domingo, 12 de dezembro de 2010

Uma visão africana da Igreja e da AIDS

ZP10121201 - 12-12-2010
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Entrevista com o fundador da “AIDS Network” de Nairóbi
ROMA, domingo, 12 de dezembro de 2010 (ZENIT.org) – A Igreja Católica na África é a que mais ajuda as vítimas da AIDS e, para homens, mulheres e crianças que têm a doença, a Igreja não é apenas um organismo que presta serviços: é uma Mãe.
Esta é a impressão que compartilha o padre jesuíta Michael Czerny, fundador de African Jesuit AIDS Network.
O sacerdote jesuíta estabeleceu a rede em 2002, como um meio de ajudar os jesuítas na África a enfrentarem o problema do HIV/AIDS. Agora, o Pe. Czerny está em Roma, trabalhando como assistente de um dos africanos mais importantes do Vaticano: o cardeal Peter Turkson, presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz.
Nesta entrevista, o Pe. Czerny fala sobre como a Igreja cuida das vítimas da AIDS e por que seu trabalho é tão pouco reconhecido.
O que o levou a iniciar esse trabalho com o HIV?
Pe. Czerny: Eu trabalhava como secretário de Justiça Social na casa dos jesuítas de Roma e alguns jesuítas da África alertaram sobre a pandemia de AIDS no final do milênio. E assim, aqui em Roma, trabalhamos durante dois anos com os colegas da África para propor medidas; e essas medidas deveriam incluir uma rede de apoio e comunicação. Assim, foi fundado o African Jesuit AIDS Network, em meados de 2002; deixei o meu trabalho em Roma para ir a Nairóbi e liderar a rede.
Quando você pensa na AIDS, o que lhe vem à mente?
Pe. Czerny: Às vezes eu penso nas pessoas que ouvi pela primeira vez no Canadá, que sofriam tanto, com tanto medo e confusão durante a última década de 80 e início dos anos 90, mas agora penso em diversas pessoas da África. Eu mencionaria talvez a Rosana, uma jovem mulher HIV-positiva, que primeiro deu à luz um menino que não era HIV-positivo e depois uma filha que era; Rosana perdeu sua filha, depois foi abandonada pelo marido, expulsa da família e teve de batalhar para criar seu filho. Ela vive de forma positiva, com um compromisso firme de viver o maior tempo possível para poder ver o seu filho na escola, para vê-lo começar bem na vida. Eu a admiro e sinto que ela é o tipo de pessoa que gostaríamos – em certo sentido – de promover. Esperamos que todas as pessoas com HIV tenham a atitude positiva que a Rosana tem.
A Igreja Católica costuma ser humilhada publicamente por sua posição sobre o HIV/AIDS e poucos percebem o seu importante trabalho na prestação de cuidados às vítimas da doença. Você poderia falar sobre isso?
Pe. Czerny: Claro que sim. A Igreja universal é a primeira instituição que cuida daqueles que são portadores do HIV e sofrem de AIDS, além de cuidar também daqueles que são afetados – especialmente as viúvas, os órfãos e outras pessoas que carregam esse fardo. Assim, é muito amplo o leque de tarefas realizadas pela Igreja.
Se você pensar no âmbito médico, talvez no mundo inteiro, a Igreja ofereça 25% dos serviços às vítimas da AIDS. Minha opinião é que a média na África é de cerca de 40%, talvez até 50%. Quanto mais longe se está de grandes cidades, mais perto de 100% a Igreja estará. Muitas vezes, os únicos serviços contra a AIDS em áreas remotas são as clínicas da Igreja.
O que queremos dizer quando falamos em prestação de cuidados?
Pe. Czerny: Como o HIV e a AIDS não são apenas uma infecção ou doença, mas também um grande problema cultural, pessoal, familiar, social e espiritual, o que a Igreja consegue fazer (e algo de que nós deveríamos estar orgulhosos como Igreja) é tratar da pessoa inteira e não somente da infecção, não só da parte médica. Assim, uma pessoa com HIV pode ir à Igreja para uma vasta gama de cuidados e apoios que podem ser resumidos em ser aceita como pessoa e incentivada a continuar vivendo tão plenamente quanto possível, e não permitir que a AIDS seja uma sentença de morte.
Como é a visão africana do trabalho da Igreja nesta área dos cuidados?
Pe. Czerny: Eu acho que muitos africanos diriam: “A igreja estava conosco antes da AIDS. A Igreja está agora de forma generosa durante a AIDS e a Igreja estará conosco depois da AIDS”. Neste sentido, a Igreja não é vista tanto como um organismo que oferece projetos ou serviços, mas como a realidade que nós chamamos de “Mãe”: a mãe está perto, sempre estará perto e vai estar enquanto for necessário.
Você sabe que a Igreja na África chama a si mesma de “família de Deus na África”; esta é a definição que vem do 1º Sínodo da África e é assim que a Igreja enfrenta a AIDS, como uma família. Tentamos fazer com que todos se sintam parte de uma família, seja quando precisam de cuidados ou quando estão em condições de oferecer algum tipo de ajuda.
Você usou uma vez Mateus 8,3 – “Ele estendeu a mão, tocou-o e disse: ‘Eu quero. Fica limpo’. E naquele momento ele ficou limpo da lepra” – como um exemplo da postura da Igreja contra a infecção pelo HIV e do seu apoio. Pode dizer-nos por que você escolheu este exemplo específico?
Pe. Czerny: Com muito prazer. Existia este leproso que primeiro ousou se aproximar de Jesus – o que era contra a lei – e o desafiou, dizendo: “Se queres, podes me curar”. E Jesus fez duas coisas. Ele disse: “Eu quero”; e depois se aproximou, tocou-o e o curou.
Neste breve cena, temos muitas dimensões de assistência à AIDS, o verdadeiro ministério pastoral. O primeiro é “Claro que eu quero”, que é a disponibilidade para ajudar. Alguém em graves problemas e muito preocupado, talvez rejeitado de forma muito cruel por todos aqueles com quem sempre havia contado, pode recorrer à Igreja e sabe que nela encontrará uma resposta positiva. Não haverá julgamento. Não haverá nenhum cálculo e a resposta será: “Claro que eu quero”. Em segundo lugar, nós nos aproximamos e tocamos. Eu acho que é o gesto mais fundamental na resposta à AIDS.
Assim, por meio da Igreja, Cristo toca as pessoas?
Pe. Czerny: Uma pessoa que ouviu, em especial recentemente, que tem um diagnóstico de HIV positivo, sente-se como morta, sente-se como não humana e, infelizmente, a sociedade, a cultura, e às vezes até a família, a tratarão como uma pessoa morta. Dirão: “Você simplesmente já não existe para nós. Está morto. Vá embora. Não volte a mostrar-nos o seu rosto”. Assim, a pessoa se sente morta e não humana, e não há nada que possa convencer do contrário uma pessoa nessa situação. Então você precisa pensar em uma criança que sofre e tem problemas e no efeito em sua humanidade, em sua dignidade, ao ser tocada, ao ser abraçada.
Havia também um forte tabu cultural e médico sobre o fato de tocar um leproso. Jesus acaba com isso, sem se preocupar com o perigo de infecção; Ele está mais preocupado em se aproximar da pessoa para tocá-la, aquele toque que cura. E é isso que as pessoas vão dizer: “Quando eu descobri que era HIV positivo, estava morto e agora me sinto vivo”. E alguns vão mais além, ao dizer: “Antes de ser HIV positivo, eu perdia a minha vida. Eu estava perdendo minha vida com o meu comportamento. Agora, infelizmente, eu sou HIV positivo, mas agora vivo de verdade e vivo minha vida de maneira responsável, pela minha família – se a tiver – e pelos outros”.
O Papa Bento XVI provocou uma controvérsia quando afirmou que os preservativos não são a solução para o problema da AIDS na África. Por que a polêmica? O que aconteceu?
Pe. Czerny: Existe uma “verdade” que as pessoas aprenderam: que, se um casal decide usar o preservativo e um deles está infectado, e usam preservativos de forma constante e correta, isso irá reduzir as chances de infecção. Isso com um parceiro. Mas depois as pessoas pensam: “Bem, se a camisinha deu certo para um casal, então um milhão de preservativos deve ser algo bom para a população de uma aldeia ou cidade”, e isso não é verdade.
As estatísticas confirmam o fato de que a distribuição massiva de preservativos como uma estratégia de prevenção não tem êxito. Não diminui a proporção de pessoas afetadas, e é isso que o Santo Padre disse. Ele não negou que o preservativo é útil às vezes. O que negou é que a propaganda de preservativos como uma estratégia primária de prevenção não é bem sucedida. Não alcança seu objetivo. Não diminui a taxa de HIV na população. Mas as pessoas se alteraram muito, porque não estudaram nem ouviram cuidadosamente o que o Papa disse; e porque não estão bem informadas, porque há muita ideologia, emoção e interesses por trás de tudo isso, é que houve tanta polêmica.
O Dr. Edward Green, diretor do Projeto de Pesquisa de Prevenção à AIDS, do Centro de Estudos de População e Desenvolvimento de Harvard, disse que, como cientista, ficou surpreso ao ver o quão perto está o que o Papa disse em Camarões dos resultados das descobertas científicas mais recentes. Ele afirmou que o preservativo não previne a AIDS; só o comportamento sexual responsável pode enfrentar a pandemia.
Agora que você mencionou a questão da ideologia: estamos falando também da discrepância de valores entre a nossa sexualidade – o estilo de vida que escolhemos na civilização ocidental – e os valores culturais em continentes como a África? Está havendo uma brecha cultural?
Pe. Czerny: Sim, existe uma brecha entre o que hoje é considerado normal ou aceitável para a cultura globalizada: a cultura da mídia, da publicidade, do marketing. Estes valores estão em forte tensão com os valores católicos tradicionais e com os valores africanos tradicionais.
Talvez poderíamos resumir o valor cultural do mundo globalizada em relação à sexualidade como a confiança – a promoção, eu diria – na ideia do consentimento mútuo. Ou seja, a norma do comportamento sexual é o consentimento de ambos os participantes e, quando os participantes têm a idade mínima e consentem livremente, não há outras regras a serem aplicadas. Isto é o que a cultura globalizada promove sobre a sexualidade. Então, sempre que você e outra pessoa concordarem, está tudo bem e ninguém pode questionar isso.
A ideia que temos na Igreja e a ideia que temos na África é que existem outras regras e essas regras não dependem apenas de você e de mim: dependem da nossa família, da nossa comunidade, da nossa paróquia, da nossa nação, talvez até mesmo da nossa tribo. Esta ideia está em oposição ao anterior porque, na África, e na moral católica tradicional, não basta que você e eu concordemos para que algo seja bom; existem outras normas e estas guiam o que você e eu faremos ou não faremos, em certos momentos das nossas vidas, com certas pessoas. Assim, as diferenças são marcantes.
Não se falou disso na polêmica, mas tenho a certeza de que este é o verdadeiro problema: o Papa representa um conjunto de regras sobre a sexualidade que não queremos aceitar porque são mais exigentes. Estão mais abertas à vida e, no final, produzem mais felicidade. Mas, a curto prazo, parecem ser mais exigentes do que apenas dois de nós concordarmos sobre o que queremos fazer.
Então, abstinência, fidelidade. Isso é, de fato, o que os bispos africanos dizem: este é o caminho para a felicidade maior, para um bem maior.
Pe. Czerny: Isso mesmo. Dizemos isso não porque pensamos no assunto ontem, mas porque esta foi a nossa experiência e esta tem sido a experiência de qualquer cultura séria; a sexualidade é um grande dom, uma coisa maravilhosa que, para ser valorizada e usada adequadamente, requer disciplina, requer normas, requer o reconhecimento de que nem tudo é possível; e esta é, como digo, uma sabedoria humana que existe há muito tempo, mas que vai contra os princípios do entretenimento e do marketing. É por isso que temos um conflito.
Você já ficou irritado ou frustrado talvez com o que poderia ser considerado como uma posição teimosa, se entendemos que o preservativo não é solução, mas um monte de dinheiro, um monte de tempo e muito esforço que vão em uma direção que não parece oferecer as respostas?
Pe. Czerny: É verdade, isso é muito ruim, mas não há motivo para estar com raiva. O fato é que o HIV é um desafio para todos e na África é um desafio em praticamente todas as comunidades e, em alguns lugares, em cada família. Acho que vai demorar um bom tempo para enfrentar isso e, sim, a promoção massiva de preservativos é uma destruição. Não é solucionar problema e não dá certo, mas, infelizmente, não é o único exemplo de uma postura obstinada imposta à África. A África sobreviveu a outras políticas ruins e também vai sobreviver a esta.
Mas minha esperança é que, com o tipo de ensinamentos que o Santo Padre deu, progrediremos; e o progresso consiste, em última instância, em melhorar as estatísticas. O verdadeiro êxito é que os jovens sejam capazes de viver sua sexualidade de forma mais responsável. Quando os casados vivem a sua sexualidade de forma mais responsável e quando, como eu disse anteriormente, a família de Deus enfrenta a AIDS como uma família, eu acho que isso é um sinal de que Deus trabalha na África.
* * *
Esta entrevista foi realizada por Mark Riedemann para "Deus chora na terra", um programa rádio-televisivo semanal produzido por Catholic Radio and Television Network, (CRTN), em colaboração com a organização católica Ajuda à Igreja que Sofre.
Mais informação em www.aisbrasil.org.brwww.fundacao-ais.pt.

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