domingo, 26 de setembro de 2010

D. ESTEVÃO BETTENCOURT E A IDADE DAS TREVAS

A separação entre ciência e ideologia não vem de hoje: remete em sua forma mais acabada à clássica dicotomia weberiana dos Oitocentos, e penso que só minha incultura me impede de datá-la em momento ainda mais remoto. Tal separação cumpriu papel essencial no estabelecimento da metodologia científica das ciências humanas, posto que a busca pela Verdade se desfez dos véus ideológicos capazes de obscurecer o caminho; que na modernidade inúmeros não apenas ignorem essa separação como advoguem explicitamente o teor ideológico da ciência e a necessidade da doutrinação e do fim da Verdade, é falha típica do espírito modernoso, falha que não apenas em nada obscurece ou contesta seriamente o legado weberiano como ainda torna sua justeza mais óbvia aos sensatos, evidente ao se compararem as sandices produzidas pelos ideólogos- de todos os matizes, fique claro- com a clareza e limpidez das análises carentes de paixões. É óbvio que é impossível a neutralidade absoluta: mas a certeza dessa impossibilidade não nos deve- como pensam mui estranhamente alguns- abandonar o caminho, e sim tentar sempre buscar esse impossível.
Mas já não deixaria de haver neutralidade na própria escolha do objeto de estudo? Sim, parece-me afirmativa a resposta. A escolha do estudo já se baseia em interesse do autor, normalmente dotado de alguma conotação ideológica. É sob essa ótica que se devem analisar todos os revisionismos: a princípio se apresentam como científicos, imparciais- buscam muitas vezes maior rigor no método científico que as próprias análises correntes que combatem, usam de linguagem que faz aparentar ter o autor interesses meramente científicos no desvelo da Verdade oculta pelo obscurantismo do senso comum. Bastam porém análises mais ou menos acuradas para se perceber o profundo teor ideológico que acomete a enorme maioria dos revisionismos- experiência pessoal, a título de exemplo: a única contestação profunda a historiografia corrente que conheço e parece prescindir de interesse ideológico é o recente MALDITA GUERRA, de Francisco Doratioto, releitura da guerra do Paraguai que se contrapõe aos panfletos esquerdistas a respeito.
No caso presente nem se faz necessária essa análise acurada: basta atentar para o nome do autor do revisionismo que já se tem idéia dos interesses presentes na análise. A qualquer conhecedor mínimo de formas de tratamento, o "D." que precede o nome de nosso articulista já remete a Dom, o título eclesiástico, o que em se tratando de textos sobre Inquisição já é meio caminho para descobrir as intenções do escritor. Pesquisa rápida na internet mostra D.Estevão como indivíduo ligado a ala tradicionalista da Igreja, votado ao combate contra o "progressismo católico" e defesa dos ideais perenes da crença- isso a despeito de uma polêmica com o lendário Fedeli, da Montfort, o que me lembra que sempre existe alguém mais à direita do que você. Posto isso ficam mais ou menos claras as intenções de D.Estevão: relativizar ou até mesmo, quem sabe, reabilitar historicamente a Inquisição. Digo mais ou menos pois segue o autor a fórmula revisionista expressa acima: busca da imparcialidade e do cientificismo a não mais poder, o que nos impede de precisar exatamente as intenções dele- me arrisco a dizer que há algo de proposital aí, a já clássica "confusão retórica", instrumento milenar e absolutamente eficaz que permite ao retórico defender e criticar uma pluralidade de opiniões diversas ao mesmo tempo, estando ele apto para se esvair de uma crítica alegando que não quis dizer o alegado pelo crítico, mas sim exatamente o seu oposto.
Mas o que se pode depreender dos textos de D.Estevão? O texto principal nos fornece uma luz em sua "Avaliação", votada a "formular um juízo sobre a Inquisição medieval[inquisição levada a cabo em séculos XII/XIII, contra cátaros e valdenses; comentário meu]". Esse tópico subdivide-se em quatro outros, que merecem análise crítica:
1)Tem-se aqui explicação da Inquisição que perpassa os demais textos, sendo uma das teses principais do autor: a existência de ambiente cultural/espiritual na época condizente com as práticas inquisitoriais. Evoca-se aqui o "amor à fé", sua vitalidade e espontaneidade; o povo abominava heresias, tinha viva fé no ideário católico, clamava por punições aos hereges, não raro se antecipando à Igreja nessas punições como excedendo a moderação recomendada pelo clero.
Essa é talvez a pedra de toque dos artigos e é impressionante sua fragilidade, não perceptível apenas àqueles que movidos pela visão de mundo que ainda aqui se criticará. A análise de D.Estevão é no mínimo contestável, mas não é isso que aqui se pretende: assumamos que ele está correto, e a massa medieva de fato via como excelente o queimar seres humanos considerados como perniciosos ao corpo espiritual comunitário. É preciso demonstrar o caráter coletivista de uma afirmação que justifique o ato baseado nessa concordância da maioria? A estar realmente o Ocidente dividido entre duas éticas, fica clara aquela que move o pensamento de D.Estevão: é a coletivista, e em seu ápice mais nefasto. Comparação batida, mas rápida e incisiva: a supor correta a tese de alguns historiadores- p.ex Daniel Goldhagen, OS CARRASCOS VOLUNTÁRIOS DE HITLER- a população alemã contribuiu decisivamente para a política anti-semita, conhecia bem suas linhas gerais e a apoiava; ela observava o judeu exatamente como um desagregador, alguém que desestabilizava senão o corpo espiritual, ao menos o corpo social alemão. Isso justifica os formos crematórios?? A crença da maioria na imoralidade e perversidade de uma minoria condena esta a padecer? Essa visão de democracia é exatamente a coletivista, antítese máxima da visão liberal que compreende a democracia exatamente como a possibilidade de decisão de maioria QUE RESPEITE OS DIREITOS DE UMA MINORIA, PRINCIPALMENTE DA MAIS ABSOLUTA MINORIA MODERNA, O INDIVÍDUO.
Cumpre ainda notar a elegia que se tece a esse tipo de fé, obviamente nublada pelo cientificismo de praxe; se os medievais tinham "profunda consciência do valor da alma e dos bens espirituais" e sua fé era "viva e espontânea" e isso é explicação para a Inquisição; se a função da Igreja não é- me critiquem católicos caso eu esteja errado- exatamente recuperar essa fé viva, espontânea e profunda...conclui-se que quanto mais a Igreja recuperar seu poder de outrora sobre as consciências mais próximos estaremos de uma nova Inquisição?
2)Aqui D.Estevão dança ao ritmo do samba-do-clérigo-doido: usa de singulares abstrações conceituais completamente desprovidas de empirismo ou mesmo exemplificações simples para defender disparidade entre categorias de justiça medieva e moderna, como de praxe valorando implicitamente sua preferência pela primeira; seriam os medievais lógicos e os modernos sentimentais, a despeito da conhecida e notória tendência a impessoalidade jurídica crescente no Ocidente durante o desenvolvimento do liberalismo; se hoje observamos sim um certo sentimentalismo crescente deve-se sem dúvida ao também crescente poder do coletivismo- e não creio que D.Estevão ignore isso.
3)A culpa foi das autoridades civis. O processo de transferência de responsabilidades é natural após as hecatombes: os comandantes dos campos de concentração obedeciam apenas ordens superiores. Aqui fica a pergunta: existiria Inquisição não fosse a Igreja? Poderiam sim permanecerem perseguições levadas a cabo por autoridades seculares, mas foi a Igreja a sistematizadora do processo e quem auferia em grau máximo, celestial inclusive, legitimidade às práticas dos governantes terrenos. Não fosse capaz de controlar o tigre não o soltasse; à culpa respondem não apenas os autores do delito mas também os que o permitiram, mesmo que por tibieza.
4)Sim, havia os malvados. Mas esses eram minoria, algo absolutamente natural em qualquer sistema repressivo. Os guardas da SS que espancavam os judeus eram minoria absoluta, cumpria a eles apenas contê-los e levá-los placidamente às câmaras de gás, em fila indiana. Da mesma forma a Igreja condenava os abusos: que se leve adiante a tortura, mas, por favor!, sem mutilação de membros ou perigo de morte, como advertia seriamente o sem dúvida boníssimo Papa Inocêncio IV.
Há absurdos muitos nesse e demais textos da série para analisá-los um a um, e antes de passar às óbvias conclusões citarei apenas tragicomédias particularmente esdrúxulas:
a)página 4 do texto principal, item 7: "Segundo as categorias da época, a Inquisição era um progresso para melhor em relação ao antigo estado de coisas, em que as populações faziam justiça pelas próprias mãos". Concordo, era um progresso- ao se conceituar "progresso" como a tendência a racionalização weberiana. Da mesma forma, segundo o mesmíssimo raciocínio- população justiceira inclusive- os campos de concentração foram um progresso em relação aos pogroms.
b)página 5, ainda do texto principal: apenas para não deixar passar que São Tomás, o Douto, aquele que nos é recomendado por neodireitistas inúmeros como receptáculo da sapiência filosófica universal, ignorado nas cátedras universitárias pelos terríveis ateus, sim, este mesmo, adjetivado a exaustão nessa frase extensa...defendia sem maiores pendores a pena de morte para os hereges. Eu, herege, me rejubilo com a vitória liberal sob os escombros da civilização do Santo Padre, e agradeço ao Divino- este que sem dúvida não desfruta da companhia do Padre tolerante- e aos libertários de outrora a minha presente existência física.
c)Texto sobre Inquisição espanhola, tópico sobre Tomás de Torquemada: "este religioso foi movido por sincero amor e verdadeira fé, cuja integridada lhe parecia comprometida pelos falsos cristãos; daí o zelo extraordinário com que procedeu". Ah, belíssimo. A descontar o eufemismo simpático- "zelo extraordinário" a substituir "instinto genocida"- fica a conclusão óbvia: possuidor de bons sentimentos, és dotado de salvo-conduto para o que bem o desejar. Isso nos leva a universo amplo que vai das sandices de Molusco aos genocídios vermelhos, passando pelo zeloso Torquemada- ou crê o distinto D.Estevão que os comunas são seres malignos por excelência, hostes diabólicas que aqui aportam apenas para praticar o consciente mal? Se assim pensa o corrijo: a maioria dos vermelhos é dotada de excelentes sentimentos e crê estar realizando bem supremo com suas engenharias sociais e planejamentos. Se o Grande Timoneiro foi provavelmente um grande crápula, a maioria dos jovens que exibia seus livros vermelhos acreditavam estar a salvar a humanidade da perdição- exatamente como Torquemada, o piedoso.
Creio que basta. O leitor desejoso encontrará mais imbecilidades totalitárias nesses mesmos dois textos e nos demais que completam a obra inaugural do clérigo no Mídia sem Máscara. Parto às óbvias conclusão:
Sempre que a moral privada transcender sua esfera e se confundir com moral de Estado a humanidade correrá riscos imensuráveis até mesmo na cabeça dos planejadores coletivistas; talvez a maior contribuição da ideologia liberal aos povos da terra seja essa, em muito superior a questões econômico-mercadológicas: o Estado deve buscar a amoralidade; transpôr uma moral para a raison d` etat será sempre a transposição de determinada moral, mesmo que compartilhada pela totalidade dos membros da sociedade. Tal moral no mínimo criará dificuldades ao desenvolvimento de morais privadas a ela opostas e, como de praxe plenamente ciente de sua superioridade absoluta sobre as outras concepções de mundo, não tardará a se transformar em totalitarismo deplorável.
E termino aqui com chamado aos liberais genuínos: é isso que pede nossa oposição, é isso que nos impele à luta: o combate ao totalitarismo travestido de Moral Suprema. A persistir a anomia liberal- quando não a conivência ou mesmo colaboração- só nos restará no futuro escolher entre dois totalitarismos: o trajado com o macacão proletário ou aquele que verga a bata clerical: os gulags ou as fogueiras; "1984" ou "A Handmaid`s Tale"; Mujiques ou Ultramontanos. E teremos nova Era das Trevas, de escuridão muito mais densa que suas precedentes.
Felipe Svaluto Paúl(Lighting the fires of liberty-one heart at a time)

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