sábado, 4 de setembro de 2010

O Cisma dos cristãos orientais

Autor: D. Estevão Bettencourt
Os cristãos orientais separaram-se da Santa Sé ou de Rama em 1054 após vários litígios de fundo cultural mais do que de índole doutrinária. Entre o Oriente e o Ocidente foi-se cavando um fosso devido às diferenças de idioma (grego e latim), modo de celebrar a Liturgia, casamento dos clérigos orientais ... Nas atuais conversações para o reatamento de relações o ponto mais nevrálgico é o primado do Papa, que os orientais não querem aceitar. O artigo abaixo responde a uma explanação divulgada via internet, expondo a história do cisma oriental.

Foi divulgado via internet um relato da história e dos porquês do cisma dos cristãos orientais com o título "O Grande Cisma da Igreja Ecumênica" e da autoria do Rev. George Mastrantonis, da arquidiocese ortodoxa grega da América. O autor quer justificar o cisma, ocorrido em 1054, alegando a prepotência dos bispos de Roma (Papas), que teriam atribuído a si faculdades de governo e jurisdição indevidas ou mal fundamentadas. As atuais conversações para a restauração da comunhão entre cristãos ocidentais e orientais têm por ponto mais nevrálgico precisamente o primado de Pedro, que se prolonga nos sucessores do Apóstolo. Os orientais (também ditos "ortodoxos", porque guardaram a reta fé no período das grandes heresias ou nos séculos II-IV) não conhecem primado; têm igrejas nacionais autocéfalas, cada qual governada por um Sínodo próprio. Sem discutir esta posição, passamos a apresentar a história, tão objetivamente quanto possível, do cisma bizantino. No artigo subseqüente a este, abordaremos o primado do Papa na história do Cristianismo.

A ruptura entre bizantinos e ocidentais, que tomou sua forma definitiva no século XI, não é senão o último episódio de uma longa história ou da história das diferenças de duas mentalidades: a grega e a latina. Sobre a união na fé e no amor de Cristo, que estreitavam orientais e ocidentais, prevaleceu, infelizmente, a desunião humana natural. Comecemos, pois, por examinar as raízes do cisma.

1. As diferenças entre bizantinos e latinos

Há uma diversidade fundamental, que se manifestava de maneiras diversas:

a) O gênio. Os gregos eram intelectuais, cultores da filosofia, das letras e das artes. A elaboração das grandes verdades da fé a respeito da SS. Trindade e de Jesus Cristo deu-se no Oriente (até o Concílio de Constantinopla III, 680/1). Por isto tendiam a desprezar os romanos e, mais ainda, os bárbaros invasores, como rudes e incultos. - Os latinos eram mais amigos da prática, da disciplina, do Direito, por isto tinham os gregos na conta de frívolos, inconstantes e tagarelas (cf. At 17, 21 ); cliziase no Ocidente: °Graeca lides, nulla lides", isto é, "palavra de grego, palavra nula". Essa diversa índole suscitou, a partir do século V, um antagonismo crescente entre orientais e ocidentais.

b) A língua. Os primeiros documentos da Roma cristã eram redigidos em grego. Depois do século IV, porém, esta língua desaparece do Ocidente, dando lugar ao latim (= dialeto do Lácio ou da região de Roma). O latim era desprezado e desconhecido no Oriente, especialmente após o Imperador Justiniano (t 565). É de notar, por exemplo, que o arquidiácono latino Gregário (depois Papa), certamente homem de valor intelectual, passou cinco anos na corte de Constantinopla como legado papal, sem aprender o grego; julgava que isto não valia a pena (fim do século VI). - Ora a ignorância mútua de línguas muito contribuiu para que as comunicações entre Oriente e Ocidente se tornassem mais raras e sujeitas a mal-entendidos; era preciso recorrer a intérpretes, que nem sempre eram fiéis.
c) Liturgia e disciplina. Havia tradições diferentes no Oriente e no Ocidente, no tocante, por exemplo, ao calendário de Páscoa, aos dias de jejum (os latinos jejuavam no sábado; os gregos, não), à matéria da Eucaristia (pão sem fermento ou ázimo no Ocidente; pão fermentado no Oriente), ao celibato do clero, ao uso da barba (muito caro aos orientais).. Essas tradições, por não afetarem as verdades da fé, eram perfeitamente aceitáveis; haveriam, porém, de tornar-se motivo de debates em tempos de controvérsia.

2. Ao lado da diversidade fundamental, levemos em consideração a mentalidade que se foi formando em Bizâncio ou o "bizantinismo". Em 330 Constantino transferiu a capital de Roma para Bizâncio, que ele quis chamar "a nova Roma'. Esta fora até então uma localidade insignificante, que muito sofrera por parte dos Imperadores Romanos. Do ponto de vista eclesiástico, Bizâncio também carecia de significado; a sua comunidade cristã não fora fundada por algum dos Apóstolos (como as de Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Roma...); o primeiro bispo que se lhe conhece, Metrófanes, é do início do século IV (315-325) e sufragâneo ( A palavra sufragâneo supõe o seguinte: outrora as dioceses ou os bispados se reuniam em províncias; os bispos da província escolhiam seu metropolita (seu coordenador) e emitiam seu sufrágio no Concílio provincial; daí o nome sufragâneo. Atualmente sufragâneo é o bispo dependente de um arcebispo (numa dependência assaz tênue), do metropolita de Heracléia.

Compreende-se então que, o prestígio que Bizâncio não possuía por suas tradições, os bizantinos o quisessem obter por suas reivindicações. De modo geral, ia-se tornando difícil aos bizantinos reconhecer a autoridade religiosa de Roma, já que todo o esplendor da corte imperial se havia transferido para Constantinopla. Acresce que os Imperadores bizantinos, herdeiros do conceito pagão de Pontifex Maximus (Pontífice Máximo no plano religioso), se ingeriam demasiadamente em questões eclesiásticas, procurando manter a Igreja oriental sob o seu controle. Os monarcas, nas controvérsias teológicas, muitas vezes favoreciam as doutrinas heréticas, contrapondo-se assim a Roma e ao seu bispo, que difundiam a reta fé. Os Patriarcas de Constantinopla, por sua vez, muito dependentes do Imperador, procuravam a preeminência sobre as demais sedes episcopais do Oriente e queriam rivalizar com o Patriarca de Roma, sucessor de Pedro, aderindo à heresia e provocando cismas: dos 58 bispos de Constantinopla desde Metrófanés até Fócio (858), um dos vanguardeiros da ruptura, 21 foram partidários da heresia; do Concílio de Nicéia, I (325) até a ascensão de Fócio (858), a sede de Bizâncio passou mais de 200 anos em ruptura com Roma.

Registraram-se mesmo atos de violência cometidos por Imperadores contra alguns Papas: Justino I mandou buscar à força o Papa Vigílio em Roma e quis obrigá-lo a subscrever normas religiosas baixadas pelo monarca (cerca de 550); Constante III procedeu de forma análoga contra o Papa Martinho I, que em Roma (649) se opusera à heresia monotelita, favorecida pelo Imperador; Justiniano II mandou prenderem Roma o Papa Sérgio I, que não queria reconhecer inovações promulgadas pelo Concílio Trulano II (692); Leão III, iconoclasta, em 731 subtraiu a Roma a jurisdição sobre a Ilíria e sobre parte do "Património de S. Pedro" (Itália meridional).

3. O distanciamento entre orientais e ocidentais ainda foi acentuado pela criação do "Sacro Império Romano na Nação dos Francos", cujo primeiro Imperador Carlos Magno recebeu a coroa, em 800, das mãos do Papa Leão III. - O descaso ou a hostilidade dos bizantinos associados à opressão dos lombardos no Norte da Itália, deram motivo a que os Papas se voltassem aos poucos, com olhar simpático, para o povo recém-convertido dos francos, pedindo-lhes o auxílio necessário para instaurar nova ordem de coisas no Ocidente. A entrega da coroa imperial a Carlos Magno visava a prestigiar os francos nessa sua missão. Como se compreende, em Bizâncio tal ato foi mal acolhido; os orientais julgavam que só podia haver um Império cristão, como só pode haver um Deus; o Imperador reinava em nome de Cristo e era como que o representante visível da unidade da Igreja; daí grande surpresa e escândalo quando souberam que o bispo de Roma sagrara em 800 um "bárbaro" para governar um segundo Império cristão!

Apesar de tudo, deve-se dizer que até o século IX o primado de Roma ainda era satisfatoriamente reconhecido pelos orientais. A tensão de ânimos se manifestou em termos novos e funestos sob a chefia dos Patriarcas Fócio (? 897) e Miguel Cerulário (? 1059).

2. A ruptura sob Fócio:


Em 858 foi ilegitimamente deposto por adversários políticos o Patriarca Inácio de Constantinopla. Em seu lugar, subiu à cátedra episcopal um comandante da guarda imperial, Fócio, que o Imperador favorecia. O novo prelado recebeu em cinco dias todas as ordens sacras e foi empossado, sem que a sé estivesse vaga (pois Inácio não renunciara). Não conseguindo impor-se ao bispo de Roma, que em 863 o declarou destituído das funções pastorais, Fócio, ainda apoiado pelo Imperador, abriu violenta campanha contra os cristãos ocidentais. A situação se tornou mais tensa pelo fato de que o Papa Nicolau I enviou missionários latinos à Bulgária, cujo rei Bóris, recém-batizado, hesitava entre a obediência a Roma e a obediência a Constantinopla. A entrada dos latinos em território tão próximo das fronteiras gregas irritou os bizantinos; a cólera chegou ao auge quando estes souberam que legados de Roma estavam a caminho de Constantinopla, onde deveriam informar o Imperador de que a Bulgária se tornara decididamente latina. Presos antes de penetrarem em território imperial, os legados do Papa foram expulsos (866); Fócio enviou uma carta aos bispos do Oriente condenando a conduta dos "ocidentais bárbaros": além da evangelização da Bulgária, censurava-os por praticarem o jejum no sábado, celebrarem a Eucaristia com pão ázimo e,... principalmente, por terem acrescentado o Filioque ao Símbolo da Fé. Como sabemos, o credo niceno-constantinopolitano professava: "Creio no Espírito Santo, que procede do Pai...". Todavia a partir de fins do século VI, a Igreja na Espanha propagou a fórmula: "...que procede do Pai e do Filho (Filioque)". Na França este acréscimo foi sendo aceito; Carlos Magno patrocinou-o. Os monges francos o cantavam.

3. A cisão definitiva em 1054:

O século X foi marcado pela criação do Sacro Império Romano da Nação Germânica com a dinastia dos Otos (962) - o que muito irritou o bizantinos, que viam nesse fato a renovação do gesto de 800 (coroação de Carlos Magno Imperador). As relações com Roma eram frias; bastaria um pequeno incidente para reavivar as acusações feitas no passado. Isto, de fato, aconteceu em 1014: o Papa Bento VIII introduziu o Filioque no canto da igreja Romana a pedido do Imperador Henrique li. O Patriarca bizantino Sérgio 11 reagiu, propagando os escritos de Fócio sobre o assunto. Em 1043 tornou-se Patriarca de Constantinopla Miguel Cerulário homem ambicioso, que' deu livre curso à paixão anti-romana; em 1063 mandou fechar as igrejas dos latinos em Constantinopla e confiscou os mosteiros destes; acusava-os principalmente de usar pão ázimo na Eu caristia; um dos funcionários imperiais parece ter calcado aos pés a: hóstias dos "azimitas" como não consagradas. Estes fatos causaram gran de agitação no Ocidente; o Cardeal Humberto da Silva Cândida, erudito e talentoso, escreveu um "Diálogo", em que refutava as objeções do: gregos e os acusava de Macedonismo (por não aceitarem o Filioque).

Todavia o Imperador bizantino Constantino IX desejava boas relações com o Papa Leão IX para que este o ajudasse a combater o; normandos, que devastavam as possessões bizantinas na Itália Meridional; em resposta a uma carta do Imperador, Leão IX enviou uma legação a Constantinopla em 1054, composta pelo Cardeal Humberto da Silva Candida e por dois outros prelados. O Imperador mandou queimar um libelo acusatório anti-romano para favorecer o diálogo. Mas Miguel Cerulário se mostrou intransigente; chegou a proibir os ocidentais de celebrar Missa em Constantinopla. A vista disto, os legados romanos reagiram com o recurso extremo: aos 16/07/1054, em presença do clero e do povo depositaram sobre o altar-mor da basílica de Santa Sofia em Constantinopla uma Bula de excomunhão contra Cerulário e seus seguidores; despediram-se do Imperador e tomaram o caminho de volta para Roma. - Os legados papais julgavam que, diante deste gesto, o Patriarca retrocederia. Em vão, porém; Miguel Cerulário excitou tumulto em Constantinopla contra o Imperador acusado de cumplicidade com os romanos; Constantino IX reagiu violentamente. Num Sínodo o Patriarca pronunciou o anátema sobre o Papa e seus legados e promulgou o manifesto que convidava os demais bispos do Oriente a se lhe associarem. Na verdade, o proceder de Cerulário foi em breve imitado pelos outros bispos orientais e pelos povos evangelizados por Bizâncio (sérvios, búlgaros, rumenos, russos), acarretando a grande divisão que até hoje perdura apesar das tentativas de reatamento que se deram nos séculos XIII e XV.

Quanto a Cerulário, levou sua paixão ao ponto de reivindicar para si as insígnias imperiais; por isto em 1057 foi exilado pelo Imperador Isaac I e morreu no desterro em 1059. Em nossos dias verifica-se que a cisão não se fundamenta apenas em motivos teológicos; mas também em razões de rivalidade cultural e política acobertadas por pretextos religiosos. A profissão do Filioque decorre de um estudo mais preciso do dogma trinitário, plenamente consentâneo com as verdades da fé; não é necessário que os orientais o introduzam no seu canto litúrgico. A excomunhão mútua de Roma e Constantinopla foi cancelada após o Concílio do Vaticano II e o caminho está aberto para bom entendimento entre orientais e latinos. Aqueles têm o título de ortodoxos, porque ficaram fiéis à reta doutrina durante as controvérsias cristológicas dos séculos III-V.

A Santa Igreja, representada pelo sucessor de Pedro em Roma e pelos fiéis que estão em comunhão com ele, continua a ser, mesmo após a separação de Bizâncio, a depositária junto à qual os homens encontram incontaminados os meios necessários à sua santificação. [Pergunte & Responderemos - junho de 2002 - D. Estevão Bettencourt ]

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