos lavradores usufruíam de certa segurança,
num período de instabilidade; eram-lhes reconhecidos os
direitos de se casar e fundar família, de transmitir a terra a seus
filhos depois da morte, assim como os bens que pudessem adquirir... O
senhor feudal tinha conseqüentemente suas obrigações para com o servo;
não era proprietário no sentido do Direito Romano, que reconhecia aos
senhores o direito de usar e abusar (ius utendi et abutendi).
Donde se vê que o regime medieval diferia essencialmente da
escravatura, que feria a dignidade da pessoa humana, pois o escravo era
tratado como coisa, sujeita a ser comprada e vendida a critério do
patrão.
O
estudo dos cartulários e arquivos medievais empreendido por Jacques
Broussard [3] permitiu reconstruir a história de alguns servos da
gleba, entre os quais Constant Le Roux, que passamos a apresentar:
Constant
era servo do senhor de Chantoceaux (Anjou) nos últimos anos do século
XI. Trabalhava com afinco. As Religiosas do mosteiro de Ronceray lhe
confiaram a guarda de um celeiro perto da igreja de Saint-Evroult e de
vinhedos no lugar chamado Doutre. Depois a condessa de Anjou o
presenteou com outro celeiro, perto das muralhas de Angers. As monjas de
Rocenray, tendo recebido como legado uma casa, forno e vinhedos
situados perto do celeiro de Constant, resolveram encarregá-lo do
conjunto, a título de renda vitalícia; pouco depois, aumentaram-lhe o
lote, juntando-lhe as terras do Espan. - Constant casou-se; cansado de
ser trabalhador meeiro, acabou por fazer um acordo com as Religiosas,
segundo o qual as terras lhe seriam arrendadas. Aumentou ainda seu campo
de trabalho, estendendo-o a um vinhedo em Beaumont e duas jeiras de
prado na Roche-de-Chanzé. Mais tarde, não tendo filhos, conseguiu das
monjas que suas terras fossem herdadas por seu sobrinho Gauthier, ao
passo que sua sobrinha Isolda se casaria com o guardador do celeiro da
Abadia, Rohot. Por fim, como acontecia não raro na época, Constant se
fez monge na Abadia de Saint-Aubin e sua mulher entrou como religiosa na
de Roncerav.
A
pesquisa dos cartulários revela que o caso de Constant não foi isolado
nem singular. Existe, por exemplo, uma certidão do fim do século XI
(1089 - 1095) que refere como dois servos, chamados Auberede e Romelde,
compraram sua liberdade em troca de uma casa que possuíam em Beauvrais,
no lugar do mercado. Este fato dá a ver que os servos tinham a
possibilidade de possuir bens próprios.
Compreende-se,
porém, que a condição de servo da gleba, vantajosa na época de sua
origem, se tenha defasado com o decorrer dos séculos. O camponês podia
considerar válido o fato de viver em propriedade da qual não o poderiam
expulsar; mas, desde que encontrasse meios de garantir sua própria
subsistência com autonomia, preteriria a plena liberdade; esta lhe
permitiria percorrer estradas e fazer comércio. Foi o que aconteceu
principalmente na época da expansão urbana (século XI). Os cartulários
apresentam numerosas certidões de libertação, que chegavam a
beneficiar centenas de servos de uma só vez.
A propósito observa H. Pernoud:
"Tive
ocasião de recolher as confidencias de um velho operário agrícola a
quem a idade não permitia mais trabalhar e que ia acabar seus dias num
asilo: 'Trabalhei esta terra toda a minha vida sem ter um metro quadrado
de meu'. Comparando-o ao servo medieval, sua sorte pareceria
infinitamente pior. Servo do senhor, em uma propriedade ele teria
assegurado
o direito de aí terminar a sua vida; nada lhe pertencia propriamente,
mas o usufruto não lhe podia ser retirado... Ele tinha com a terra a
mesma relação que o próprio senhor: este nunca possuía a propriedade
plena, como nós a entendemos atualmente... ; ele não pode vender ou
alienar senão os bens secundários que recebeu por herança pessoal, mas
sobre o bem de raiz só tem usufruto" (p. 71s).
Foi no século XVI que infelizmente se restaurou o regime da escravatura romana, que a Idade Média não conheceu, e que persistiu até o século passado apesar dos protestos de frades dominicanos como Bartolomeu de Las Casas e Vitória...
Vê-se, pois, que, sob o aspecto focalizado, a Idade Média está longe de ter sido obscurantista...
Vem agora a questão de
4. Heresias e Inquisição Medieval
("O Index Acusador", c. VII )
("O Index Acusador", c. VII )
O tribunal da Inquisição vem a ser outro motivo de acusação aos medievais.
Régine
Pernoud, sem deixar de reconhecer fraquezas humanas então verificadas,
põe em foco alguns pontos importantes para se avaliar o fato da
Inquisição.
Os
medievais estimavam acima de tudo (ao menos em teoria) os valores da
fé, colocando-os mesmo acima dos valores físicos. Além disto,
conjugavam entre si os valores profanos e os sagrados, de tal modo que
os desvios doutrinários ganhavam extrema importância mesmo no andamento
da vida civil. Por conseguinte, as heresias, na Idade Média, eram
consideradas como ofensas não só à reta fé, mas também aos interesses
da sociedade em geral.
Ora
no século XI começou a aparecer no sul da França e no norte da Itália
uma heresia dita dos cátaros (= puros), que professava o dualismo: o
universo material seria obra de um Deus mau; somente os espíritos teriam
sido criados por um Deus bom. Em conseqüência, condenavam tudo que se
relaciona com a procriação, a começar pela casamento; os mais autênticos
dos cátaros viam no suicídio a perfeição suprema.
Os
primeiros a combater a heresia cátara foram os príncipes, os nobres e o
próprio povo fiel. Assim em 1022 o Rei Roberto, o Piedoso, mandou
queimar em Orléans hereges. Em 1077 um herege professou seus erros
diante do bispo de Cambraia; a multidão de populares então lançou-se
sobre ele, sem esperar o julgamento; encerraram-no numa cabana, à qual
atearam fogo! Em 1144 na cidade de Lião o povo quis punir violentamente
um grupo de inovadores que aí se reunira; o clero, porém, os salvou,
desejando a sua conversão, e não a sua morte. Entrementes as autoridades
eclesiásticas limitavam-se a impor penas espirituais (excomunhão,
interdito...) aos cátaros, pois até então nenhuma das muitas heresias
conhecidas havia sido combatida por violência física. S. Bernardo (+
1153) dizia: "Sejam os hereges conquistados não pelas armas, mas pelos
argumentos" (In Cant. serm. 64).
Era,
porém, inevitável que os bispos tomassem parte na represália aos
cátaros. Por isto em 1184 o Papa Lúcio III, em Verona, instituiu a
Inquisição episcopal, que atribuía aos bispos a faculdade de inquirir os
hereges nas paróquias suspeitas; ajudá-los-iam nessa tarefa os condes,
barões e as demais autoridades civis. Em 1231 tal instituição se tornou
mais ampla, pois o Papa Gregório IX confiou aos frades dominicanos a
missão de Inquisidores; haveria doravante, para cada nação ou distrito
inquisitorial, um Inquisidor-mor, que trabalharia com a assistência de
numerosos oficiais subalternos, em geral independentemente do bispo em
cuja diocese estivesse instalado.
Os
efeitos da Inquisição têm sido descritos em termos imaginativos e
exagerados... Na verdade, as penas aplicadas eram a de prisão ou, com
mais freqüência ainda, a condenação a peregrinações ou ao uso de uma
cruz de fazenda pregada à roupa. Nos lugares onde se encontraram
registros da Inquisição, verificou-se que não foram tão numerosas as
execuções capitais como se poderia crer. Em Tolosa, por exemplo, de 1308 a 1323 o Inquisidor Bernardo de Gui proferiu 930 sentenças, das quais 42 eram capitais – o que equivale à proporção de 1/22.
Régine
Pernoud observa muito sabiamente que a Inquisição foi alimentada pela
ingerência do poder civil em questões religiosas. Sem querer desculpar
os clérigos que se hajam excedido na repressão da heresia,
deve-se registrar a forte influência do poder régio na conduta severa
dos tribunais da Inquisição.
"Era,
talvez, inevitável que em qualquer momento fossem instituídos
tribunais regulares, mas esses tribunais foram marcados por uma dureza
particular, em razão do renascimento do Direito Romano: as constituições
de Justiniano, realmente, mandavam condenar os hereges à morte. E é
para fazê-lo reviver que Frederico II, tornado imperador da Alemanha,
promulga, em 1224, novas constituições imperiais, que, pela primeira
vez, estipulam, expressamente, a pena da fogueira contra hereges
empedernidos. Assim se vê que a Inquisição, no que ela tem de mais é
fruto de disposições tomadas, de início, por um imperador em quem se
pode encontrar o protótipo do "monarca esclarecido", apesar de ter sido,
ele próprio, um cético e logo excomungado.
Resta
notar que, adotando a pena de fogo e instituindo como procedimento
legal o recurso ao "braço secular" para os relapsos, o Papa acentuava
ainda o efeito da legislação imperial e reconhecia, oficialmente, os
direitos do poder temporal na perseguição às heresias. Sempre sob a
influência da Legislação imperial, a tortura seria autorizada,
oficialmente, no começo do século XIII - desde que houvesse o
aparecimento de provas" (p. 102).
Ora as concessões feitas pelos Papas aos reis voltaram-se contra a própria Igreja. Com efeito, nota R. Pernoud:
"Ora,
todo este aparelhamento de legislação contra a heresia não demoraria em
ser dirigido pelo próprio poder temporal contra o poder espiritual do
Papa. Sob Filipe, o Belo, as acusações contra Bonifácio VIII, contra
Bernard Saisset, contra os Templários, contra Guichard de Troyes
apóiam-se neste poder reconhecido no rei para perseguir os hereges. Mais
do que nunca, a confusão entre espiritual e temporal joga a favor deste
último. Só precisamos recordar aqui as conseqüências mais graves: a
Inquisição do século XVI, a partir deste momento só nas mãos dos reis e
imperadores, iria fazer um número de vítimas sem comparação com as do
século XIII. Na Espanha, chegar-se-á à utilização da Inquisição contra
os judeus ou mouros, o que equivalia a deturpar por completo seus
objetivos" (p. 102).
Régine
Pernoud tem razão ao mostrar que a Inquisição no foi um tribunal
meramente eclesiástico. Na verdade, ela teve origem por convergência do
poder eclesiástico com o poder civil na repressão das heresias; mas
nesta aliança o poder régio foi, aos poucos, sobrepujando o
eclesiástico, chegando a manipular a Inquisição para atingir objetivos
políticos.
A autora encerra o capítulo lembrando um fato de sua experiência:
"Em
1970, uma transmissão de televisão foi consagrada à Cruz Vermelha
internacional e a suas comissões de investigação nos campos de
concentração. Seu representante foi interrogado por diversos
interlocutores, entre eles um jornalista, que lhe propôs a seguinte
pergunta: 'Não podemos obrigar os países a aceitarem a comissão de
investigação da Cruz Vermelha?'
E,
como o representante da instituição destacasse que as comissões de
investigação não dispunham de nenhum meio para que suas observações
fossem registradas, observadas ou sancionadas, que antes essas próprias
comissões não dispunham de nenhum direito de visita formalmente
admitido ou reconhecido por todos, a mesma jornalista replicou: 'Não se
poderiam banir das nações civilizadas as que recusam as comissões de
investigação?'
Escutando
este diálogo, com referência à História, poder-se-ia dizer que, em sua
indignação, por certo compreensível, esta jornalista acabava de inventar
sucessivamente a Inquisição, a excomunhão e a interdição - porque ela
as aplicava no domínio em que a concordância se faz unânime, o da
proteção aos prisioneiros e internados políticos" (p. 107s).
Acrescenta,
porém, R. Pernoud que não é necessário procurar comparações de tal
tipo. Em nossos dias, observa a autora, aplica-se a Inquisição não aos
delitos contra a fé, mas às dissidências em relação à opinião política
predominante. "Todas as interdições, todos os castigos, todas as
hecatombes parecem justificadas em nossos tempos para punir ou prevenir
os desvios e erros quanto à linha política adotada pelos poderes em exercício. E,
na maior parte dos casos, não basta banir quem sucumbe à heresia
política; importa convencer. Por isto ocorrem as lavagens cerebrais e os
internamentos intermináveis que esgotam, no homem, a capacidade de
resistência interior" (p. 108).
E conclui a autora:
"Quando
se pensa no desperdício insensato de vidas humanas... pelo qual se
consolidaram as revoluções sucessivas e o castigo dos delitos de
opinião em nosso século XX, pode-se perguntar se... a noção de progresso
não se encontra posta em xeque. Para
o historiador do ano 3.000, onde estará o fanatismo? Onde a opressão do
homem pelo homem? No século XIII ou no século XX?" (p. 108).
As
ponderações de R. Pernoud merecem atenção... Se os medievais
exorbitaram nas expressões do seu amor às verdades da fé, os
contemporâneos que os criticam, não têm menos motivos para se horrorizar
do que em nossos dias vem sendo cometido em nome dos interesses
políticos.
5. A arte medieval
(c. 11: "Deformados e Desajustados")
(c. 11: "Deformados e Desajustados")
O
termo "Renascimento" (Rinascita, em italiano) foi utilizado, pela
primeira vez, por Vasari em meados do século XVI. Significava que "as
artes e as letras, que pareciam haver morrido no mesmo naufrágio que a
sociedade romana, pareciam reflorescer e, depois de dez séculos de
trevas, brilhar com novo fulgor" (Dictionnaire général des lettres, por Bachelet e Dezobry. Paris 1872).
Assim
se manifestava um conceito pejorativo referente às artes e letras
medievais. Estas nada mais teriam sido do que "deformações" e "falta de
jeito".
Ora tal juízo não leva em conta objetiva a realidade dos fatos. Com efeito,
-
"o simples bom senso basta para fazer compreender que o Renascimento
não teria sido possível se os textos antigos não houvessem sido
conservados em manuscritos recopiados durante os séculos medievais" (p.
19) ... "Para citar um exemplo, a biblioteca do Monte Saint-Michel, no
século XII, continha textos de Catão, o Timeu de Platão (em tradução
latina), diversas obras de Aristóteles, de Cícero, trechos de Virgílio e
de Horácio" (ib).
-
As artes renascentistas reproduziam e imitavam os modelos antigos numa
atitude muito pouco criativa. Os antigos pareciam ter realizado obras
perfeitas, atingindo a Beleza integral.
-
Eis, porém, que no setor da arte a admiração nunca deve levar a
repetir formalmente o que se admira; a imitação nunca pode ser
transformada em lei.
"A
visão clássica que se impôs ao Ocidente, ... não admitia outro esquema,
outro critério que não fosse a antigüidade clássica. Mais uma vez,
presumir-se-ia que a Beleza perfeita tinha sido atingida durante o
século de Péricles e que, por isso, quanto mais nos aproximássemos das
obras daquela época, melhor atingiríamos a Perfeição" (p. 22).
Em contra-posição, observe-se que "o nome do poeta nos tempos feudais era trovador, o que encontra, encontrador, ou seja, inventor. O termo inventar
adquire aqui sentido forte,... Inventar é pôr em jogo, ao mesmo tempo, a
imaginação e a busca, é o início de toda criação artística ou poética.
Para as gerações de hoje, isto parece evidente. Resta saber que,
durante quatro séculos, o postulado oposto é que se impunha com
evidência semelhante" (p. 26).
A
arte medieval, de modo geral, foi criativa. Basta lembrar as magníficas
catedrais românicas e góticas que a caracterizavam... Mas é suficiente
também apontar os manuscritos medievais: um simples mapa da época
revela a capacidade de criação do artista (perfeição da escrita,
distribuição de página, selo de autenticação...). Uma letra ornamentada
(iluminura) manifesta outrossim a criatividade do desenhista...
5. Conclusão
O
livro de Régine Pernoud, embora tenha antecessores, vem em hora
oportuna provocar uma revisão do conceito comumente propagado de Idade
Média.
Esta
é mal entendida, em parte porque a historiografia é o setor do estudo
em que mais dificilmente os pesquisadores mantêm neutralidade
científica. A partir do século XVI certas correntes de pensamento
anticatólicas e anticristãs tiveram interesse em denegrir a Idade
Média. Esta difamação nem sempre foi objetiva (embora não fosse de todo
injustificada, pois tudo o que é humano, é falho), mas baseou-se
freqüentemente em preconceitos. Seria
para desejar, que os estudiosos contemporâneos se livrassem destes e
procurassem apontar outrossim tudo que de grande, belo e nobre
caracteriza a Idade Média.
Estêvão Bettencourt O. S. B.
_____
NOTAS:
[1] Cf. CRISTOPHORUS CELLARIUS, Historiae antiquae, mediae, novae nucleus. Senna 1675/6.
[2] Não poucos historiadores traduzem servus por escravo nos textos do século XII - o que revela e gera grave mal-entendido.
[3] La vie en Anjou du IX° au XIII° siècle, em Le Moyen èqe, t. LVI, 1950, pp. 29-68.
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