segunda-feira, 6 de setembro de 2010

“O papa que venceu o comunismo"

por Bernard Lecomte

“PERGUNTE E RESPONDEREMOS”

Em síntese: O jornalista Bernard Lecomte, tendo investigado arquivos do Leste europeu e de Paris, houve por bem descrever a história da queda do comunismo, pondo em relevo a atividade do Papa João Paulo II nessa derrocada. 0 livro foi publicado em francês no ano de 1991, de modo que não vai muito além da queda do Muro de Berlim. Corno quer que seja, é rico em informações, muitas vezes, desconheci¬das ao grande público. Com fidelidade põe em relevo o pensamento e as preocupações de João Paulo II, o Papa que sonhava com a construção da Casa Comum Européia, unindo Ocidente e Oriente numa Europa cuja civilização tem origens cristãs.

* * *

Bernard Lecomte é jornalista que se especializou em assuntos da União Soviética e dos países do Leste Europeu. Durante anos fez suas pesquisas em Paris, Moscou, Cracóvia, Praga e Gdansk (Danzig). É repórter do L'Express e co-autor com Jacques Lesourne, de Lapres ¬communisme de l'Atlantique a I'Oural (O pós-comunismo desde o Atlântico até os montes Urais). Escreveu sobre o papel do Papa João Paulo II no combate ao comunismo ateu no livro La Verite' I’emportera sur le Mensonge (A Verdade prevalecerá sobre a Mentira) publicado em 1991 e editado em tradução portuguesa em 1993 com o titulo "O Papa que venceu o Comunismo"1. É obra semelhante a de Bernstein-Pout - "Sua Santidade" - já apresentada em PR 420/1997, pp.200-209, com a dife¬rença de que o autor descreve a história até 1991, ao passo que os dois outros jornalistas se estendem até 1996.

Como quer que seja, o livro é interessante, pois não somente trata da atividade de João Paulo II corno Pastor da Igreja em luta pelos direitos humanos e pela liberdade religiosa, mas aborda o panorama dos povos que aos poucos se foram libertando do comunismo; percorre assim a recente história de cada pais do Leste europeu, incluindo a Iugoslávia e a Albânia. Isto abre os horizontes do leitor, que descobre episódios geral¬mente desconhecidos, mas bem documentados por B. Lecomte.

Nas páginas subsequentes, serão propostos alguns tópicos sali¬entes de tal obra.

Tradução de Artur Lopes-Cardoso. Editora ASA, Rua Mártires da Liberdade 77, Lisboa, 170 x 240 mm, 358 pp.

1. A Eleição do Papa polonês

Os Cardeais que se preocupavam com a sucessão de João Paulo pensavam num Papa não italiano, após procurar entre os italianos o candidato ideal. Assim fizeram a escolha de um Papa eslavo - Karol Wojtyla que, como se diz, obteve 97 dos 111 votos no oitavo escrutínio. Tal eleição causou enorme surpresa e suscitou prognósticos:

"Moscou viu de imediato um inimigo em João Paulo II" (Jerzy Turowicz).

"Os russos teriam preferido ver Soljenitsine tornar-se Secretário Geral da ONU a ver um polaco tornar-se Papa" (jornalista Alberto Roncai em La Stampa de 17/10/78).

"Trata-se de um terremoto psicológico para todo o Leste" (Cardeal Franz konig, Arcebispo de Viena). cf. p.9.

Lecomte afasta a hipótese de que João Paulo I tenha sido assassi¬nado (cf. pp. 31s).

2. 0 Plano do Papa

Desde o início do seu pontificado, João Paulo II teve em mira obter a liberdade civil e religiosa para os povos dominados pelo comunismo. Era sua consciência de Pastor, arauto da Boa-Nova, que o impelia a tra¬balhar arduamente neste sentido. Essa sua visão pastoral era corrobora¬da pela certeza de que a Europa contemporânea é cristã em suas ori¬gens, mas se via, em parte, ocupada por um regime ateu.

“João Paulo II não deixará de lembrar-nos seus discursos e hornilias que a Europa precisa dos seus “dois pulmões” espirituais, o ocidental e o oriental para respirar normalmente e os eslavos constituem uma síntese dos dois porque foram evangelizados tanto pelo Ocidente como pelo Leste. A 3 de junho de 1979, em Gniezno, afirma: “Cristo não quer o Espírito Santo não dispõe que esse papa polaco, esse papa eslavo, manifeste precisamente agora a unidade espiritual da Europa cristã [...] devedora das duas grandes tradições do Ocidente e do Leste?' A 2 de junho de 1985, por uma encíclica apropriada, Slavorum Apostali, publicada por ocasião do décimo primeiro centenário da evangelização dos eslavos pelos monges Cirilo e Metódio, João Paulo II lembra que Roma, “centro visível da unidade da Igreja”, continua a ser um recurso possível para todos os cristãos do Leste...

Por outro lado, o corte da Europa, neste final do século XX, é sobretudo a fronteira entre dois blocos de Estados hostis, nascida do acordo de lalta, em 1945. Uma ferida viva, um rasgão insuportável - mas que nada prova que seja eterna - em Gniezno (1979), ern Paris (1980), em Compostela (1982), em Viena (1983), o papa não parará de denunciar a divisão da Europa e de condenar o muro de Berlim” (p.197).

A idéia da Casa Comum Européia é de origem soviética; fez a fortuna política de Gorbatchov, mas é bem anterior a ele. - Em 1960, o antigo presidente (democrata-cristão) da Câmara de Florença, Giorgio La Pira, dissera a Kruchtchov: "Não haverá verdadeira Casa Comum para o homem da Europa se não houver também, na vossa cidade, uma casa para Deus".

3. Confisco do Sentido

B. Lecomte registra o clima de falsidade criado pelos regimes Comunistas nos países por eles dominados: a dialética marxista e a desinformação imperavam.

Ao povo era sonegado o conhecimento da verdade:

“O monopólio do partido sobre a verdade é o confisco do sentido.

Desde sempre, a propaganda comunista virou do avesso as palavras do seu adversário ideológico para assentar os seus próprios dogmas. Também essas palavras vão ter; em breve, uma dupla acepção: “democracia” e democracia socialista, “moral” e moral socialista, etc. Na maioria das vezes, a nova acepção de uma palavra é a inversa da sua acepção “burguesa”, que é o sentido comum...

Um cúmulo: a palavra verdade, em russo, serviu de título para o jornal mais mentiroso da história dos homens, a Pravda...

Foi assim que, pouco a pouco, o comunismo raptou o próprio sen¬tido das palavras e constituiu aquilo a que George Orwell, em 1945, chamara novíngua. Este desdobramento do verbo vai provocar, de Berlim a Vladivostoc que, a maior esquizofrenia da história da humanidade, cujos aspectos quotidianos o escritor Dmitri Savitsky descreveu em os Ho¬mens Duplos e cujos danos o filósofo Alexandre Zinoviev não parou de denunciar ao longo dos seus livros.

Setenta anos após o golpe de Estado bolchevique de Outubro de 1917 (chamado, em linguagem socialista, a grande revolução de Outu¬bro), as sociedades do Leste perderam pura e simplesmente o sentido das palavras (vazias), dos números (falsos), dos mapas (falseados), das datas (esquecidas), de todas as marcas semânticas que constituem uma sociedade civilizada. Já não há informações, estatísticas, arquivos possíveis! E, consequentemente, acabaram a identidade nacional, o projeto comum, a responsabilidade social, a comunicação, a consciência coletiva.

Como poderemos espantar-nos com o fato de, com o correr dos anos, essas sociedades terem sentido, cada vez mais vivamente, uma formidável necessidade de sentido? Após várias décadas deste sistema, observa o historiador Jacques Rupnik, vemos manifestar-se urna sede generalizada de verdade - verdade tanto em relação ao presente como em relação ao passado, verdade na linguagem. A humilhação de uma nação, sublinha Rupnik, inicia-se quando se pede a um checo ou a um húngaro que qualifique a ocupação militar do seu país como assistência fraterna”.

Como poderemos espantar-nos por a primeira forma de oposição ao regime ter sido o samizdat?1 E o seu principal inimigo as rádios ocidentais?” (pp.174-176). 4. A Resistência ao Comunismo

Muito significativa é a observação de Lecornte referente a resistên¬cia que as populações opuseram ao comunismo. Os traços coligidos pelo autor dão a ver que as regiões católicas foram as que mais destemida¬mente enfrentaram o regime ateu:

“Em 1990, quando todos os países da Europa central realizaram, pela primeira vez, eleições livres, era fácil fazer o seguinte balanço:

- Os comunistas foram cilindrados na Polônia, Hungria, Eslováquia, Eslovênia, Croácia, terras católicas;

- conservaram um forte impacto na Alemanha Oriental e na Boêmia, terras protestantes;

- conservaram a maioria na Romênia, Bulgária, Servia, terras ortodoxas;

- dominarão, mais tarde, o primeiro escrutínio legislativo na Albânia, terra muçulmana.

A observação toca as raias da caricatura. Depois, os outros escru¬tínios dependerão das evoluções políticas internas de cada Estado e não serão sempre tão nítidos. Mas estes primeiros resultados eleitorais, como urna fotografia tirada ao sair da ditadura comunista, não se devem ao acaso. Na Europa central, a contestação antimarxista e antitolitária foi sempre mais forte na Polônia, na Hungria, na Eslováquia, países quase exclusivamente católicos. De igual modo, na URSS, as duas regiões que nunca suportaram a férula de Moscovo, após a guerra, foram a Lituânia e a Ucrânia ocidental Os dois bastiões do catolicismo soviético.

1 Samizdat era a rede de comunicações clandestinas existente sob os regimes Co¬munistas (Nota do Redator).

Últimos exemplos: na Albânia muçulmana e atéia, foi na região de Shkodra, crisol do catolicismo local - antes da guerra existia lá o maior colégio jesuíta dos Bálcãs -, que começou a ouvir-se tremer o regime nas suas bases, em meados de janeiro de 1990. Finalmente, quando o mosaico jugoslavo se desagrega, em junho de 1991, é em virtude da democratização acelerada das duas repúblicas católicas, a Eslovênia e a Croácia, ansiosas por abandonarem urna federação ainda dominada pe¬los comunistas.

O mapa da contestação no Leste recortou sempre, com urna preci¬são perturbadora, o das diferentes confissões. Segundo as tradições re¬ligiosas dominantes, as sociedades leste-européias opuseram urna re¬sistência maior ou menor ao poder comunista. É patente que os países satélites da URSS não digeriram o regime comunista da mesma forma e é nos países de tradição católica - sem que a dimensão religiosa esteja necessariamente presente - que o PC soviético conheceu as suas maio¬res preocupações: insurreição de Budapeste (1956), Primavera de Pra¬ga, com forte influência eslovaca (1968), motins operários na Polônia (1970 e 7980).

Mesmo no caso da Alemanha Oriental, país protestante, os investigadores observaram que, antes da construção do “muro da vergonha” em 1961, a percentagem de católicos entre os fugitivos (15%) era bem superior a sua proporção na população da Alemanha Oriental (7%)...

Esta conclusão não é uma novidade. Já no início do século, Max Weber verificava que as três grandes tradições do cristianismo não produzem o mesmo comportamento social, enquanto Arnold Toynbee pensava que as verdadeiras fronteiras entre civilizações eram as das religiões. No que a isto respeita, a principal ruptura civilizacional, na Europa, continua a ser aquela que dividiu, no século Xl, os cristãos do Oriente e do Ocidente” (pp.915).

Ao falar das três tradições do Cristianismo, o autor se refere a católicos, ortodoxos orientais e protestantes. A ruptura do século Xl (1054) deu-se quando o Patriarca Miguel Cerulário, de Constantinopla, rompeu a comunhão com os cristãos ocidentais.

Em suma, o livro é assaz elucidativo e, além do mais, respeitoso dos valores cristãos.

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