sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A época da “morte de Deus”


 
Por Daniel-Rops
 
 
 
O período que vai do fim do século XIX ao começo da Segunda Guerra Mundial traz consigo forças que parecem ameaçar a Igreja numa escala nunca vista anteriormente. É o laicismo de cunho liberal, que proclama abertamente a meta de lutar contra a moral cristã. É o ateísmo, que se alimenta do positivismo e do materialismo nas suas diversas vertentes – freudismo, darwinismo, marxismo... É o cientificismo, a “religião da ciência” que, apoiada na teoria evolucionista, lançará o mito do progresso. Enfim, é todo um conjunto de ideologias que se erguem para proclamar que homo homini deus – em lugar do velho Deus assassinado, agora o homem é deus para si mesmo. Mas esse novo deus não tardará a revelar a sua verdadeira face demoníaca nos totalitarismos triunfantes, ao passo que a Igreja continuará dando mostras patentes da sua santidade por toda a Terra.
 
 
 
O DESAFIO

Era em Weimar, aos 25 de agosto de 1900. Na modesta casa em que os parentes o tinham recolhido, só e demente, estava um homem prestes a morrer. Era um escritor cujas obras não tinham despertado muito eco entre os contemporâneos, mas que, cinqüenta anos depois, iria aparecer à humanidade como o profeta dos seus abismos: Friedrich Wilhelm Nietzsche. Na estranha autobiografia que, sob o título sutilmente sacrílego de Ecce Homo, escrevera imediatamente antes de a doença o fulminar, liam-se estas frases terríveis, em que o orgulho luciferino andava de mistura com a angústia:

“Onde está Deus? Eu o vou declarar: matamo-lo – vós e eu! Sim, todos nós somos seus assassinos. Mas como foi que pudemos fazê-lo? Como pudemos nós esvaziar o mar? A envergadura de tal ação não era demasiada para nós? Porque a verdade é que jamais houve ação maior que esta, e é por isso que aquele que nos suceder nesta Terra pertencerá a uma história mais alta que toda a História. Deus morreu! Deus morreu! E fomos nós que o matamos!”

No preciso momento em que desaparecia o autor dessa certidão blasfema, um velho, muito velho, também ele à beira do grande limiar, tomava solenemente a palavra, por duas vezes, a fim de entregar ao mundo o cerne da sua mensagem. Em 25 de maio de 1899, a encíclica Annum sacrum do papa Leão XIII consagrava a humanidade inteira ao Sagrado Coração de Jesus, símbolo do amor que o Deus feito homem tem por todos os homens, mesmo por aqueles que o ignoram, mesmo até por aqueles que o combatem ou negam. E, no dia 1º de novembro de 1900, iria sair uma outra encíclica, Tametsi futura – nova página mística, em que o sacrifício redentor de Cristo seria apresentado como a explicação última de tudo o que na terra se cumpre, o alfa e o ômega do homem e do seu destino.

É no confronto desses textos que se manifesta o drama espiritual que tem por teatro e por troféu tanto o século XIX como o século XX, seu herdeiro. De um lado, homens – de quem Nietzsche é o intérprete mais lúcido – que, levando ao cúmulo a rebelião da inteligência, empurram Deus para o meio dos fantasmas vãos ou dos cadáveres em decomposição. Do outro lado, fiéis – cujo guia e porta-voz é um papa de gênio – que vão buscar à situação inquietante em que vêem a cristandade motivos para serem mais audazes, mais eficazes, mais dedicados, e que, longe de admitirem que Deus desapareceu da terra, proclamam a sua soberania universal. É como que uma aposta. A Igreja de Jesus Cristo desafia aqueles que o negam. Há mais de um século que a história religiosa não é senão a história desse desafio.


NUM MUNDO QUE MUDA DE BASES

Quando, a 20 de setembro de 1870, o canhão piemontês, troando em frente da Porta Pia, pôs fim à venerável realidade histórica que era o poder temporal dos Papas, tinham transcorrido oitenta anos desde que um outro canhão – o dos parisienses revoltados contra o seu rei –, apontado contra as paredes da Bastilha, lançara por terra essa outra realidade histórica que fora o Ancien Régime francês. Mais do que a princípio pareceu, os dois acontecimentos estavam estreitamente ligados, um como causa do outro. Uma canhonada respondia à outra.

Efetivamente, a revolução que, durante dez anos, revolvera a França não dissera respeito apenas à França. As doutrinas que a haviam provocado, os ideais que os seus homens haviam servido, tinham-se proposto uma validade universal. Tinham penetrado profundamente nas consciências, tão profundamente que as tentativas dos seus adversários para arrancá-las se haviam revelado impotentes. Os exércitos vitoriosos tinham-nas difundido através das nações e das literaturas. Essas doutrinas tinham estado em ação durante oitenta anos seguidos, erguendo os “liberais” contra os regimes de autoridade, os “nacionalistas” contra a dominação estrangeira, explodindo em crises violentas por toda a parte, dando ao velho mundo perfis bem diferentes daqueles a que tantas gerações se haviam acostumado. “Na Europa, a revolução já está feita: importa que prossiga a sua marcha”, dissera um dos homens a que ela tinha dado origem: Napoleão Bonaparte. E ela prosseguira a sua marcha.

A essa primeira causa de transformação da sociedade, outra se juntara, que, a princípio, impressionara menos, mas que havia de se mostrar ainda mais decisiva. Ao mesmo tempo que a revolução intelectual e política, rebentara a revolução científica e técnica. A máquina a vapor, a bem dizer contemporânea da Declaração dos Direitos do Homem, preparara, não menos que esta, a mutação dos valores e dos princípios. Pouco depois, o ritmo do trabalho já se alterava, juntamente com as condições em que se exercia. O aparecimento da grande indústria tivera duas conseqüências: o desenvolvimento do capitalismo, reino desumano do dinheiro anônimo, e a formação do proletariado, com as suas imensas massas de gente sem esperança. Daí resultara um enorme desequilíbrio, favorável aos movimentos de subversão e às doutrinas socialistas. Desde 1848, a revolução social misturava-se com a revolução política, tornando-a mais violenta e mais eficaz. “O mundo vai mudar de bases”, escrevia, em 1871, Eugène Pottier, no poema que ia fornecer as palavras do hino revolucionário A Internacional. E não se enganava.

Por mais setenta anos irão decorrer novas transformações na vida política, social, moral, e serão de tal maneira profundas, tão radicais, que é lícito falar de substituição de bases. Elas se darão com espantosa rapidez. Já em 1872, ao escrever o prefácio à Histoire du XIXème. siècle, Michelet observava: “Um dos fatos mais graves e menos notados é que o andamento do tempo mudou por completo. De modo estranho, dobrou o passo”. A observação será ainda mais válida para o período seguinte. É então que se torna verdadeiramente manifesta essa “aceleração da História” que Daniel Halévy teorizará 1. Em poucos anos, aparece radicalmente modificado o equilíbrio das forças que conduzem o mundo: tendem a estabelecer-se novas relações entre as raças, entre as classes; impõem-se usos que as gerações anteriores desconheciam, e esses usos vão transformar, com a vida prática dos homens, o sentido da própria vida. Todos os fenômenos que vimos anunciados e depois esboçados desde a Revolução Francesa agora atingem pleno desenvolvimento. Haverá mais diferenças entre o mundo de 1939 e o de 1789 do que entre este e o do reinado de São Luís (†1270).
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(1) Essai sur l’accélération de l’Histoire, Paris, 1947; reed. 1961.
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Essas mudanças são de toda a ordem. Em política, é a Guerra de 1914-18 que parece provocar as mais espetaculares. Preparada por longos anos de jogos diplomáticos, a guerra rebenta como um vulgar conflito de hegemonia, mas cedo se transforma em drama planetário e provoca uma revisão radical das situações. Sob a pressão das forças por ela desencadeadas, ruem Impérios várias vezes seculares, que deixam atrás de si apenas escombros e farrapos, fundamento bem pouco sólido para sobre ele se edificar um futuro estável. Há regimes que sofrem a mesma sorte, enquanto outros surgem, de tipo desconhecido, temível, em que o espírito europeu, fundado sobre uma certa escala de valores, já não se reconhece. A velha Europa balança. O próprio continente que criou essas normas do espírito sente-se agora ameaçado, quer na sua supremacia, quer nas suas forças vitais. “Declínio do Ocidente” [Der Untergang des Abendlandes], profetiza Oswald Spengler: fim fisiologicamente inevitável de uma dessas “civilizações mortais” de que fala Paul Valéry – a civilização que havia mil anos regia o continente europeu.

No extremo Ocidente, a prodigiosa ascensão dos Estados Unidos da América, subitamente reforçada pela Guerra Mundial, parece ao mesmo tempo confirmar o declínio da Europa e assegurar parcialmente a salvaguarda dos seus valores, de resto profundamente alterados na forma que assumem no “Novo Mundo”. Ao mesmo tempo, no Oriente, e até no coração da Ásia imensa, outro fenômeno se inicia, cujo primeiro indício é a brusca entrada em cena do Japão, que vence a Rússia czarista em 1905. Trata-se da revolta das raças de cor contra aquela que, ao longo de três séculos, pretendeu assumir sozinha a direção do planeta, e cuja triunfal expansão colonialista semeara por toda a parte os próprios germes desse levantamento. Pressente-se e prepara-se para o mundo uma espécie de mutação, que a Segunda Guerra Mundial irá desencadear, encerrando uma página da História e, com ela, um capítulo de mais de um milênio, para abrir à humanidade uma era dramaticamente nova.

Esses enormes movimentos são ainda pouco, ao lado daqueles que a irrupção da ciência e da técnica vai determinar nas estruturas sociais e nos modos de vida – irrupção que, por outro lado, também explicará, ainda que parcialmente, as transformações políticas. Os progressos efetuados nesses domínios durante os dois primeiros terços do século XIX, por maiores que tenham sido, não se comparam com os que se operam a seguir, especialmente no último terço do século e no início do século XX. Que época espantosa! E, em muitos aspectos, que época admirável! O surto intelectual que nela se dá não tem par em nenhum momento da História. Dir-se-á que nenhum ano desse período deixou de ser assinalado por uma descoberta capaz de pesar sobre o futuro. Quando os americanos vierem a traçar a curva das “invenções decisivas”, vê-la-emos subir cada vez mais, quase na vertical, como se a capacidade criadora do homem tendesse para o infinito...

Tudo muda, tudo se renova, tanto a visão que o homem tem do Universo como as condições mais materiais em que ele vive. A ciência pura abre ao espírito perspectivas vertiginosas, em que se confundem matéria e energia, tempo e luz. Do maior ao mais pequeno, desde o espaço sem limites em que flutuam, aos milhões, as galáxias, até ao átomo onde se detecta a dança dos elétrons à volta de um núcleo, um mundo se revela, mundo que os homens de meados do século XIX nem sequer poderiam imaginar. Fato capital: as mais altas dessas especulações têm, quase sempre, conseqüências práticas. Traduzem-se, concretamente, em transformações na vida dos homens. Hertz esforça-se por definir em termos precisos uma teoria das ondas, e nasce o rádio, que vai revolucionar a comunicação do pensamento. Em 1895, Röntgen descobre os raios X; em 1900, Pierre e Marie Curie descobrem o elemento químico rádio. E, com isso, toda a terapêutica se transforma. E eis que, dos trabalhos de Lorenz, de Perrin e de Thompson, saem a eletrônica e o atomismo, para bem e para mal – anunciando outras revoluções.

A ciência aplicada e a técnica – essesos agentes soberanos da transformação dos tempos. E as datas são eloqüentes: todas as invenções práticas que atualmente regem as nossas vidas vêm desses anos: em 1875, o telefone de Graham Bell; em 1895, a “telegrafia sem fios” de Hertz, Branly, Lodge e Marconi; em 1889, a hidroeletricidade, a “hulha branca”, de Gramme, Bergès e Desprez; em 1888, o motor a explosão movido a gasolina, fixado por Forest; por volta de 1890, o automóvel; cerca de 1900, o “aeroplano”; em 1891, com os Lumière, o “cinematógrafo”. A lista seria longa e cobriria o campo de todas as disciplinas: da metalurgia, em que entram em uso novos minerais; da química, dos corantes ou dos solventes; dos têxteis; do material para todos os usos; da medicina ou da farmácia, que, de Pasteur a Fleming, tantos e tantos trabalham por renovar.

Todas essas invenções traduzem-se no aparecimento de máquinas, cada vez mais numerosas, de perfeição crescente. São elas que revolucionam todos os meios de comunicação e de transporte; elas que transmitem o pensamento e a informação, modificando a fisionomia do mundo talvez mais depressa e mais profundamente do que todas as outras invenções. São também as máquinas que dominam a produção de bens, cada vez mais espantosos, mais caros e mais indispensáveis. Praticamente tudo o que a sociedade moderna consome é produzido por elas, incluindo, em larga medida, os produtos do solo, visto que até a agricultura se mecaniza e, em todos os países novos, passa a ser uma indústria ao lado de outras indústrias. Entre a máquina e o homem, criam-se laços que ninguém quebrará.

As conseqüências deste acontecimento são inúmeras. Observam-se na vida de todos os dias e nas próprias estruturas da sociedade. Nos países de alta civilização técnica, dos quais os Estados Unidos da América são protótipo e símbolo, o nível de vida eleva-se e o conforto passa a ser um ideal. Mas, se é certo que o maquinismo pode produzir em quantidades gigantescas os bens de consumo, a verdade é que o sistema econômico do mundo ainda não está adaptado ao seu ritmo. E rebentam as crises, a mais dramática das quais é a de 1929; depois dela, há de ver-se queimar alimentos em diversos países, a fim de dar remédio à superprodução, enquanto chineses e indianos morrem de fome às centenas de milhares.

E talvez isso não seja ainda o mais grave; porque essa irrupção da técnica afeta o homem de todas as maneiras. Não se apagou ainda a recordação das terríveis conseqüências que teve sobre a vida dos trabalhadores a entrada em cena das máquinas. Pouco a pouco, essas condições vão melhorando, mas outro perigo se desenha. Em princípio, a máquina deve diminuir o esforço dos trabalhadores: “A humanidade – escreve Izoulet em 1914 – passou a ter ao seu serviço milhões de escravos de ferro”. Na realidade, em quantos casos não está o homem reduzido ao papel de escravo da máquina, que tem de alimentar e servir?... Por volta de 1900, Taylor precisa o seu famoso sistema de produção, baseado nos três princípios – “identidade, repetição, rapidez” –, e entra em uso a “cadeia produtiva”. Vinte anos depois, Ford integra o taylorismo numa concepção geral que não abrange apenas a produção e as trocas, mas também toda a vida do operário: tudo tem de obedecer às regras do standard. E é grande o perigo de o homem passar a ser somente uma roda de um mecanismo gigante, útil apenas para fabricar e consumir.

Em correlação com o fenômeno de natureza técnica que é o avanço triunfal da máquina, aparece um outro, que dele depende em larga medida: o monstruoso crescimento das cidades, a concentração das massas humanas. Entre 1870 e 1914, Paris duplica a suapopulação, e o mesmo se passa em todas as grandes capitais, enquanto os campos se esvaziam. De repente, destroem-se as antigas estruturas sociais. O homem perde o quadro natural em que se desenvolvia. Acha-se rodeado de massas imensas, anônimo, substituível, prestes a sofrer todas as pressões crescentes da coletividade. Prepara-se uma sociedade gregária. O processo é mundial; estende-se a todos os países onde se desenvolve a grande indústria moderna.

Ao considerarmos as prodigiosas transformações que se deram durante esses setenta anos, como não falar de revolução? É certo que os resultados são bem diferentes daqueles que sonhavam os constituintes de 1789; o individualismo destes pouco tinha a ver com a civilização de massas, e, cento e cinqüenta anos após terem sido proclamados, os Direitos do Homem mostram-se bem ameaçados. Mas nem por isso deixa de ser verdade que foram as forças desencadeadas pela Revolução Francesa que continuaram a abalar o mundo nos seus alicerces; são elas que acompanham, na velha sociedade ocidental, essa “ascensão vertical dos bárbaros” diagnosticada por Ortega y Gasset; são elas que fazem fermentar contra os colonizadores a Ásia e a África. A irrupção da técnica deu-lhes novas oportunidades de aplicação, multiplicando as causas do desequilíbrio. Social ou política, é sempre a Revolução que prossegue a sua marcha. E a Igreja, que tem de levar a mensagem de Cristo à terra dos homens, continua a ser a Igreja das Revoluções.


O REINADO DO ESPÍRITO LAICO

Todos esses acontecimentos que mudam as bases do mundo parecem estar extremamente longe das preocupações espirituais da Igreja e do seu campo de ação. De fato, porém, dizem-lhe respeito diretamente. Não é só de ontem que o sabemos, e a teologia não cessa de repeti-lo: sobrenatural por essência, transcendente à terra pelo seu fim, a Igreja não deixa de ser constituída por homens, seres de carne e sangue, e, daí, empenhada no temporal. Desde as suas origens, sempre teve de enfrentar o problema da sua inserção nas sucessivas formas de civilização. E agora vai ter de enfrentá-lo de um modo mais imperioso que nunca. Pois não é verdade que está posto em causa o homem que ela tem por encargo levar à salvação? E não estará o próprio Deus ameaçado pelas forças obscuras e temíveis que determinam as transformações que se observam? Para a Igreja, o que está em jogo nas suas relações com os Estados, com as classes sociais, com as diversas raças, é a sua autoridade, como também as possibilidades de transmitir a sua mensagem: numa palavra, a sua própria existência, contra a qual se encarniçam muitos inimigos.

Os setenta anos cuja importância acabamos de ver no âmbito da história profana não são menos significativos no da história religiosa. Essas décadas coincidem com um enorme crescimento dos adversários que, desde havia muito, se lançavam contra o cristianismo, tentando deitá-lo abaixo. É verdadeiramente “a irrupção tempestuosa do ateísmo” de que fala Jacques Maritain. Em todos os planos e de todos os lados, desencadeia-se um imenso assalto contra a fé cristã, contra os costumes cristãos, contra a Igreja. A prodigiosa mutação que se opera na história irá marcar o fim da religião? Ao mudar de alicerces, irá o mundo expulsar Deus?

Três são as palavras que cobrem todas as formas de hostilidade à religião, desde o início deste período. Palavras que, precisamente, passam a ser usadas num sentido novo 2: laico, laicismo, laicidade. Designando primitivamente o homem que não era clérigo, o termo laico passa a ter uma acepção mais polêmica; significa “aquele que está separado de qualquer realidade religiosa”: separado, daí a pouco hostil 3. O “laicismo” é a atitude de espírito daqueles que, na teoria e na prática, rejeitam a fé e tudo o que dela procede. Inclui todas as formas e manifestações da luta empreendida contra o cristianismo. No fim das contas, o que visa é a dessacralização radical da vida e do mundo. Compreende-se que um papa que não teve fama de espírito estreito, Pio XI, haja qualificado o laicismo como “a peste do nosso tempo, em que se encontram, no que têm de pior, todos os nossos erros” 4.
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(2) É por volta de 1875 que essas palavras tomam o sentido que aqui lhes damos. Nesse ano, Renan fala da laïcité – “laicidade” – num discurso acadêmico, mas a edição de 1878 do Dicionário da Academia ainda ignora a palavra e só define laïc na sua antiga acepção de “leigo”. Em 1871, Littréainda definira o laicismo como “o conjunto ou o caráter dos leigos”, e foi só em 1935 que a Academia redefiniu o termo: “Doutrina que tende a dar às instituições um caráter não religioso”. Na realidade, é mais que uma doutrina: é uma atitude geral do espírito.

(3) Como os termos leigo, laicismo e laicidade (laïc, laïcisme, laïcité) continuam a ser bastante equívocos, é bom notar que houve − e há sempre −, no campo mais laico, consciências nobres e retas, que nunca desejaram abater nem derrubar a moral evangélica. Mas os próprios “santos laicos” [como, em Portugal, se chamou a Antero de Quental (N. do T.)] esvaziavam o sobrenatural e contribuíam para minar as bases da fé pela sua simples presença. O respeito que temos por alguns deles não basta para desmentir a lição dos fatos, que é a que se pode tirar quando consideramos a obra levada a cabo pelo laicismo.

(4) Encíclica Quas primas, 1925.
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Ao longo de todo o período que estudamos, vemos o espírito laico em plena atividade, minando por todos os lados o edifício cristão. Começa por atuar no plano político, inspirando os governos, penetrando nos regimes. Reclama a separação total da Igreja e do Estado, sob o pretexto de impedir o domínio de uma entidade sobre a outra, mas, de fato, a sua intenção é afastar de todas as instituições humanas os imperativos religiosos. Retomando os métodos de que tantos governos se tinham servido séculos atrás, mas agora num intuito mais radical, ataca as congregações religiosas, o recrutamento do clero, os vínculos que unem os católicos à Sé de Roma. Antes de tudo, procura destruir o quadro em que a Igreja atua, lançando mão de métodos empregados outrora pelos regalistas, galicanos e josefitas, ou, mais tarde, pelos membros da Convenção. Pode assumir expressões diversas. Com grande freqüência, será por meio da legislação, como na Alemanha de Bismarck ou na França da IIIa. República. Mas também pode suceder que, na luta contra a fé, os senhores do laicismo recorram à perseguição violenta, como se verá no México ou na Espanha, enquanto não surgem os sistemas totalitários, que conjugarão os dois métodos, utilizando ao mesmo tempo o terror e o arsenal legislativo para fazer triunfar a irreligião.

Para agir sobre os governantes, o espírito laico tem uma arma secreta: a franco-maçonaria. Sem cairmos nos excessos de alguns polemistas à maneira de Léo Taxil, que vêem maçons por toda a parte, há que reconhecer que, no grande assalto promovido contra a religião, a seita desempenha agora um papel considerável. Tinha-se podido pôr em dúvida a sua responsabilidade na preparação da Revolução Francesa e concluir que, se certos dos seus membros tinham ocupado um lugar eminente no movimento de idéias que levara à explosão revolucionária e à sua inflexão para um sentido hostil ao cristianismo, a franco-maçonaria, naquela altura, não devia ser incriminada em bloco 5. De resto, a Revolução não a respeitara: fizera desaparecer na França a maior parte das lojas.
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(5) Cfr. o vol. VII, cap. I, par. Uma questão obscura: o papel da franco-maçonaria.
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Reorganizada sob o Império, em que José Bonaparte e Cambacérès a tinham dirigido, contara entre as suas fileiras marechais, altos magistrados, notabilidades de toda a espécie. Apesar de começos difíceis, a Restauração não lhe fora desfavorável, porque o duque de Berry e o ministro Decazes, “irmãos”, a protegiam, e a glória de La Fayette a aureolava. Mas fora sobretudo no governo de Napoleão III que a maçonaria atingira o seu pleno desenvolvimento, na França e fora da França. Embora desconfiasse dela, o antigo carbonário deixara-a crescer, tentando controlá-la por meio de Lucien Murat, do marechal Magnan e do “irmão” Morny. Nesse meio tempo, na Itália, em que Cavour e Garibaldi eram dos seus, e na Alemanha, a seita participava diretamente dos movimentos nacionalistas e liberais, especialmente anti-romanos.

O período que começa em 1871 é o do seu triunfo. Se bem que a participação de alguns dos seus membros na Comuna pudesse torná-la suspeita, ela ocupa subitamente, na IIIa. República, um lugar de primeira importância, ainda que secreto. “A maçonaria – escreverá o «irmão» Gadaud – é a República encoberta, tal como a República é a maçonaria descoberta” 6. O alto pessoal do Estado é maçom ou simpatizante: de Gambetta a Émile Combes, de Jules Ferry a Waldeck-Rousseau... Não seria fácil fazer a lista completa. E não é assim apenas na França. Os “irmãos \” atuam no Império de Bismarck, bem como na Itália, com Crispi ou Ernesto Nathan(o mais sectário dos prefeitos que Roma conheceu). Detêm o poder em numerosas repúblicas sul-americanas, como também em Portugal. Na Espanha, a revolução que vai abater a Monarquia será preparada nas lojas e terá por chefes aqueles que os “conventos” designarem – os Azaña, os Lerroux, os Largo Caballero. Como o poder ajudava ao recrutamento, a maçonaria será cada vez mais próspera. Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, os maçons hão de alcançar a cifra de perto de dois milhões.
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(6) Convent du Grand Orient, 1894, pág. 389.
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Ao mesmo tempo, dá-se uma evolução. O deísmo sincero, mais ou menos claramente formulado, que antes de 1789 inspirava a franco-maçonaria, e até, já sob a Restauração, aquele a que Joseph de Maistre era capaz de aderir, desaparecera progressivamente. Muitas lojas, a partir de 1848, apagaram do seu ritual o Nome de Deus. Apenas numa minoria de maçons subsiste um respeito pelo “Grande Arquiteto”; a maioria é racionalista e atéia. Um anticlericalismo fervente, apaixonado, anima a propaganda feita pelas lojas em nome de um ideal de liberdade e de justiça. O ódio à Igreja torna-se o principal motor da sua ação. “Não esqueçamos que somos a Contra-Igreja!” – exclama um “irmão”. E outro continua: “Nós, maçons, temos a obrigação de prosseguir na demolição definitiva do catolicismo”. E um outro precisa ainda: “O que tem de ser destruído é o instrumento de que o clero se serve para subjugar as massas: é a própria religião”7. Animados por tais princípios, os franco-maçons no poder irão trabalhar o melhor possível para instalar o reinado do espírito laico.
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(7) Estas três citações são extraídas das atas oficiais de reuniões maçônicas. Por esta ordem: Congresso regional maçônico de Belfort, mai. 1911; Convent du Grand Orient, 1895; Congresso internacional de Paris, 1900.
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Para estabelecer esse reinado, foi posta em prática uma ação sistemática em todos os planos, a começar pelo intelectual. A ofensiva lançada por Strauss, Renan e os outros – tantos outros, desde Voltaire 8! – vai ser retomada e desenvolvida. O trabalho crítico sobre os textos sagrados, em que nem tudo é de rejeitar (o de Harnack, ou o dos defensores da Formgeschichtliche Methode 9, o “método da história das formas”), será sistematicamente centrado contra as bases escriturísticas da fé, apresentadas como se fossem um amontoado de coisas inverossímeis. A figura de Cristo será maltratada. O Antigo Testamento, especialmente visado por Wellhausen, há de ser ainda mais maltratado, e os seus milagres objeto de escárnio. A arqueologia será convidada a prestar o seu apoio. A publicação dos “códigos babilônicos”, tais como o de Hamurabi; a edição, por Flinders Petrie, do Livro dos Mortos do Antigo Egito; o estudo do dualismo iraniano – tudo vai permitir apresentar a mensagem judaico-cristã como simples decalque das religiões orientais.
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(8) Cfr. o vol. VIII, cap. VI, e vol. VII, cap. I.

(9) Cfr. neste volume o cap. VI, par. Um perigo interno.
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Mais ainda: quando nascer na Inglaterra a Ciência Comparada das Religiões, vai haver um grande entusiasmo em buscar analogias e prefigurações da Santíssima Trindade na “tríade capitolina” dos romanos ou na de Brama, Vishnu e Shiva venerada pela Índia, e a “realeza sagrada”, tão querida da Escola de Upsala, “explicará” a messianidade de Jesus. Tal como o estudo das religiões primitivas, inventado por Edward Burnett Taylor, o inquérito prodigiosamente minucioso feito por James Frazer no The Golden Bough [“O ramo de ouro”, 1890] há de autorizar os espíritos “verdadeiramente livres” a encontrar a origem de todas as religiões, sem excetuar o cristianismo, em obscuras práticas, e a tudo explicar pelo totem, o tabu, a “manducação de Deus” e os “ritos mágicos” 10.
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(10) Salomon Reinach, autor de um manual de História das Religiões, Orpheus, ganhou fama usando e abusando dessas aproximações. Como sabemos, os primeiros cristãos empregavam o anagrama Ichtys [‘Iésous Christós Theoú ‘Yiòs Sotér, “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”] para designar Cristo; prova evidente, para Reinach, de que adoravam um “deus-peixe”. Para ele, a Eucaristia era um rito mágico, análogo aos da antropofagia dos primitivos (afinal, não se conhecem tribos que comem o fígado da vítima humana para se apropriarem da sua força?...). É triste pensar que, durante os primeiros trinta anos do século XX, Orpheus tenha sido considerado, em muitos meios universitários, como livro digno de crédito!
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A História, como é óbvio, não ficará fora desses jogos; vai ser convidada a demonstrar os “escândalos da Igreja” e as suas enormes iniqüidades, mesmo as menos demonstráveis, como por exemplo a da pretensa “papisa Joana”. A Inquisição, o processo dos Templários, o caso Galileu – outras tantas excelentes ocasiões de polêmica! Tudo isso será difundido, quer pela imprensa de larga tiragem, quer pelos manuais para uso da instrução primária. Vem a propósito uma palavra de um mestre ilustre da Universidade, Edgar Quinet, no seu Livre de l’éxilé: “Trata-se, não apenas de refutar o papismo, mas de o extirpar; não apenas de o extirpar, mas de o desonrar”.

Não menos que as bases intelectuais do cristianismo, serão minadas as suas bases morais. As leis laicas terão em vista arruinar o edifício cristão anulando as regras morais impostas pela Igreja. E não é um desígnio oculto. “O nosso objetivo – há de dizer Albert Bayer – é lutar contra a moral cristã, expulsar das consciências os velhos dogmas, mas também os preceitos e as máximas que nelas foram introduzidos a coberto de tais dogmas”. É significativo que o divórcio, condenado pelos católicos como “um regresso ao paganismo e ao naturalismo”, seja imediatamente estabelecido pelos governos que se inscrevem na luta anti-religiosa, como por exemplo a França em 1884 e seis ou sete outros países. É igualmente significativo que, em Estados em que o direito matrimonial era da competência exclusiva das autoridades religiosas – no Brasil, na Argentina, na Espanha, na Hungria, em Portugal e em outros lugares –, o casamento civil receba sanção legal. Significativo ainda que um dos cuidados dos regimes anticlericais seja o de autorizar a incineração dos mortos (na França, a decisão data de 1886), por a Igreja ser hostil a essa prática 11.
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(11) Atualmente, segundo dispõe o Código de Direito Canônico, a Igreja aceita a incineração, embora a desaconselhe (N. do T.).
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Um dos aspectos mais importantes desta ação do espírito laico é o que se propõe dominar a juventude. É certamente aí que a ambigüidade dos termos é mais manifesta. Reclama-se a “neutralidade” da escola “laica”, ou seja, o direito de educar as crianças fora de toda e qualquer influência religiosa. De fato, porém, a intenção profunda é expulsar Deus da escola e da consciência das crianças. “A guerra entre nós não está nos caminhos abertos: está na escola!” – atira o laico Clemenceau aos seus adversários 12. E outro laico, Viviani, há de reconhecer: “A neutralidade é sempre uma mentira” 13. Um dos grandes condutores do laicismo escolar, Ferdinand Buisson, num livro francamente intitulado La foi laique, chega a fazer esta confissão: “A escola deve ser doutrinariamente laica” 14, ou seja, não apenas de fato. Não é de admirar, pois, que, em todos os países onde se põe o problema religioso, as discussões mais graves sejam sempre sobre a questão da escola e da formação da juventude. Isto é verdade não só nas democracias anteriores a 1914, mas também na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler.
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(12) Sessão do Senado, 15.04.1901.

(13) Cit. por L’Humanité, 4.10.1904.

(14) Ferdinand Buisson, La Foi laïque: Extraits de discours et d´écrits, 1878-1911, Hachette, Paris, 1912, págs. 209-212. É de notar que, na França, a Ligue de l’Enseignement, fundada em 1866 por Jean Macé, tem origem nitidamente maçônica. O próprio Macé assim o declarou formalmente, em 1886, no Congresso de Lille: “A Liga é uma maçonaria exterior”, embora mais tarde, depois da Primeira Guerra Mundial, este caráter tenha passado a ser menos marcante. A Liga foi condenada por Pio IX em 14 de janeiro de 1873.
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Tal o dado capital de toda a evolução do mundo no período que vimos considerando. O espírito laico reina cada vez mais soberanamente. E esta é uma constante tão evidente que não se limitará a ser apanágio das democracias chamadas “liberais” de antes da Primeira Guerra Mundial, que tão bem o serviam. Quando, após o conflito, vierem a surgir os regimes totalitários, estes não irão ser menos laicos, menos substancialmente opostos à Igreja e a toda a religião, que as democracias que eliminaram ou que condenam. Hitler e Lênin serão tão laicos como os ministros de Combes ou de Crispi. Até os processos de que se vão servir os totalitarismos para fazer penetrar o laicismo nas consciências e nos espíritos serão idênticos: ação sobre a família, sobre a juventude, polêmica crítica. O “Museu do Ateísmo”, em Moscou, irá afixar nas suas paredes os argumentos do voltairianismo ao lado daqueles que a irreligião vai buscar à ciência e à técnica. E o fim último de toda essa obra de laicização continua a ser o mesmo, de Combes a Stalin.

Bem sabemos qual é esse fim: os defensores do laicismo não o escondem. Para lá da Igreja, das suas instituições, e até para lá de qualquer religião, o que se visa é uma certa concepção da vida – aquela que assenta na fé. “A idéia laica encerra uma concepção filosófica que implica a independência e a auto-suficiência da razão” – diz um historiador do laicismo 15. Quando empreender a luta contra a Igreja, Bismarck dar-lhe-á um nome eminentemente significativo: Kulturkampf [“luta entre culturas”], frisando assim que se trata do embate de duas concepções da civilização. O que os marxistas vierem a dizer será, como se sabe, a mesma coisa. Este intuito de construir uma sociedade sobre a negação da fé foi formulado em termos tão claros por um dos representantes mais autorizados do laicismo sob a IIIa. República, que todos os protagonistas da irreligião, até Hitler ou Stalin, os poderiam fazer seus. Interrogado por Jaurès acerca da intenção profunda da sua política, Jules Ferry respondeu: “A minha intenção? Organizar a humanidade sem Deus”.
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(15) G. Weil, Histoire de l’idée laique en France, Paris, 1929.
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“CRER OU NÃO CRER”

Na imensa ofensiva conduzida contra o cristianismo, há, pois, bem mais do que o banal anticlericalismo, e até o ódio à Igreja como instituição. Na raiz do movimento que se diria lançar o mundo contra a religião, o que há é um pensamento, uma concepção do homem essencialmente oposta àquela que o cristianismo oferece. Bem o compreendeu Leão XIII, e bem o assinalou, na primeira encíclica do seu pontificado, uma das mais importantes de todas, a Inscrutabile Dei: “Se considerarmos bem as condições críticas do nosso tempo, descobriremos sem dificuldade que há uma só causa para os males que nos ameaçam: os erros filosóficos que certas escolas fizeram penetrar em demasiadas consciências”.

Não era de ontem essa responsabilidade espiritual. O “conflito entre crer e não crer”, de que Goethe, no seu West-östlicher Divan [“Divã do Ocidente e do Oriente”], já dizia ser “o tema mais profundo da História do mundo, único verdadeiro, só ele único”, foi travado, quanto à Europa cristã, no momento em que o homem começou a discutir os imperativos da Igreja e a opor às certezas da fé as certezas, mais imediatas, da razão. A rebelião da inteligência 16, iniciada nos dias do Renascimento pelos Poggio, os Platina, os Dolet, os Cardan, depois encorajada pela vitória do cartesianismo – um cartesianismo entendido num sentido que Descartes não teria aprovado –, nunca mais desde então cessou de minar a consciência européia, até quando ela parecia estabelecida nas bases mais sólidas 17, e veio saltar à vista no século XVIII. Invocando “luzes” que não eram as da fé, o espírito humano pretendeu desembaraçar-se desta como se fosse uma venda nos olhos. A Revolução Francesa marcou o ponto máximo dessa evolução. Embora não tenha tido por causa imediata essa rebelião da inteligência, a verdade é que recebeu e difundiu os temas desta, da qual foi, afinal, o sinal mais brilhante e mais terrível. Foi também à luz sangrenta da Revolução que começaram a descobrir-se as conseqüências da revolta intelectual.
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(16) Cfr. o vol. VIII, cap. VI, e vol. VII, cap. I.

(17) Cfr. Paul Hazard, La crise de la conscience européenne, 1680-1715, Paris, 1935.
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O século XIX, nos dois primeiros terços da sua história, assinalara uma terceira fase da revolta luciferina, uma “terceira Aufklärung” (como alguém disse), mais radical que as do Renascimento e do Século das Luzes. Enquanto, na primeira fase, se atacara sobretudo a estrutura da Igreja – o que explica que a revolução protestante tenha vindo imediatamente depois do Renascimento –, e, no “Século das Luzes”, se pusera em causa a fé em Cristo, a época de Kant, de Hegel, de Comte, de Renan, de Taine, de Marx foi muito mais longe. Os esforços diferentes, mas na verdade convergentes, de todos esses espíritos, levavam a recusar qualquer fé num ser transcendente. Era propriamente “o conflito entre crer e não crer”. O Deus revelado da religião cristã passava a ser discutido; segundo alguns, radicalmente suprimido.

A esse resultado, nada traz de novo o período que se abre em 1871. Todas as doutrinas hostis à fé que então surgem em ação procedem diretamente das do princípio do século XIX. Todas, exceto uma – o idealismo –, que é diferente, mas que vem dar um som tão radicalmente novo que poucos serão capazes de recolher o seu eco. Os outros não fazem senão prolongar Auguste Comte ou Feuerbach e Marx, tirando as conseqüências das idéias lançadas por esses pensadores. E não é dos menos curiosos aspectos da crise do espírito contemporâneo essa como que esterilização da irreligião doutrinária, essa ausência de seiva criadora, exatamente no período em que parece prestes a triunfar.

Conjugam-se, pois, as três grandes correntes da irreligião que antes pudemos detectar. Uma é o positivismo que teve em Comte o seu teorizador 18. Os positivistas não se recusam a admitir a existência de substâncias espirituais distintas das materiais, coisa que os materialistas negam. Mas, mesmo para os positivistas, a única realidade que verdadeiramente conta é a que fere os sentidos e é percebida pela inteligência humana. O conhecimento “positivo” é, por conseguinte, o mais completo. É a ele que chega a humanidade moderna, agora que, graças à ciência, ultrapassou a “idade teológica” e depois a “idade metafísica”. Falecido em 1867, Auguste Comte deixou numerosos discípulos 19.
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(18) Veja-se a exposição dedicada a Auguste Comte no vol. VIII, cap. VI, par. A caminho do humanismo ateu: 2. Positivismo e religião da humanidade, segundo Auguste Comte.

(19) Na maioria, deixaram cair a famosa “religião da humanidade”, que, para Comte, era o arremate do seu pensamento. Alguns poucos pensadores e políticos vão permanecer-lhe fiéis: na França, Pierre Laffite; na Inglaterra, Congrege; na América do Sul, alguns nomes, especialmente no Brasil e na Bolívia.
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Na França, Littré, autor do dicionário mais célebre, é seu zeloso propagandista, antes de regressar ao cristianismo, já às portas da morte... Hippolyte Taine (falecido em 1893) aplica o positivismo a mui, t, os temas de História e de Estética, embora as suas convicções tivessem mudado no que diz respeito à metafísica comtiana. Na Inglaterra, a corrente positivista alia-se àquela a que deu origem John Stuart Mill, depois continuada pelo seu discípulo Alexander Bain. Na Itália, o positivismo goza de grande prestígio, com Roberto Ardigo (1828-1920), “o filósofo dos fatos”, fundador da Rivista di filosofia scientifica juntamente com o médico e antropólogo Mantegazza. Nos países germânicos, onde Ernst Lass e Friedrich Jodl se fizeram incensadores de Comte, as teses deste tomam novo colorido, com o empirocriticismo de Richard Avenarius e Ernst Mach, que reduzem o conhecimento à sensação e submetem todos os fenômenos a leis físico-químicas; é esse empirocriticismo que Lênin classificará como “doutrina bastarda, incrivelmente caótica e reacionária”... Sob os seus diversos aspectos, o comtismo exerce uma influência profunda. Espíritos tão diferentes como Charles Maurras e Lévy-Bruhl hão de aderir a ele. As suas aparências de objetividade e de seriedade agradam às inteligências universitárias. Há de animar vastos setores do pensamento, até ao momento em que, renovado e sistematizado por Marx, o materialismo o substituir.

Em certo sentido, o materialismo é mais lógico. Não aceita que haja qualquer manifestação espiritual independente da matéria. Toda e qualquer atividade intelectual ou moral procede do funcionamento do corpo. São teses já defendidas, no século XVII, por Thomas Hobbes e, no século XVIII, por La Mettrie e numerosos enciclopedistas. No decorrer do século XIX, foi sempre aumentando de importância. Porventura a única realidade não será aquela que a ciência atinge diretamente?

O livro que Ludwig Büchner publicou em 1855, Kraft und Stoff [“Energia e matéria”], reeditado vinte vezes em meio século, difunde largamente essas teses. A Alemanha é a terra privilegiada dessa doutrina, com Moleschoff, fisiologista a quem a mera palavra espírito põe fora de si, ou Carl Vogt, ou Ernst Haeckel, pensador medíocre, mas grande vulgarizador. Mesmo um sábio genial como Wilhelm Ostwald (1853-1932), prêmio Nobel de química, mal se afasta do mais rasteiro materialismo na sua concepção do mundo como agregado de átomos regidos por leis de uma dinâmica incompreensível.

Essa corrente materialista expande-se por todo o lado. É ela que leva o psiquiatra italiano Cesare Lombroso a construir a teoria do gênio como forma de loucura. Na França, é ela que eleva aos píncaros Félix Le Dantec (1869-1917), para o qual “a consciência não é mais que um epifenômeno” e todos os pensamentos são conseqüências do “determinismo sociológico”. Assim se preparará o terreno para uma outra forma de materialismo, infinitamente mais estruturada e mais atuante – a que Marx propõe.

Positivismo e materialismo, aliás muitas vezes afins e difíceis de distinguir, parecem querer partilhar entre si o campo inteiro do pensamento. Achamo-los associados com maior ou menor clareza a todas as disciplinas científicas novas. Por exemplo, à sociologia, que Comte inventou ao ensinar que o desenvolvimento da humanidade está sujeito a leis cujos princípios podem ser fixados pelos métodos científicos. Émile Durkheim (1858-1917) será o sistematizador da nova ciência, cujos domínios vão ser estendidos por Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939) ao campo da moral. Os sociólogos pensam, segundo observa o seu fiel intérprete Albert Bayet, que importa “considerar os fenômenos sociais como coisas” e rejeitar qualquer explicação transcendente e finalista. É a sociedade humana que faz o homem, sem nenhuma significação. “Não pode haver moral teórica”, diz Lévy-Bruhl, pois a única moral real é aquela que a sociedade impõe. Já Jean-Marie Guyau, numa obra que, apesar de esquecida, fez grande furor no seu tempo (1885), falara de uma “moral sem obrigação nem sanção”.

Fora desse vasto domínio em que avançam, cada vez mais misturadas, as ondas violentas do positivismo e do materialismo, dir-se-ia não haver senão ilhotas ameaçadas. A persistência das afirmações espiritualistas, quer as de Bergson, quer as de pensadores cristãos como Blondel ou Maritain, cuja capital importância examinaremos 20, é considerada por muitos como um fenômeno bizarro, absurdo, uma curiosidade análoga à da observação dos mamutes no gelo polar. A única corrente filosófica admitida e que banha a consciência dos intelectuais quando lhes repugna a mediocridade do mecanicismo e do materialismo vulgar, é o idealismo. Saído de Hegel, vê na “idéia”, ou seja, no Espírito, o Ser Universal do qual procedem todos os seres individuais. Tem os seus arautos: na Inglaterra, Bradley e Pringle-Pattison; na Itália, Benedetto Croce (1866-1952) e Giovanni Gentile (1875-1944), que depressa serão irmãos-inimigos; na França, Léon Brunschvicg (1869-1944). Não falta nobreza a essa doutrina, que tem o sentido das verdadeiras hierarquias, mas à qual se censura ter pouco em conta o real e não o dominar de modo nenhum. Lênin irá lembrar aos idealistas que a terra existia antes do homem, isto é, antes da idéia, e Péguy há de lançar-lhes o sarcasmo: “O idealismo tem as mãos puras; mas não tem mãos!”
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(20) Cfr. neste volume o cap. XII, par. Uma filosofia do espírito.
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Todas essas doutrinas têm um mesmo fim; bem sabemos qual. Até o idealismo, que, centrando tudo no “eu” pensante, elimina necessariamente todo o Espírito absoluto criador, preexistente a tudo, e cujos defensores – em termos mansos, como um Brunschvicg, ou, mais violentamente, como um Gentile ou um Croce – são, na realidade, adversários decididos do cristianismo. A hostilidade para com a religião é nítida nos outros, quer positivistas, quer materialistas, aqui aliados. Como o sobrenatural escapa, por definição, à experiência sensível e não pode ser alcançado sem a matéria, toda a metafísica é absurda. “Falar de fé – dizia Mach – é falar de vento”. Mesmo os mais moderados – como Herbert Spencer – reduzem Deus a um desconhecido do qual a ciência nunca há de saber nada e de quem, por conseqüência, mais vale não tratar. Para Haeckel, nem a existência de Deus, nem a imortalidade da alma, nem o livre arbítrio têm qualquer sentido. De resto, “Deus não passa de um animal vertebrado gasoso”... Os sociólogos, cuja influência vai crescendo, como fundamentam tudo na consciência coletiva que se impõe ao indivíduo, concluem daí que a crença em Deus não é mais que uma ilusão imposta pela sociedade, e a sua moral, como já vimos, é exatamente antitética da moral cristã, que pressupõe obrigações ditadas por uma autoridade superior às da terra e admite penas eternas.

Por qualquer lado que a abordemos, essa imensa corrente do pensamento moderno parece, sempre, dirigir-se para uma só meta, que é a que se propôs a rebelião da inteligência desde que começou: a eliminação do sagrado, a negação de Deus. É este o credo a que se vinculam os que pensam caminhar no sentido da História e trabalhar pelo progresso do espírito humano. Verdadeira fé às avessas, cujos pressupostos estão, freqüentemente, tão longe da razão como os que a graça estabelece nas consciências cristãs. Como duvidar disto, quando lemos esta confissão do materialista Le Dantec, num livro cujo título – Athéisme – vale por um programa? Dizia ele: “Eu sou ateu porque não creio em Deus. E não creio em Deus porque sou ateu!”


RELIGIÃO DA CIÊNCIA E MITO DO PROGRESSO

Essas doutrinas não se confinam aos abstratos limites do pensamento puro: penetram na consciência – ou até na inconsciência – do homem moderno. São transportadas por poderosas correntes que não fazem parte deste ou daquele sistema de pensamento, mas são admitidas ou pressupostas por todos. Já alguém pôde dizer 21 que se trata dos “denominadores comuns da mentalidade do século”. A religião da ciência e o mito do progresso são os nomes das mais fortes dessas correntes.
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(21) O dominicano Marie-Dominique Chenu.
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“A ciência é uma religião”: a palavra foi escrita em 1848 por Renan, no seu L’avenir de la science [“O futuro da ciência”], livro que o autor deixou por muito tempo inédito, mas que, a dois anos da morte, ou seja, em 1890, se decidiu a publicar. Essa nova fé, nascida durante o século XIX, não deixou de se desenvolver. Como é que a época que assistiu ao mais prodigioso surto das ciências puras e das técnicas de todos os tempos não havia de ficar maravilhada? A inteligência tem orgulho de si própria, o que é perfeitamente legítimo e bem acolhido pelo cristianismo, o qual reconhece nessa superioridade do homem a prova de uma inefável semelhança com Deus. Mas, quanto mais esses progressos se firmam, tanto mais se acentua a deformação que já vimos surgir: o cientificismo.

Embriagado com os seus triunfos, o homem faz da ciência um ídolo, e à volta dela organiza essa autêntica “religião” de que falava Renan – com os seus dogmas, os seus ministros, a sua moral. Da ciência espera-se um futuro de felicidade, e é precisamente isso que dá à sua “religião” tanto fascínio. O paraíso pertence à Terra, e está à vista. Só a ciência está à altura de revelar ao homem a verdade inteira. Só ela o ensina a viver. Só ela fundamenta a sabedoria. Por que buscar outras explicações? “Já não se acredita nos filósofos!”, exclama Nietzsche, zombando. Nem nos padres. Mas crê-se nos cientistas.

Hoje, à luz ofuscante dos acontecimentos, muitos espíritos renunciaram a semelhantes ilusões. Nós aprendemos que a ciência vale o que valerem os homens, e nunca terá tido tanta atualidade a famosa palavra de Rabelais: “Ciência sem consciência não é senão ruína da alma”. Mas, há ainda pouco mais de meio século, raros eram os que opunham resistência à corrente cientificista. Por exemplo, um Henri Poincaré, ao estabelecer a autonomia do conhecimento metafísico em relação ao conhecimento científico; ou um William James, cujo “pragmatismo” não via na ciência senão um instrumento cômodo; ou um Henri Bergson, ao mostrar a ciência como construção intelectual, incapaz de apreender o real, e ao reclamar logo a seguir, para conjurar o perigo cientificista, “um suplemento de alma”. Sem falar de um Tolstoi, que denunciava “as modernas superstições”, ou de um Brunetière, que, com certa precipitação, anunciava a “bancarrota da ciência”. Porém, a grande maioria dos espíritos que exercem influência nesta época são cientificistas convictos: cientistas como Marcellin Berthelot, Claude Bernard, Thomas Henry Huxley, ou escritores como Flaubert, Zola ou o dinamarquês Brandes. O cientificismo tem até os seus teólogos: o alemão Wundt, que pretendia realizar a síntese de todas as ciências, ou o seu compatriota Dilthey, que pretendia definir uma anti-metafísica.

A essa fé tão exaltante, as massas aderem cada vez mais. E é fácil, visto que não impõe qualquer limite. Tudo ajuda a difundi-la: a imprensa e a literatura andam repletas dela, e as Exposições Universais, que reúnem as maiores cidades do mundo ocidental, contribuem poderosamente para essa expansão. O Livro de Ouro da Torre Eiffel, recordação deixada no coração de Paris pela Exposição de 1889, está cheio de aforismos sobre o tema: “Até onde não subirá o homem, já que levantou a torre?” Os romances à Júlio Verne, à Robida, mais tarde à H.G. Wells, em que a imaginação se apóia no real científico, contribuem para fazer crer que tudo passou a ser possível ao homem. Até espíritos muito conservadores se entregam à tendência triunfante: um Melchior de Vogüé, um Paul Bourget.

Conflui para esta corrente uma outra, que a reforça: a do evolucionismo. Já assistimos ao nascimento da teoria da evolução na primeira parte do século XIX 22, desde que começou a afirmar-se a ciência da Pré-história e que Lamarck e Darwin, cada um a seu modo, lançaram a hipótese do “transformismo”. Numerosas descobertas parecem dar razão aos transformistas: por exemplo, no que diz respeito às origens do homem, a descoberta, em 1890, pelo holandês Dubos, na ilha de Java, dos restos fósseis do “pitecantropo”, proclamado intermediário entre o macaco e o homem; depois, as de outros elos da mesma cadeia – o homem de Neanderthal ou o de Piltdown 23. Não se deixa de continuar a discutir acerca do mecanismo da evolução, como no tempo em que Darwin contradizia Lamarck. Aparece mesmo uma nova hipótese, em 1901, formulada pelo botânico holandês Hugo de Vries – o “mutacionismo”. Mas o essencial da tese não se alterou, e até vai tomando caráter mais geral e absoluto.
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(22) Cfr. o vol. VIII, cap. VI, par. O combate de Jacó.

(23) O “homem de Piltdown”, que causou enorme reboliço nos ambientes darwinistas de começos do século XX, foi uma fraude muito bem forjada (N. do T.).
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E aí está o fato capital. O evolucionismo tende cada vez mais a deixar de ser uma simples hipótese científica para tornar-se uma explicação do mundo. Huxley e Spencer aplicam-no à estrutura moral e social da humanidade. Haeckel, o vulgarizador cujo livro Die Welträtsel [“Os enigmas do Universo”], publicado em 1899, alcança a tiragem de 400.000 exemplares, difunde abundantemente essa idéia. É então que a evolução passa a ser verdadeiramente considerada como “a lei dos Cosmos”; “não apenas uma teoria, um sistema, uma hipótese, mas uma condição geral a que têm de se curvar e que têm de satisfazer, para serem pensáveis e verdadeiras, todas as teorias, todas as hipóteses, todos os sistemas” – como diz, em obra só editada após a morte do autor 24, um jovem paleontologista que, em 1913, afirma trazer elementos novos para o conhecimento do homem fóssil: o jesuíta Teilhard de Chardin. Haeckel vai ao ponto de dizer que a inteligência de um povo se mede pela fé na evolução.
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(24) Teilhard de Chardin, Le milieu divin, Paris, 1955.
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A concepção evolucionista invade todas as ciências, tanto a anatomia como a genética, a geologia, a antropologia ou a sociologia. Também não lhe escapam a psicologia e a moral, e Marx aplica-a aos fatos econômicos. Ferdinand Brunetière, o mesmo que proclamara “a bancarrota da ciência”, fala da “evolução dos gêneros literários”...

Religião da ciência e teoria evolucionista juntam-se para fundar o mais evidente dos “denominadores comuns” do pensamento moderno: o mito do progresso. O espírito humano pretende abarcar toda a história da humanidade, desde as mais distantes origens até ao mais longínquo futuro. A idéia é simples, e impressiona as massas. Assim como se verifica que, depois da “descida das árvores” de que fala Édouard Le Roy, a humanidade nunca mais deixou de avançar para um tipo mais perfeito, para formas de civilização mais bem organizadas, assim a veremos, graças à ciência e aos meios cada vez mais poderosos de que vai dispondo, crescer ainda mais e afirmar-se como dominadora do mundo e da vida. A ascensão triunfante do homem é coisa certa. Tudo deve ser ordenado para o Progresso 25. O mito impõe-se ao espírito; são muito poucos os que escapam à sua sedução. E mesmo após os terríveis avisos das câmaras de gás e de Hiroshima, ainda fascina as consciências até aos nossos dias.
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(25) O termo entra na moda entre 1880 e 1914, quer nos cartazes dos cafés, quer na bandeira do Brasil e da Bolívia positivistas, quer ainda à cabeça do programa dos “Jovens Turcos” [grupo político nacionalista que forçou a abdicação do sultão Abdul Hamid II em 1909 e impôs o primeiro governo constitucional ao Império otomano (N. do T.)].
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Será ainda preciso dizer que estas linhas de força da mentalidade moderna tendem todas elas a recusar a fé e a negar Deus? Não é que, fundamentalmente, o cristianismo seja hostil à ciência e ao progresso; até veremos que, no nosso tempo, uma apologética – a do pe. Teilhard de Chardin – pretenderá fundamentar-se em ambos. Mas, no tempo em que Haeckel e Le Dantec brilham, ainda não soou essa hora. O evolucionismo e o cientificismo fazem muito mais do que expandir o axioma – “o homem descende do macaco” –, ou do que fornecer armas à crítica contra os milagres da Bíblia. O que se propõe é toda uma concepção do mundo e do homem, essencialmente antagônica à do cristianismo. A própria idéia de uma origem intencional do mundo e de uma finalidade é inadmissível: o Deus Criador é tão “absurdo” como a Providência. Por que razão o homem, demiurgo do mundo de amanhã, havia de sentir-se dependente de um ser superior, a quem devesse adoração e obediência? “O laboratório substitui o oratório”. Também a imagem cristã do homem, ferido pelo pecado mas resgatado, deixa de ter sentido se uma evolução fatal vai conduzir a humanidade para um estado de perfeição superior. A oposição é irredutível. Baudelaire bem o tinha percebido, quando escrevia que “o verdadeiro progresso não consiste no gás de iluminação ou no vapor, mas na diminuição dos vestígios do pecado original”.

Deste modo, o termo para o qual caminha necessariamente a humanidade, num futuro iluminado pela ciência e pela técnica, parece ser a própria ruína da fé. No mundo que nasce, a religião já não terá lugar: esta convicção difunde-se e impõe-se. É o que quer dizer J.M. Guyau – esse pensador medíocre, mas que teve o dom das fórmulas felizes – ao intitular o mais famoso dos seus livros de A irreligião do futuro [L’irréligion de l’avenir, 1887].


“HOMO HOMINI DEUS”

Há, finalmente, outro aspecto do pensamento moderno que temos de considerar se quisermos compreender o mecanismo dessa “morte de Deus” profetizada por Nietzsche: é que todas as negações que acabamos de enumerar vêm reforçadas por afirmações igualmente determinantes para o processo da irreligião. Não se trata apenas de formas variadas do ateísmo. Trata-se de um humanismo ateu, na célebre expressão do pe. Henri de Lubac 26. No vazio deixado pela fé em Deus, é tão grande para o homem a necessidade de crer, que uma outra fé se instala, fé num outro absoluto, que não é senão o próprio homem. Assim se opera essa substituição da religião que, segundo um axioma, é o único meio de assegurar a sua total destruição.
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(26) Henri de Lubac, Le drame de l’humanisme athée, Paris, 1945.
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O humanismo ateu não é mais inovador do que as doutrinas da irreligião. Vimos como nasceu e cresceu com a rebelião da inteligência. A Revolução Francesa formulara-lhe a doutrina, como também as suas formas aberrantes. Desde então, não parou de ganhar terreno 27. Todas as correntes de pensamento que rejeitam a fé procedem dela. O refrão de Béranger que se trauteava nos começos do século XIX exprime uma convicção progressivamente generalizada: “Humanidade, reina! Eis a tua era – que a voz dos ecos piedosos contesta em vão”. E Feuerbach forneceu-lhe a fórmula adequada: “Homo homini deus”.
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(27) Acerca das origens e do sentido do humanismo ateu, cfr. vol. VIII, cap. VI, pars. A caminho do humanismo ateu: 1. De Hegel a Karl Marx e A caminho do humanismo ateu: 2. Positivismo e religião da humanidade, segundo Auguste Comte.
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O homem, deus para o homem... Auguste Comte sonhara construir sobre esse alicerce um novo sistema religioso. Renan falou da “humanidade divina”. Berthelot nunca se cansou de proclamar que o fim último do esforço científico é a revelação e glorificação do homem. Passou a ser agora como que um pressuposto da anti-fé, um “é óbvio”... Por vezes, exprime-se de um modo tão primário que faz rir. Haeckel escrevia: “O segredo da teologia é a antropologia. Deus é o homem adorando-se a si mesmo. A Trindade é a família humana divinizada”. A mesma idéia encontra-se nos meios científicos e entre os fanáticos do progresso, que vêem, no futuro, o homem como senhor absoluto do mundo; mas não menos entre os idealistas, para quem o pensamento do homem inclui até mesmo esse mundo e o chama à existência. O homem medida de tudo, a única razão de ser de tudo – eis a imagem que cada vez mais as massas vão adotando.

Que tal imagem é falaciosa, é o que mostrarão o passar dos anos e os acontecimentos que, ao longo da marcha da humanidade, se irão tornar cada vez mais catastróficos. Paradoxalmente, a glorificação do homem caminhará a par da sua secreta degradação, e não tardará a vir a sua radical negação. Se o ser humano não passa de um agregado de moléculas regido no seu comportamento por forças cegas, não se percebe onde é que se funda a sua grandeza. Se as teorias de Charcot, depois as de Janet, são verdadeiras na explicação que oferecem dos estados místicos, como também as de Lombroso, quando dá aos maiores dons criativos essa mesma causa – a loucura, a neurose –, desabam os tipos superiores da humanidade, os únicos que poderiam justificar a sua glorificação: os gênios, os heróis, os santos. A pessoa humana, medida de tudo... Que será dela no sistema estabelecido pela técnica, onde, na dependência do automatismo da máquina, o trabalhador é cada vez mais reduzido ao standard, enquanto no resto da sua existência está submetido a pressões cada vez mais pesadas que se exercem todas elas contra a liberdade?

A época do humanismo ateu triunfante é também aquela em que surgem no horizonte do mundo os temíveis monstros totalitários, com os seus métodos infalíveis de reduzir os indivíduos à escravidão do coletivo e de aniquilar aquilo que faz o verdadeiro homem: a possibilidade e o direito de realizar um destino pessoal. Esta dupla evolução manifesta-se ao longo de todo o período que nos ocupa e há de acelerar-se de maneira apavorante a partir de 1918; não estará longe o dia em que, dos lábios de uma das melhores testemunhas do tempo, cairá esta máxima de amargura: “Diz-se que Deus morreu... Talvez o homem tenha morrido com Ele” 28.
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(28) André Malraux, carta pessoal ao Autor.
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Nesse ínterim – antes de a história confirmar com os seus castigos essa hybris, esse orgulho desmedido do qual já os gregos diziam que é sempre punido com catástrofes, e de a humanidade sofrer uma dúvida crescente acerca da sua deificação –, há de observar-se no seio do humanismo ateu uma evolução que lhe dará todo o seu significado luciferino. Mudará de natureza. As diversas filosofias que vimos alimentarem a irreligião desembocavam no ateísmo ao cabo de um raciocínio especulativo: proclamavam que “Deus não existe” uma vez que não é redutível à experiência, não é um fato material, ou então não passa de uma hipótese, já que ter idéia de um objeto não é o mesmo que demonstrar a sua realidade. O humanismo ateu do século XX irá muito mais longe. Não se contentará com dizer que “Deus não existe e toda a religião é absurda”: há de querer proceder de tal maneira que isso se cumpra. Já Proudhon falava de um antiteísmo.

Para que o homem seja deus, é preciso que não haja Deus: a conclusão é de uma lógica impecável. Deus sentido como obstáculo decisivo à realização do homem, entrave que importa quebrar para sermos o que somos, verdadeiramente livres – tal o termo a que chegam todos os positivismos, todos os materialismos, todos os evolucionismos, todos os cientificismos. A irreligião do século XX encontrará aí a sua originalidade, que é também o seu extremo. Dois grandes pensamentos determinaram essa evolução final. Completamente diversos um do outro, mas no fim das contas complementares: Karl Marx e Friedrich Nietzsche.


NIETZSCHE, PROFETA DAS TREVAS

Friedrich Nietzsche... É impossível falar sem afeição deste homem, apesar de o mundo ateu reconhecer nele um dos seus guias.

Amava a natureza, os animais, as flores, vibrava ao pensar na Itália e na Grécia, achava na música a satisfação de uma exigência vital, era poeta – discípulo, rival de Heine e de Hölderlin, um dos maiores que a Alemanha conheceu. Era bondoso, ele que pensava odiar a bondade e a misericórdia; era compassivo para com os humildes e os pobres, tão suave e doce no comportamento pessoal que, em Gênova, a vizinhança lhe chamava “santinho”. Mas, sobretudo – e por isso um cristão não o pode olhar com indiferença –, esse combate com o Anjo que todo o homem tem de travar, ele travou-o de corpo e alma, aceitando todos os riscos, sabendo que assim expunha muito mais do que a vida, defrontando o mistério numa angústia quase pascaliana, como testemunha genial das nossas piores tentações.

Contemplemo-lo 29 acima do lago de Sils-Maria, no Engadin, lago tão azul, tão frio, tão duro e puro como água-marinha, junto ao rochedo de Surlei, hoje consagrado à sua memória. Contemplemo-lo detendo-se, sabendo que está “a 6.500 pés acima do mar e muito mais acima de todas as coisas humanas”, invadido por uma onda de intuições quase indizíveis, e apesar de tudo experimentando até ao delírio a necessidade de criar a sua revelação. Hegel e Feuerbach, Comte e Renan, Spencer e Stuart Mill, todos eles doutrinadores da descrença, são intelectuais tristes, raciocinadores, professores. Nietzsche é outra coisa. Por isso rejeita-os a todos com desprezo – os racionalistas e os positivistas, os materialistas e os idealistas, sem esquecer os socialistas. Para ele, que vem a ser isso de demonstrações lógicas?... O que ele tem de trazer ao mundo é uma certeza existencial, uma certeza que nele se formou de repente, num instante de milagre e angústia, quando estava “abandonado ao lago, em pleno meio-dia, no tempo sem fim”. E sabe que o segredo de que é depositário é um segredo terrível. “Ah! Como eu gostaria mais de ser professor em Basiléia do que de ser Deus! – exclama –; mas não sou tão egoísta que renuncie a criar o mundo!” Formalmente, é um profeta, um inspirado. De resto, com aquela fronte gigantesca, o imenso bigode a esconder-lhe os lábios, e os olhos cavados – sobretudo os olhos, olhos de febre e de loucura, enterrados nas órbitas de arcadas farfalhudas –, é como o poderia ter pintado Michelangelo na Sixtina... Não é verdade que a si mesmo se chama “profeta de trevas até agora desconhecidas”? A irreligião moderna não virá a ter voz mais patética do que a sua para criá-la.
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(29) A vida de Nietzsche apresenta muito poucos acontecimentos importantes, nada que possa suscitar a curiosidade fácil. Quando muito os seus amores, breves e decepcionantes, com Lou Andreas Salome. Nasceu em Roecken (Prússia), em 1814, foi professor durante algum tempo, tornou-se amigo de Richard Wagner, com quem depois se indispôs. A partir de 1879, deixou o ensino e passou a levar vida errante de doente sem fortuna, escrevendo livros que os editores não disputavam, partilhando o tempo entre o Engadin (estância suíça) e diversos pontos da Itália. Finalmente, sofreu um ataque de loucura, numa rua de Turim, em 1889, e morreu em Weimar em 1900.
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Será possível falar propriamente de doutrina a seu respeito? Sofreu tantas influências, como as doutrinas de Heine e de Dostoievski, que aceitou, como as de Strauss e de Feuerbach, que julgou recusar, ou como a de Wagner, que por fim rejeitou!... Há nele qualquer coisa de Manu, de Buda e até de Cristo: muitos dos seus aforismos não passam de máximas cristãs viradas pelo avesso. Nada mais distante do espírito de sistema que o modo de expressão de que se serve – essas seqüências de máximas líricas, de sentenças cunhadas como medalhas, mas que se contradizem sem vergonha. É fácil encontrar nele, em apoio de todas as suas teses, citações até da apologética cristã mais clássica. Onde começa para ele o paradoxo, a ironia? Onde a necessidade de criar a verdade mais escandalosa? E, no entanto, desse turbilhão efervescente, desprende-se uma verdadeira filosofia, no sentido em que qualquer filosofia é sabedoria, ou seja, atitude de vida. É certo que não existe um sistema nietzscheano; mas existe um nietzscheanismo.

O fundamento que criou para si esse filho de um pastor da Turíngia é a descrença radical. “Para mim – exclama ele no Ecce Homo –, o ateísmo não é o resultado de alguma coisa, ainda menos de um acontecimento da minha vida em casa; é automático; é algo instintivo”. Pouco importa que, por vezes, se possa suspeitar que essa confissão é forçada, arbitrária, e se tenha a impressão, ao lê-lo, de que esse Deus a quem ele pretende tão calmamente despedir continua a ser olhado como adversário, terrivelmente real e próximo. É desse pressuposto que procedem todas as suas teses: não há Deus, o céu está vazio – assim fala Zaratustra.

A primeira conseqüência desse axioma é que não pode existir nenhuma religião. Para Nietzsche, a religião resulta de um desdobramento do homem. Nos mais fortes, dá-se uma crise de consciência da grandeza humana, a qual, não ousando afirmar-se, acaba por atribuir a um ser sobrenatural os próprios atributos do homem. Para os fracos e os medíocres, esses atributos da divindade são os que eles jamais poderão alcançar. A religião é, pois, em todos os casos, “uma alienação da personalidade”, uma negação da grandeza do homem. Impede-o de ser “fiel à terra”, isto é, de realizar todas as suas possibilidades. Deus não é senão o símbolo de que se reveste a covardia humana, a vontade de impotência, e, se tantos conservam esse mito, é porque é mais cômodo não ser do que querer ser, visto que a maioria recusa o esforço heróico que seria necessário para “ser o que se é”.

É sobretudo contra o cristianismo que Nietzsche volta a ponta mais aguda dessa crítica. De todas as religiões, a cristã é a que leva ao cúmulo a alienação do homem e o seu aviltamento: é “uma nódoa eterna sobre a humanidade”. Tomando como princípio que “todo o bem, toda a grandeza, toda a verdade, são dados pela graça”, o cristianismo tira ao homem todas as hipóteses de ser ele próprio. A fé atenta contra a “fé na vida”. E, de resto, não é verdade que a moral cristã se contrapõe a tudo o que faz o homem verdadeiro? “A supremacia dos simples de espírito, dos corações puros, dos sofredores, dos fracassados” – será essa a verdadeira hierarquia de valores? Em valores como “a fé, a pureza, a simplicidade, a paciência, o amor ao próximo, a resignação, a submissão a Deus”, Nietzsche vê “um repúdio do Eu” – o que é, aliás, perfeitamente exato, mas que ele interpreta como um atentado contra o homem. Todos os sentimentos que o cristianismo qualifica como virtudes são para ele absurdos e desprezíveis. “A compaixão é um desperdício, parasita nocivo à saúde moral”. O verdadeiro homem deve ter por máxima: “Sê duro!” E, afinal, na prática, não será a esta máxima que obedecem os grandes homens, os conquistadores, os gênios, que sujeitam os acontecimentos à sua medida: os césares, os napoleões?... A conclusão que se impõe brota, claríssima, desse imponente bigode de profeta: “Não é decente ser cristão”.

Na verdade, a mensagem última que Nietzsche julga ser chamado a transmitir ao mundo é esta: deu-se um acontecimento capital que escapou à observação dos homens: o tempo das religiões acabou; Deus morreu. A certeza da “morte de Deus”, que ele recebeu de Heine 30, é o fundo da sua mensagem.
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(30) O fato era mal conhecido até que Henri de Lubac o trouxe à luz. Meio século antes de Nietzsche, em 1834, na Revue des Deux Mondes, Heinrich Heine escrevera um artigo, De l’Allemagne depuis Luther, em que se encontravam frases como estas: “Não ouvis as campainhas? De joelhos! Estão levando os sacramentos a um Deus que morreu”.
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Não se trata de uma certeza de algum modo estática, de uma verificação do gênero das que fazem os historiadores. Nas célebres frases 31 em que anuncia esse acontecimento, o que se afirma é também uma opção. “Todos nós somos assassinos de Deus”, e continuamos a assassiná-lo dia a dia. Ao “decidir-nos contra o cristianismo, não por meio de raciocínios, mas por gosto”, nós perpetramos esse crime dos crimes. “A morte de Deus não é apenas, para o homem, um fato terrível: é querida por ele. Por quê? Para que há de ser senão para pôr fim à sua alienação, ao seu aviltamento?”
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(31) Cfr. neste volume e capítulo o primeiro parágrafo.
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Matar Deus é afirmar o Homem. O ateísmo nietzscheano não é simplesmente negativo: pretende propor a cada homem, em vez das covardes facilidades que, segundo ele, a religião nos dá, a aventura prodigiosa da “conquista penosa e cheia de riscos” do homem autêntico. “Desde que deixou de haver Deus, a solidão tornou-se intolerável. Importa que entre em ação o homem superior”.

Eis o som, a tantos títulos perturbador, que vem do humanismo ateu de Friedrich Nietzsche. Ele sabe, aliás, que a morte de Deus é um acontecimento de uma importância terrível, mesmo que a maior parte dos vivos ainda não suspeite disso. Entre aqueles que dela tomaram consciência, muitos ficaram como que mudos de espanto perante esse “assassinato”. “Como pudemos nós fazer semelhante coisa? Como é que pudemos esvaziar o mar?” E entregam-se a temores que, de resto, a história irá confirmar: “Não vamos agora cair, cair sempre? Não vamos perder-nos num infinito nada? Não sentimos já bater-nos no rosto o sopro do vácuo? Não está cada vez mais frio? Não é cada vez mais noite?” Profeta do mundo coberto de trevas, Nietzsche tem, mais que ninguém, a certeza de que a humanidade, assassina de Deus, entrou num imenso ciclo de catástrofes. O que ele propõe não é o paraíso na terra, à maneira de todos os socialistas: a sua gaia ciência está desprovida de otimismo. Não é fácil fazer do homem um Deus.

No termo dessa opção, o que é que, afinal, se encontra? Nada mais que o homem. Não, porém, o homem covarde e fraco que chafurda no lamaçal das religiões. É antes o homem que verdadeiramente pôs em prática a morte de Deus e dela tirou todas as conseqüências; aquele que, tal como o Siegfried de Wagner, vive, sem medo da morte, a vida humana na sua plenitude; aquele que toma consciência das potencialidades infinitas que o alevantam, e que as realiza: o super-homem. Visão messiânica, de um messianismo sem Deus, e em que o super-homem é ao mesmo tempo o salvador e o salvado.

Associada à “moral da vida”, que podemos extrair, por oposição, das invectivas lançadas contra a moral cristã, essa concepção vai acabar por justificar a violência, a crueldade, a pior desigualdade nas condições humanas, a própria escravidão, pois é legítimo que a raça do super-homem seja servida pela dos medíocres e dos covardes. “É possível – confessa Nietzsche – que tudo isto nos encha de pavor, mas também a natureza tem qualquer coisa de pavoroso”. É “para além do Bem e do Mal” que o homem se erguerá, como Deus admirável na sua perfeição, caminhando todo ele, não para a virtude, também não para o gozo, mas para a nobreza e a grandeza.

Tal é o humanismo ateu de Friedrich Nietzsche, aquele em que se encarna – devemos confessar que da mais alta maneira – a rebelião luciferina na nossa época. Aristocrática em alto grau e apenas acessível a bem poucas inteligências, essa mensagem ficará, em vida de Nietzsche, a bem dizer ignorada. O escritor sem leitores não convencia ninguém quando afirmava aos vizinhos de mesa: “Dentro de quarenta anos, serei célebre na Europa!” E, no entanto, sem que tenha suscitado o enorme movimento que será causado pelo pensamento de Karl Marx, o pensamento do autor da “Vontade de poder” [Der Wille zur Macht, 1901] e do “Anticristo” [Der Antichrist, 1888] virá a alimentar de razões de viver aqueles que, posteriormente, se julgarem vocacionados para super-homens. Uma forte corrente vai sair de Nietzsche, visível na literatura. Os grandes fauves [“selvagens”] que, entre as duas guerras mundiais, vão impor a sua tirania aos povos, serão seus leitores e discípulos: Mussolini, Hitler. Será necessária a experiência dos campos de concentração e das câmaras de gás para que a humanidade compreenda aonde levavam os aforismos líricos acerca da moral do super-homem e do esmagamento das raças inferiores.

Quanto a ele, quanto a esse profeta das trevas, havia já muito que estava morto, depois de, por dez anos, ter vivido na loucura uma existência pior que a própria morte. Foi o arauto mais veemente da humanidade rebelde levantada contra Deus, mas também, melhor que qualquer outro, quem a advertiu dos riscos que corria na sua tentativa. Um cristão não fala sem emoção dessa testemunha trágica da grande ausência – dessa testemunha despedaçada.


A ASCENSÃO DO MARXISMO

Nietzsche é um isolado romântico. Não se dirige às multidões, e, muitas vezes, a paixão tem nele mais lugar que o raciocínio. Pouco antes de terem explodido as suas tenebrosas profecias, um outro homem de gênio, no seu quarto de exilado em Londres, elaborava uma doutrina de música completamente diversa da que vinha daquela sabedoria paradoxal: uma doutrina lógica, difícil de penetrar e, no entanto, capaz de levantar as massas. Em breve essa doutrina ia ter um desenvolvimento impressionante. Era ela que ia emergir da efervescência das filosofias anticristãs, resumindo-as todas. E viria o dia em que, da “morte de Deus” anunciada por Nietzsche, a primeira testemunha e o agente mais eficaz seria incontestavelmente Karl Marx.

Recordemos 32 que – judeu alemão, partindo de Hegel, mas infiel ao idealismo do mestre para seguir o caminho aberto por Feuerbach em direção a um materialismo determinista radical, e passando depois da filosofia especulativa para o estudo dos problemas econômicos e sociais –, Karl Marx tinha chegado a elaborar uma gigantesca síntese em que pretendera captar e ordenar toda a realidade, ou traduzir, na expressão do seu discípulo Plekhanov, “uma concepção total do homem e da vida”. Ao mesmo tempo, aderira ao movimento revolucionário, ao qual, já em 1848, trouxera as teses audaciosas do Manifesto comunista. O primeiro volume da sua suma, Das Kapital, aparecera, em alemão, em 1867, sob um subtítulo enganador, que não revelava nem a amplitude do desígnio nem a riqueza dos temas abordados: “Desenvolvimento e produção do capital”. Esse primeiro tomo não passara despercebido: tinha-o lido a intelligentsia revolucionária da Alemanha e da França. Em Paris, Joseph Roy iniciara imediatamente a tradução, que concluiria passados dez anos, sob a vigilância direta do autor. Mas quando Marx morreu (1883), o seu pensamento seria tudo menos famoso. E ele próprio, por mais convicto que estivesse de ter aberto uma nova era na História, sentia-se inquieto e triste ao ver que a sua irradiação era fraca e que a Internacional Operária, de que fora animador, se decompunha e finalmente se dissolvia, no Congresso de Filadélfia, em 1876.
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(32) Cfr. vol VIII, cap. VI, par. A caminho do humanismo ateu: 1. De Hegel a Karl Marx.
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De ano para ano, porém, o marxismo ia progredir. Muitas razões explicam o seu êxito. A mais evidente é que todos os temas que, conforme vimos, constituem o denominador comum da mentalidade moderna, tinham sido apreendidos e ordenados por ele num sistema de pensamento de um rigor soberano. Cientificismo, mito do progresso, evolução necessária – tudo isso se encontrava assumido e extrapolado no marxismo. O otimismo luciferino do homem sem Deus achava nele o seu arremate. O materialismo era levado ao cúmulo. Para Marx, verdadeiramente, só existia a realidade material, só ela era cognoscível.

Mas, ao passo que havia tantos que dessas afirmações não tiravam senão determinismos chãos, ele pretendia responder à angústia existencial do homem, explicar-lhe por que estava na terra e para que lhe servia a vida. O seu método – a dialética, que fora buscar em Hegel, mas “pondo-lhe os pés no chão”, fazendo proceder tudo da matéria e não da “Idéia” (ou seja, do espírito), convertida assim em “dialética materialista” – oferecia uma explicação geral de toda a realidade, designadamente da realidade humana que se traduz na História, o que dava ao “materialismo dialético” uma vitalidade interna que nenhuma outra doutrina filosófica possuía em tal grau. Enfim, e sobretudo, o marxismo apresentava-se, não como simples ideologia, verdade especulativa, mas como “práxis”, doutrina para a ação, assim realizando “a unidade da prática e da teoria”.

Nenhum dos filósofos positivistas ou materialistas, nem mesmo Auguste Comte, se preocupava com os meios concretos de transpor para a realidade humana as conseqüências dos conceitos que definiam. Nietzsche, o profeta, também não. Já o marxismo revolucionário, esse declarava que não queria “comentar o mundo, mas transformá-lo”. Revelando às massas sofredoras e oprimidas o modo de se libertarem, essa doutrina, fundamentada em análises áridas e em números, punha, portanto, em jogo ressentimentos e esperanças, isto é, todos os instintos elementares dos homens, dos melhores aos piores. Não é de admirar, portanto, que ela tenha abalado e posto ao seu serviço as “forças telúricas” de que falaria Keyserling.

O sistema de pensamento lançado pelo primeiro tomo do Capital veio ainda a ser mais bem definido pela publicação póstuma de três outros volumes, fixados a partir de notas e rascunhos: o segundo e o terceiro, pelos cuidados de Engels, o mais querido amigo de Marx, a quem esse trabalho exigiu dez anos; o quarto, por Kautsky. O conjunto foi editado entre 1904 e 1910. Esse acervo monumental foi traduzido em curto espaço de tempo para todas as principais línguas do Ocidente. Na França, J. Molitor dedicou trinta anos a essa tarefa, consubstanciando-a no gigantesco conjunto de cinqüenta e cinco volumes, publicados pelo editor Costes.

A simples menção dessas publicações é suficiente para revelar o lugar que o marxismo ocupou durante os trinta anos que se seguiram à morte do fundador. Foi a bem dizer uma ascensão constante, aliás prevista por Marx, no plano da doutrina e no da ação. Ao passo que Nietzsche não deixou ninguém atrás de si para o prolongar, nasceu uma verdadeira escola marxista, que em pouco tempo se expandiu. Na Inglaterra, o norte-americano Henry George, no seu livro Progress and Poverty [1879], fez uma impressionante aplicação das teses marxistas ao lamentável estado social do país. Na França, Jules Guesde, autodidata apaixonado, tirou delas argumentos para a renovação do velho coletivismo de que fora arauto, e Georges Sorel, autor das Réflexions sur la violence [1908], filho de burguês e politécnico em ruptura com a sociedade capitalista, deu ao marxismo uma adesão tempestuosa e excêntrica 33. Foi sobretudo entre os intelectuais russos, expulsos do seu país pelas medidas policiais dos czares, que Marx encontrou os seus herdeiros mais eficazes. Logo em 1883, Plekhanov e Akselrod fundavam um grupo marxista que depressa recrutou bastantes aderentes na intelligentsia exilada. Começou a desenvolver-se uma imprensa marxista, mais ou menos clandestina: em Londres, o Iskra [“A Centelha”]; em Viena, o Pravda [“A Verdade”], ambos fundados por Leon Trotsky.
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(33) Sorel teve influência em Lênin, em Mussolini e, através de Valois, na Action Française (N. do T.).
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Mas, acima de todos – ora refugiando-se em Genebra ou em Paris, ora aproveitando um abrandamento das severidades czaristas para reentrar na Rússia e aí atuar secretamente; escritor fecundo, jornalista incisivo que fez do Pravda o órgão mais importante do movimento –, surgiu um homem como continuador eminente de Marx. Foi o São Paulo do novo messias, o homem que adaptou com autêntico gênio o pensamento do mestre às condições práticas da obra revolucionária: Vladimir Ulianov, dito Lênin, de pensamento tão penetrante e ação tão eficaz que, daí em diante, a doutrina comunista se chamaria marxismo-leninismo.

Conseqüência imediata desses progressos do marxismo foi que os diversos sistemas socialistas que tinham sido elaborados na primeira metade do século XIX desapareceram. Ferdinand Lassalle, único rival alemão de Marx, tinha morrido em 1864, e os seus partidários aderiram ao “socialismo científico” nos congressos de Gotha e de Erfurt (1876 e 1880). Os outros socialismos foram ultrapassados, quase aniquilados: os socialismos franceses à Saint-Simon, à Fourier, à Proudhon; os socialismos ingleses trade-unionistas [“sindicalistas”] ou comunitários; o socialismo do holandês Niewenhuis, evangélico e generoso; o socialismo italiano, cheio de reminiscências do insurrecionismo de Mazzini. É sabido com que severidade Marx tratara esses sistemas que procuravam conceber o mundo de amanhã em nome de princípios generosos, mas abstratos. “Miséria da Filosofia” [Das Elend der Philosophie, 1847], replicara ele, em tom de mofa, à “Filosofia da Miséria” [Philosophie de la misère, 1846] de Proudhon.

Em face do marxismo, da sua lógica rigorosa, dos seus apelos à luta de classes e à ditadura do proletariado, que podiam contar as ideologias humanitárias dos velhos socialismos? É certo que ainda houve quem tentasse estabelecer uma síntese entre as teses marxistas e os princípios individualistas herdados da Revolução Francesa. Na Alemanha, Bernstein; na França, Jean Jaurès; na Bélgica, Vandervelde. Mas a atitude desses teóricos nunca saiu da ambigüidade. Salvo na Inglaterra, onde o “fabianismo”, caro a Wells e a Bernard Shaw, preconizava um socialismo prático, construtivo e “cheio de bom senso municipal”, por toda a parte, nas vésperas de 1914, o socialismo se mostrava impregnado de marxismo.

No interior desse socialismo marxista ou marxizante, observa-se uma evolução que terá efeitos consideráveis. Manifestam-se duas tendências: a que rejeita a violência e a que opõe ao reformismo a vontade revolucionária e admite todos os meios de ação. Os partidários da primeira querem realizar o socialismo por meios legais, parlamentares; os da segunda, embora separando-se radicalmente dos anarquistas à Bakunin e à Kropotkin, cujos atentados a nada levam, não vêem outra hipótese senão a subversão da sociedade capitalista liberal. Politicamente, essa oposição entre as duas tendências aparece por toda a parte, exceto na Inglaterra, onde a Labour Party reúne praticamente todos os socialistas, e nos países escandinavos. Em 1903, no Congresso de Londres, o socialismo russo cinde-se em dois: por pequeníssima diferença, os partidários da Revolução a qualquer preço, dirigidos por Lênin (que começaram a ser chamados “os majoritários”, bolcheviks em russo) vencem os mencheviks, os minoritários reformistas. Catorze anos depois, os primeiros estarão em franca vantagem sobre os adversários, e hão de ser os grupos mais duros do marxismo integral que, instalando o comunismo na Rússia, provarão o acerto da sua posição – por algum tempo...

Tal é, sem dúvida, o fato capital da história das idéias políticas da nossa época: apresentando-se como a única solução para todos os problemas humanos, o humanismo ateu, sob a forma mais sistemática e mais dura, prepara-se para fornecer a demonstração de estar à altura de fundar uma sociedade humana. Para o cristianismo, para a Igreja, essa ascensão do marxismo é grave. A partir desse momento, os cristãos vão estar em face dos adversários mais decididos e mais armados que algum dia puderam conhecer. Eram muitas as falhas na irreligião do socialista Proudhon, no anticristianismo do positivista Auguste Comte; os materialistas de tipo banal eram incapazes de construir um sistema baseado nas suas asserções simplistas, e os ministros “laicos” da França ou da Itália não tinham a bem dizer qualquer doutrina. A partir de agora, é uma verdadeira doutrina, um sistema de pensamento total e positivo, que faz frente à crença e que está decidido a arruiná-la.

Porque a oposição do marxismo à religião 34 não é acidental: prende-se com a própria essência do pensamento filosófico e social de Marx. O seu ateísmo é o reverso necessário da concepção que tem do homem: é nele que se fundamenta a sua definição de liberdade. Ser livre é não receber de ninguém aquilo que se é, não acreditar num Deus criador, não aceitar ser escravo. A corrente que levava o humanismo ateu, em qualquer das suas formas, a rejeitar Deus, sentido como obstáculo ao desenvolvimento do homem, vem encontrar aqui a sua culminância. É conhecida a célebre expressão de Marx: “Religião, ópio do povo”. E Lênin exclamará: “Nem sequer ópio, mas uma espécie de má vodca espiritual em que os escravos do capitalismo afogam o seu ser de homem”. Para realizar o homem, para lhe permitir a construção do mundo à sua dimensão, importa que a religião desapareça, que a própria idéia de Deus se torne incompreensível. É a sociedade inteira que, na sua marcha avante, há de realizar essa tarefa. Nunca o ateísmo se havia mostrado tão radical e tão completo.
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(34) Cfr. vol VIII, cap. VI, par. A caminho do humanismo ateu: 1. De Hegel a Karl Marx.
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Devemos acrescentar que, a essa ação do marxismo sobre os espíritos, para os levar a aderir ao materialismo e ao ateísmo, outra se juntou, de ordem prática. Na perspectiva marxista final, o homem não precisa fazer-se “assassino de Deus”, como queria Nietzsche. Uma vez que a religião é uma superestrutura da sociedade capitalista, desaparecerá com esta, de acordo com o movimento dialético da História. Mas, nesse meio tempo, como ainda se está na fase transitória em que a sociedade capitalista se mostra poderosa, a religião, elemento importante da ordem estabelecida, não pode deixar de ser considerada como aliada do regime capitalista, ou seja, como inimigo a abater. É por isso que, assim como o materialismo dialético marxista cobre e absorve todas as antigas formulações do ateísmo, assim também a política marxista lançará mão de todos os meios preparados pelos adversários da fé, ainda que tenham um modo de pensar fundamentalmente burguês. Deste modo veremos os marxistas fazerem seus os argumentos do laicismo mais tradicional, por exemplo em matéria de crítica bíblica, de sociologia ou de moral. E também se verá como imitam os procedimentos “laicos” para desferir os seus ataques contra a Igreja, o clero, as instituições eclesiásticas, só se distinguindo por uma violência muito maior e por um método mais perfeito. “Soma das irreligiões”, porventura estará o humanismo ateu marxista destinado a polarizar, quer na ação, quer na doutrina, todas as forças que, desde há muito tempo, lançam a grande ofensiva contra Deus?


A AMEAÇA TOTALITÁRIA

A época que se abre com o fim da Primeira Guerra Mundial marca também uma nova fase dessa grande ofensiva. Não que tenham surgido então outras doutrinas para ensinar aos homens métodos inéditos de “matar Deus”. As que aparecem não passam de variantes ou sucedâneos dos diversos positivismos e materialismos que vimos em ação desde há muito tempo. Foi nos acontecimentos e nas instituições que a ameaça se tornou mais imediata e premente. Já não se trata de simples teoria, mas de aplicação prática. Povos inteiros vão ser forçados a realizar na sua vida a “morte de Deus”.

Nos dias 6 e 7 de novembro de 1917 35, um punhado de marxistas dirigidos por dois chefes audaciosos, Lênin e Trotsky, lançam por terra, com um piparote, o frágil edifício que os socialistas reformistas agrupados à volta de Kerenski tentavam manter de pé sobre as ruínas do Império czarista. Através de inumeráveis dificuldades, vencendo o caos à custa de um terror impiedoso, repelindo os assaltos dos adversários externos e internos, os bolcheviques conseguem impor-se à Rússia inteira. Quatro anos depois, em 1921, já era claro, a quem tivesse olhos para ver, que essa pequena minoria de revolucionários, cuja queda a imprensa burguesa profetizava todos os dias, tinha estabelecido tão solidamente o seu poder, apoiando-se nos soviets de soldados e operários, que não seria abatida, apesar das crises freqüentemente violentas. Assim se abria um novo destino para a “Santa Rússia”. O acontecimento é de uma importância capital, não apenas no plano político, mas na história das idéias e na da religião.
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(35) Por causa da defasagem do calendário russo, o acontecimento é conhecido como “Revolução de Outubro”.
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Existe agora um Estado fundado sobre o marxismo mais absoluto e decidido. Lênin (1870-1924), esse pequeno-burguês com rosto de calmuco a quem, mais do que a ninguém, se deveu o êxito da Revolução de Outubro – repensando a doutrina do mestre, traduzindo-a em termos ainda mais adaptáveis ao seu tempo, oferecendo-lhe meios de expressão mais simples, mais acessíveis às massas, mais polêmicos –, tornou essa doutrina também mais eficaz, ou seja, também mais temível para a fé. Tal como Marx, Lênin e todos os que o rodeiam são violentamente hostis à religião, da qual falam com um desprezo ainda maior que o de Karl Marx. Pois não estava a Igreja Russa tradicional associada ao regime autocrático e plutocrático que o bolchevismo acabava de destruir? Portanto, o jovem Estado marxista há de encarniçar-se contra ela, usando de todos os meios para abatê-la, incluindo o da perseguição violenta, e prosseguirá num esforço enérgico para arrancar a fé de todas as consciências, a fim de estabelecer a sociedade “sem Deus”.

Este é o fato histórico de importância capital: pela primeira vez desde que existem sociedades humanas, existia um regime – e parecia destinado a durar – que rejeitava toda e qualquer referência a Deus ou às forças sobrenaturais e queria promover uma civilização dessacralizada. Jamais fora feita semelhante tentativa, luciferina à letra – pois substituía Deus pelo homem. Nem nos dias mais negros da Revolução Francesa os piores condutores da campanha anti-religiosa se tinham valido de tais princípios. Ou, pelo menos, os ateus completos, aliás raros, não tinham disposto do aparelho do Estado para impor as suas idéias. Agora, aqueles que se propuserem o aniquilamento final da religião já poderão aproveitar o precedente. Em um número cada vez maior de países o Partido Comunista que se vai criando – na França, desde 1920 36 – encarna a vontade de construir um mundo sem Deus. E a Terceira Internacional, fundada por Lênin em 1919 pela federação de todos os movimentos e partidos comunistas sob a direção do Komintern [abreviatura de Kommunistiska internationalen, “Internacional Comunista”], desempenha o papel de uma “Contra-Igreja” que, como a Igreja de Cristo, se propõe orientar toda a humanidade.
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(36) Em Portugal, em 1921; no Brasil, em 1922 (N. do T.).
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Lênin e os bolchevistas fazem ainda mais que provar ao mundo, mediante o exemplo terrivelmente peremptório do Estado soviético, que é possível um regime sem Deus: afinam um instrumento que vai constranger os homens à irreligião. O chefe da nova Rússia bem o percebeu: um dos seus principais livros, O Estado e a Revolução [1917], explica-o sem subterfúgios: “O Estado, organismo de coação, deve ser colocado por inteiro ao serviço dos princípios revolucionários”. Todos os meios de que dispõe hão de convergir para o estabelecimento da sociedade marxista, para realizar o homem marxista. Assim nasce, com a vitória do bolchevismo russo, o primeiro dos regimes totalitários modernos 37. Em tal regime, tudo depende do Estado, tudo procede dele, tudo para ele tende. É o Estado que anima e domina a vida econômica, bem como a vida intelectual. Não há liberdade individual, ou, melhor, só existe no marco fixado pelo Estado. Também deixa de haver justiça. E moral. A lei suprema, a lei única, é aquela que o interesse do regime determina. A bem dizer, nem sequer existe o homem, uma vez que desapareceu o homem livre e unicamente responsável perante a sua consciência. Só existe o homem coletivo, expresso de modo abstrato pelo Estado.
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(37) Modernos, porque já tinham existido totalitarismos em tempos passados, como por exemplo no Egito faraônico ou entre os incas; mas a intenção final destes regimes era bem diferente da do Estado soviético.
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Aqui reside, não o podemos pôr em dúvida, a intuição genial de Lênin ao pressentir que a evolução do mundo sob a ação do progresso técnico parecia tender irresistivelmente para esse primado do coletivo sobre o individual. No momento em que, no sistema de produção e de comércio, como também na existência diária dos homens desenraizados das grandes cidades, tudo caminha para a uniformização, o totalitarismo parece adequado a essa evolução do mundo. Uma certa concepção do homem e da sociedade vai, pois, ver-se ultrapassada, e, com ela, os regimes democráticos mais ou menos liberais que pretendem fundar-se sobre ela. Bem puderam alguns escritores ou filósofos lançar gritos de alarme 38... Para um número cada vez maior de homens, o totalitarismo surgiu como uma fatalidade ou uma necessidade.
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(38) Pensamos no Scènes de la vie future [1930], de Georges Duhamel, no Brave New World [1932], de Aldous Huxley, e muitas outras obras que, entre as duas guerras mundiais, desenvolveram estes temas.
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E tanto é assim, que este tipo de regime não se limita à Rússia soviética onde nasceu. Nos vinte anos que separam as duas Guerras Mundiais, aparece em diversos pontos do globo. Nem sempre está ao serviço da doutrina marxista: acontece até que, como na Itália ou na Alemanha, parece ser o único obstáculo capaz de se opor ao bolchevismo. Mas os princípios e os métodos de governo são exatamente os mesmos. Não há grande diferença entre a GPU russa e a Gestapo germânica, e é idêntica a pressão que se exerce, em todos os Estados totalitários, no sentido de orientar e modelar os espíritos ou de dominar toda a existência do homem. Para Mussolini e Hitler, tal como para os bolchevistas, é o Estado que deve fixar o que se tem de pensar, crer, dizer ou fazer. “A educação totalitária e integral de todos os italianos cabe exclusivamente ao Estado como uma das suas funções primordiais, ou, melhor ainda, como a função primordial do Estado”, diz o Duce, enquanto um universitário alemão, exprimindo perfeitamente o pensamento do regime nacional-socialista, exclama: “Agora, que se abriu a era da autoridade política, a neutralidade do Estado desaparece: o direito, a arte, a religião, a economia, a ciência, a cultura, a educação, a escola – tudo deve ser regido pelo Estado” 39.
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(39) Voltaremos a falar das ditaduras totalitárias no cap. VIII.
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Tal é a nova ameaça com que o cristianismo se defronta. A ascensão dos totalitarismos põe-no diretamente em causa. Existem, sem dúvida, grandes diferenças de intenções e de acentuação entre os diversos regimes. Enquanto o bolchevismo russo, na sua qualidade de marxista, pressupõe formalmente como base e como fim a negação de Deus e de toda a religião, é evidente que isso não acontece com o fascismo, que, na medida do possível, procura respeitar as convicções cristãs do povo italiano. Mas a “estatolatria pagã” de que falará Pio XI acerca do regime mussoliniano, as suas afirmações incessantemente repetidas de que “o indivíduo nada é, a coletividade é tudo”, e, ao mesmo tempo, a constante exaltação dos valores da força e da violência pela propaganda oficial, não são essencialmente anticristãs? E não se deve fazer idêntico juízo acerca do nacionalismo intransigente que a política fascista proclama? O mesmo acontece, mas com uma intensidade ainda maior, com o regime que Hitler e os seus camisas-marrons instauram na Alemanha e que, neste caso, envolve e unifica os seus erros numa autêntica heresia, a do racismo, à qual a Igreja opõe o seu grande princípio da igualdade fraterna de todos os homens, quaisquer que sejam a sua raça, a sua classe, o seu nível de civilização.

É contra esses novos adversários que o cristianismo tem, pois, necessidade de lutar 40. São infinitamente mais temíveis que os da época anterior. Se os totalitarismos não desdenham a utilização dos métodos do laicismo democrático, dispõem, por outro lado, de meios de ação bem mais poderosos do que as democracias maçônicas de antes da Primeira Guerra Mundial, para atingirem o objetivo que Jules Ferry definira: “organizar a sociedade sem Deus”. E talvez não menos que a pressão que conseguem exercer para impor os seus princípios àqueles que dominam, o que há neles de perigosíssimo são os elementos positivos contidos nos ideais que os orientam: o sentido da grandeza, o entusiasmo criativo, a solidariedade no interior do partido... Dir-se-á que assim desafiam as virtudes que os cristãos deveriam pôr em prática. São eles que parecem estabelecer da forma mais completa o culto do homem que vimos ser a nota dominante do pensamento moderno. Ainda mais, talvez, que pelos seus atos de barbárie e pelas suas atrocidades, os totalitarismos são uma temível ameaça à fé pelo veneno que espalham, ao qual bem poucos povos na terra ficarão imunes.
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(40) Deve-se sublinhar que a oposição da Igreja ao estatismo não é ocasional. Não foi para enfrentar os totalitarismos que ela adotou essa atitude. A 39ª proposição do Syllabus, tal como foi escrita em 1864, referia já, entre as doutrinas condenadas pela Igreja, a seguinte: “O Estado é a origem e fonte de todos os direitos, e goza de uma autoridade sem limites”.
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Essa ascensão dos totalitarismos traz consigo uma conseqüência inesperada: ao sentirem-se ameaçadas, as democracias do velho tipo liberal aproximam-se da Igreja: prova-o o número de Concordatas assinadas logo depois da Primeira Guerra Mundial. O anticlericalismo rasteiro perde terreno. A República francesa reata as relações com Roma. A Igreja afirma-se cada vez mais como defensora da verdadeira liberdade, e com isso reforça-se enormemente a sua autoridade. Até a franco-maçonaria, cujo tradicional anticlericalismo se manifesta ainda por ocasião da assinatura da paz de 1918 e da fundação da Sociedade das Nações – destruição da católica Austro-Hungria, veto à participação do Vaticano na assembléia de Genebra –, e que continua a agir de acordo com os seus velhos princípios, não deixa de sofrer uma evolução. Alguns dos seus membros reconhecem que o perigo totalitário existe para ela tanto como existe para a Igreja, e preconizam o abandono do anticlericalismo 41. Mas esse abrandamento dos antigos ódios bastará para tornar menos graves os perigos que correm a fé e a Igreja?
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(41) Em janeiro de 1937, Albert Lantoine, membro do Supremo Conselho da Maçonaria escocesa, dirige nesse sentido uma Carta aberta ao Soberano Pontífice, à qual responde o pe. Berteloot em artigos publicados na Revue de Paris e, mais tarde, num grosso volume.
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Em meados do século XX, o humanismo ateu encontra a sua expressão mais terrível nesses sistemas que, para concluírem a aniquilação de Deus, reduzem o homem à servidão.


UMA IMENSA DERIVA

Não se disse ainda tudo quando se falou de todas essas forças coligadas contra a religião, de todas essas doutrinas que lhe minam os alicerces. Nem sequer quando se tomou consciência das condições históricas, econômicas e sociais que favoreciam a ação de umas e outras. Para compreender o sentido e o alcance desse gigantesco ataque, seria preciso avaliar os resultados de todas essas influências no comportamento dos homens, tentar ver se a finalidade foi atingida e se o mundo deixou mesmo de ser cristão.

A resposta é difícil. Neste domínio, devemos desconfiar das generalizações precipitadas. Tem-se classificado em demasia como “países de missão” países onde a Igreja, apesar de arranhada e diminuída, não deixou de manter sólidos fundamentos e tem imensas hipóteses de renovação. Falar de um “mundo sem alma” para caracterizar a sociedade do Ocidente, sem precisar o significado e os limites da expressão, é assimilar os camponeses da Irlanda ou da Polônia, ainda quase totalmente fiéis, ao proletariado industrial das grandes cidades ocidentais, quase totalmente descristianizado. E, depois, se é verdade que, em matéria religiosa, a quantidade pesa menos do que a qualidade, a presença de santas figuras, tantas, tão exemplares, numa época que sumariamente dizemos atéia, basta para desmentir certas asserções excessivamente pessimistas.

No entanto, não é menos verdade que, olhado como um todo, o período de que nos ocupamos marca uma queda muito grave do nível cristão. Ou, por outras palavras, é como que uma imensa deriva que parece afastar os homens da religião. O fenômeno não é de ontem. Já o detectamos por muitos e muitos indícios, talvez desde o século XVIII, pelo menos desde o começo do século XIX, com momentos de enfraquecimento, de retomada ou, em sentido contrário, de aceleração. Ao longo deste período que estudamos, esse fenômeno ganha forças, substancialmente vinculado ao duplo processo técnico e sociológico que vimos acima: o triunfo da máquina e da indústria, o desenvolvimento monstruoso das grandes cidades. No final, encontrar-se-á porventura, na maior parte das terras outrora cristãs, nada mais que uma sociedade em que Deus já não seja sentido como exigência vital, mas sim como um mito, uma ilusão, ou até um adversário, e a religião não passe de uma escravidão da qual seja preciso desembaraçar-se?

O fenômeno da descristianização pode ser observado nos fatos. Dois destes são flagrantes: o abandono da prática religiosa e o desmantelamento das estruturas cristãs da sociedade. Uma religião não é uma filosofia, mas um comprometimento de todo o ser, uma atitude vital e, ao mesmo tempo, a pertença a uma coletividade que impõe ao indivíduo a sujeição a certas regras de existência neste mundo em vista de uma realização sobrenatural. Ora, todos estes elementos fundamentais da vida cristã se encontram cada vez mais ameaçados.

A queda da prática religiosa é impressionante. A visão de igrejas quase absolutamente vazias, onde só vêm ajoelhar-se, para a missa dominical, algumas velhinhas, algumas crianças, é bastante para a tornar visível e constitui um espetáculo cada vez mais freqüente. No entanto, é possível que seja falacioso, porque, para obter uma opinião correta, basta opor-lhe o espetáculo das multidões gigantescas que se amontoam nas esplanadas de Lourdes ou que enchem os prodigiosos recintos dos Congressos Eucarísticos. Há cinqüenta anos, ainda tínhamos de nos contentar com simples impressões deste gênero. O desenvolvimento de uma ciência, que não é inteiramente nova, mas que só recentemente se expandiu e sistematizou, a sociologia religiosa, veio permitir uma medição mais rigorosa do abandono da prática. Mas, a bem dizer, em 1939 as minuciosas pesquisas que ela exige não passavam de projetos ou eram ainda experiências individuais, sem continuidade 42. Hoje mesmo, estão longe de ser feitas em todos os países da cristandade.
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(42) O verdadeiro pai da sociologia religiosa, Gabriel Le Bras, só começou a publicar os resultados dos seus trabalhos por volta da Segunda Guerra Mundial. Teve alguns predecessores, mais ou menos inspirados em Le Play, tais como Tristão de Athayde em 1934 ou Roger Bastide em 1935.
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Em todo o caso, mesmo sem ser possível recorrer a uma documentação científica, podemos concluir que, durante os três quartos de século que aqui estudamos, o afastamento da prática religiosa é um fato. Dá-se da mesma forma por toda a parte e em todos os momentos 43. Começa-se por deixar de cumprir o preceito pascal; depois, deixa-se de ir à missa aos domingos, e só se vai nos dias das festas principais, por força de um uso imemorial. Assim se dá um grande passo para a impiedade. Trabalhar aos domingos e não mandar os filhos ao catecismo são duas etapas que não tardam a vir. Sobrevivem ainda, por muito, muito tempo, as mais tradicionais das observâncias religiosas: o casamento pela Igreja, o enterro religioso, o batismo dos filhos. Mas serão ainda algo mais do que um simples cerimonial? O fato é que, quando também essas práticas são deixadas de lado, nada mais subsiste de cristão na existência, ao menos externamente. E quantos conservarão uma vida religiosa, ao menos uma apetência do espiritual, quando toda a prática foi abandonada?
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(43) A análise que se segue deve muito aos trabalhos notáveis de Boulard.
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É na classe operária que se observa o fenômeno com mais evidência. Começou por causar impressão por meados do século XIX, provocando, aliás, a generosa reação do catolicismo social 44. Esmagado por condições desumanas de trabalho, como poderia o proletário das gigantescas fábricas conservar qualquer vida religiosa? Como se manteria fiel a uma Igreja que podia parecer-lhe indiferente à sua sorte, quando não aliada aos seus exploradores? Mas, mesmo quando o progresso técnico e a ação da fé passam a melhorar a existência material do operário de fábrica, continua a sua deriva longe de Deus: a classe operária não se recristianiza com isso; está até muito mais descristianizada em 1924 do que estava em 1874. Deve-se atribuir a culpa a essa espécie de redução ao autômato que a técnica moderna impõe? Ou à crescente influência do cientificismo e do mito do progresso? Ou, mais ainda, à ruptura das estruturas sociais naturais, pelo monstruoso amontoamento de massas humanas nas grandes cidades? Tudo a um tempo.
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(44) Cfr. vol. VIII, cap. VI, par. Catolicismo e consciência social. E, adiante, o cap. IV deste volume.
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Seja como for, quando se tornar possível calcular matematicamente a paganização da classe operária, os resultados das estatísticas serão apavorantes. Em 1943, a célebre pesquisa dos pes. Godin e Daniel 45 mostrará aos estupefatos católicos da França que a percentagem de prática religiosa na classe operária não ultrapassa 2%, e que em numerosos casos concretos parece ser ainda mais fraca. É melhor na Alemanha, na Itália; mas também aí a queda é sensível. Nas vésperas da Guerra Civil espanhola, que há de revelar, no povo de Santa Teresa, de São João da Cruz, de Santo Inácio, abismos de ódio contra o cristianismo, todos os viajantes observam que a massa operária não freqüenta a igreja. Para milhões de seres humanos, para o proletariado industrial, Deus parece riscado da vida. Tal o “grande escândalo” de que fala Pio XI numa célebre entrevista: a Igreja perdeu a classe operária 46.
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(45) A França, país de missão, obra editada em 1943 e reeditada em 1962, em Paris.

(46) Palavras de Pio XI ao pe. Cardijn; cfr. neste vol. o cap. VIII, par. Pio XI e a JOC.
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Como as fábricas modernas estão todas situadas em cidades, e sobretudo nas grandes cidades, a descristianização parece ser principalmente um fenômeno urbano. Em três quartos de século, todas as capitais duplicam em extensão e as “cidades tentaculares” absorvem milhões de seres humanos. Ao mesmo tempo, a queda da vida religiosa é evidente. No momento em que se chega a ter uma idéia precisa do fenômeno, toma-se conhecimento de que, em todo o Ocidente chamado cristão, a prática nas grandes aglomerações é muito inferior à média nacional. Em Paris, em 1925, não vai além de 20%. Na Alemanha católica – em Colônia ou em Düsseldorf –, anda por volta de 25%.

A periferia das grandes metrópoles está em situação ainda mais grave. É lá que se acumulam as fábricas e que escasseiam as igrejas. Como estranhar que não haja lá mais de 3% da população tocada pela mensagem de Cristo? Quando, em 1927, o pe. Pierre Lhande Heguy (1877-1957) promove a sua perturbadora pesquisa Le Christ dans le banlieu [“Cristo nos subúrbios”, 1927], é para a imensa maioria dos católicos uma surpresa ter notícia de que, à volta de Paris, há um cinturão vermelho onde nem sequer se conhece o nome de Jesus Cristo. Mas a situação assim denunciada será nova? Alguns padres e jornalistas cristãos lançavam gritos de alarme já por volta de 1890. “Os nossos subúrbios, habitados em princípio por gente batizada – escreve o pe. Soulange-Bodin, pároco de Plaisance –, tornaram-se um verdadeiro país de missão”; ao que François Veuillot acrescenta: “Temos de preocupar-nos por fim com esta China que rodeia Paris e que conta perto de dois milhões de habitantes”. Em 1902, o pe. Forbes, jesuíta, avalia em pelo menos um quarto da população parisiense a “cidade pagã” que vive totalmente à margem da Igreja e ignora praticamente tudo sobre religião 47.
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(47) É o que dá grande interesse ao prefácio de Émile Poulat para o Journal d’un prêtre d’après-demain, do pe. Calippe, Casterman, Tournai e Paris, 1961, em que mostra por numerosas citações que a descristianização é um fenômeno de que certos membros da Igreja tiveram consciência muito nítida mais de setenta anos antes, e também que já então se procuravam os meios para lhe dar remédio. Põe ainda em relevo que a expressão “país de missão”, aplicada a uma zona do Ocidente, não data de ontem, pois era corrente em torno de 1880; cfr. cap. XII.
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Se as cidades são as mais marcadas pela descristianização, os campos não são poupados. Por meados do século XIX, depois da incontestável renovação da prática cristã que sucedera à crise revolucionária, as massas rurais constituíam sólidos bastiões da fé e da vida católica. Mas, à medida que os meios de comunicação aproximam as cidades e os campos, as condições de vida do mundo rural copiam as da cidade; e à medida, também, que se manifesta a ação da escola laica e a do serviço militar obrigatório, que atira para as cidades os moços camponeses, a baixa é cada vez mais sensível. Os camponeses dos romances de Zola são já, praticamente, figuras desligadas da religião; os de Giono serão pura e simplesmente pagãos. Há, porém, enormes diferenças, não só entre os países, mas, dentro de cada país, de região para região. Por motivos históricos não menos que psicológicos, a Bretanha permanece fiel, ao passo que o Alto-Marne ou a Corrèze têm as igrejas vazias. E não é somente na França: na Espanha, em Portugal, até na Itália, e ainda mais nas nações católicas da América do Sul, surgem autênticas “zonas de missão”.

Será que a descristianização se refere apenas aos operários ou aos camponeses? A burguesia apresenta um aspecto mais complexo. Observa-se nela, desde o início do século XIX, um regresso à fé que não pode ser explicado unicamente pelo medo pânico da Revolução ou pelo desejo de fazer reinar no mundo a ordem moral. Chega a formar-se no seu seio uma elite cristã, sobretudo nos meios intelectuais, e esse fato é precisamente um dos que podem dar à Igreja as melhores razões de esperança no futuro 48. Mas, se é certo que uma ampla parcela da burguesia regressou a uma certa prática religiosa, há outra, e mais numerosa, que, conquistada pelas teses cientificistas e materialistas, esqueceu completamente o caminho da Igreja. Existe até, em todos os países ocidentais, uma burguesia violentamente anticristã, cuja veemência se manifesta a propósito de muitos assuntos na França e na Itália. E devemos acrescentar que, mesmo na burguesia ainda ligada aos valores cristãos, são muitos aqueles cujo cristianismo não passa de mero conformismo. E há também um “ateísmo prático”, esse que, no dizer de Jules Lagneau, consiste, “não em negar a existência de Deus, mas em não querer tornar Deus real nos atos” 49. Há uma descrença dos pretensos fiéis, que consiste em não viver nas circunstâncias do dia-a-dia e nas relações sociais a fé que declaram. A dicotomia que corta a existência em duas partes, uma em que se cumprem mais ou menos os atos religiosos, outra em que se age fora de toda a lei cristã, é uma atitude burguesa cada vez mais espalhada. E também ela denuncia a grande deriva para longe de Deus.
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(48) Cfr. neste vol. o cap. IV.

(49) Jules Lagneau, Célèbres leçons et fragments, Nîmes, 1950.
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Quanto ao outro fato em que se manifesta a descristianização – o desmantelamento da sociedade cristã –, é também bem claro. Essa derrocada das estruturas sociais cristãs é a causa da descristianização ou antes a sua conseqüência? As duas coisas ao mesmo tempo, porque uma arrasta a outra. Bem o sabem os “laicos”, cujo esforço por destruir a família cristã já conhecemos, pois a família era considerada a célula viva da fé cristã. Não é por acaso que, em todos os países, uma das primeiras medidas tomadas pelos governos anticlericais tenha sido votar leis autorizando o divórcio.

De fato, um dos sinais mais flagrantes da queda do espírito religioso é o aumento dos divórcios. Por toda a parte onde a lei o autoriza, o divórcio avança: na França, o número passa de cerca de 4.000 em 1885 – a lei era de 1884 – para 21.000 em 1927 e 27.000 em 1937. Em outros países, a progressão é análoga. Simultaneamente, aumenta o número de casamentos meramente civis, e é por isso que, em diversos países, os anticlericais se esforçam por retirar validade ao casamento abençoado pelo sacerdote, em benefício do casamento civil. Em 1937, em Paris, de cinqüenta casais unidos matrimonialmente, só vinte e dois julgavam útil passar pela igreja. E não conhecemos o número de uniões livres!

Não é somente uma legislação estabelecida pela Igreja que desmorona: é a própria moral cristã. Percebemo-lo ao considerarmos a vida sexual nos países que ainda se dizem cristãos. Os estritos princípios da Igreja são abertamente violados. O número de filhos nascidos fora do casamento vai crescendo sempre: em Paris, passa de 22% em 1927 para 39% em 1937. A situação é análoga na austera Espanha ou na virtuosa Alemanha. E ainda não é esse o sinal mais grave: teríamos de conhecer o número dos adultérios burgueses, que alimentam certa literatura, como também o dos abortos. É toda a sociedade ocidental, tanto a da Europa como a da América, é toda a humanidade civilizada que desliza para a obsessão do sexo, tão característica da nossa época: o cinema, desde o seu aparecimento, contribui largamente para impor essa obsessão por toda a parte.

E não é só a moral sexual cristã que está em causa. Todos os princípios do Evangelho são cada vez mais abandonados e traídos. O da caridade, mais que qualquer outro. A sociedade torna-se cada dia mais dura, mais cruel, o menos fraternal possível. O mundo a que Renan prometera o Paraíso pela ciência descobre que a ciência também faz progredir os meios de destruição. Vai haver uma larga distância entre as modestas hemorragias da guerra de 1870 e as hecatombes da Primeira Guerra Mundial; mas o horror das chacinas de Verdun e do Chemin des Dames cederá perante o do espetáculo da Segunda Guerra, com os seus campos de concentração e câmaras de gás, com a bomba atômica sobre Hiroshima. As relações sociais oferecem outros exemplos dessa maré em ascensão da violência: o ódio entre as classes aumenta, e, quando se desencadeia, mostra-se atroz, como no México ou na Espanha. O mundo que perdeu o sentido de Deus é também o mundo em que, na palavra sublime de São Francisco de Assis, “o Amor não é amado”.

Quando olhamos assim os sintomas desta crise que afeta o homem ainda ontem cristão e que o separa da sua alma, seria fácil concluir pelo desespero. Nietzsche parece ter tido razão: a “morte de Deus” impõe-se como um fato inelutável. E, no entanto, não é assim. Meio século mais tarde, a Igreja de Cristo não apenas terá escapado à destruição, mas surgirá mais forte, mais jovem, mais segura do seu futuro. O desafio lançado por um papa em resposta ao profeta dos abismos terá um desfecho vitorioso. Porque, na realidade, nem tudo era uniformemente negro e desesperador na situação desse mundo em plena transformação, e a palavra de Deus guardava nele as suas cartadas. Para muitos homens de fé, as trevas que os envolviam não eram aquelas em que o solitário de Sils-Maria via a humanidade precipitar-se no abismo. Eram antes as que a Promessa ilumina secretamente. Eram as trevas da Sexta-Feira Santa.


 
 
Daniel-Rops
Pseudônimo literário de Henri Petiot. Nasceu em Épinal, em 1901, e faleceu em Chambéry, em 1965. Foi professor de História e diretor da revista Ecclesia (Paris), e tornou-se mundialmente famoso sobretudo pelas obras de historiografia que publicou: a coleção História Sagrada, que abrange os volumes O povo bíblico (1943), Jesus no seu tempo (1945) e os onze tomos desta História da Igreja de Cristo (1948-65). Também foi autor de diversos ensaios, obras de literatura infantil e romances históricos, entre os quais destacamos Morte, onde está a tua vitória? (1934) e A espada de fogo (1938). Foi eleito para a Academia Francesa em 1955.
 

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