À presidente da Academia Pontifícia de Ciências Sociais
CIDADE DO VATICANO, terça-feira, 15 de maio de 2007 (ZENIT.org).- Publicamos a carta que Bento XVI enviou à presidente da Academia Pontifícia de Ciências Sociais, a professora Mary Ann Glendon, por ocasião da sessão plenária celebrada no Vaticano sobre o tema «Caridade e Justiça nas relação entre povos e nações», de 27 de abril a 1 de maio.
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MENSAGEM DO PAPA BENTO XVI
À PRESIDENTE DA PONTIFÍCIA ACADEMIA
DAS CIÊNCIAS SOCIAIS POR OCASIÃO
DA VIII SESSÃO PLENÁRIA
A Sua Excelência Professora MARY ANN GLENDON
Presidente da Pontifícia Academia das Ciências Sociais
No momento em que a Pontifícia Academia das Ciências Sociais se reúne para a sua XIII Sessão Plenária, é com prazer que vos saúdo, bem como aos vossos ilustres colegas, e que transmito os meus sinceros bons votos pelas vossas deliberações.
Este encontro anual da Academia é dedicado à consideração do seguinte tema: "Caridade e justiça nas relações entre os povos e as nações". A Igreja não pode deixar de se interessar por esta temática, uma vez que a busca da justiça e a promoção da civilização do amor constituem aspectos essenciais da sua missão de proclamar o Evangelho de Jesus Cristo. Sem dúvida, a construção de uma sociedade justa é a responsabilidade primária da ordem política, tanto nos Estados individualmente como no seio da comunidade internacional. Como tal ela exige, a todos os níveis, um exercício disciplinado da razão prática e uma formação da vontade, em vista de discernir e alcançar os específicos requisitos de justiça, no pleno respeito pelo bem comum e pela dignidade inalienável de cada indivíduo. Na minha Encíclica Deus caritas est, no início do meu Pontificado, desejei afirmar de novo o desejo que a Igreja tem de contribuir para esta necessária purificação da razão, para ajudar a formar as consciências e estimular uma maior resposta às exigências genuínas da justiça. Ao mesmo tempo, desejei salientar que, mesmo na sociedade mais justa, sempre haverá lugar para a caridade: "Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor" (n. 28 b).
A convicção da Igreja acerca da inseparabilidade da justiça e da caridade brota, em última análise, da sua experiência da revelação da justiça e misericórdia infinitas de Deus em Jesus Cristo, enquanto encontra expressão na sua insistência de que o próprio homem e a sua dignidade irredutível devem ocupar um lugar fulcral na vida política e social. Assim o seu ensinamento, que visa não apenas os fiéis, mas também todas as pessoas de boa vontade, apela à razão recta e à justa compreensão da natureza humana, propondo princípios que sejam capazes de orientar os indivíduos e as comunidades na sua busca de uma ordem social que se caracterize pela justiça, liberdade, solidariedade e paz.
Como bem sabeis, no âmago de tal ensinamento encontra-se o princípio do destino universal de todos os bens da criação. De acordo com este princípio fundamental, tudo aquilo que a terra produz e tudo o que o homem transforma e fabrica, toda a sua ciência e a sua tecnologia, tudo deve servir para o bem do desenvolvimento e para a realização da família humana e de cada um dos seus membros.
Com base nesta perspectiva integralmente humana, podemos compreender de maneira mais completa o papel essencial que a caridade desempenha na busca da justiça. O meu predecessor, o Papa João Paulo II, estava convencido de que a justiça sozinha é insuficiente para instaurar relações autenticamente humanas e fraternas no seio da sociedade. "Em toda a gama das relações entre os homens" afirmava ele "[a justiça] deve passar, por assim dizer, por uma "correcção" notável, por aquele amor que, como proclama São Paulo, é "paciente" e "benigno" ou, por outras palavras, que comporta as características do amor misericordioso, tão essenciais para o Evangelho e para o Cristianismo" (Dives in misericordia, 14). Em suma, a caridade não só torna a justiça capaz de ser mais inventiva e de enfrentar novos desafios, mas inclusive inspira e purifica os esforços da humanidade em vista de alcançar a justiça autêntica e, deste modo, a construção de uma sociedade digna do homem.
Num momento em que, "superando as fronteiras das comunidades nacionais, a solicitude pelo próximo tende, assim, a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro" (Deus caritas est, 30 a), a relação intrínseca entre a caridade e a justiça tem necessidade de ser mais claramente compreendida e evidenciada. Ao manifestar a minha confiança de que os vossos debates durante estes dias serão fecundos a este propósito, gostaria de chamar brevemente a vossa atenção para três desafios específicos que se estão a apresentar ao mundo, desafios estes que, na minha opinião, só podem ser enfrentados mediante um compromisso firme em vantagem da justiça mais excelsa, que é inspirada pela caridade.
O primeiro diz respeito ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável. A comunidade internacional reconhece que os recursos do mundo são limitados e que todas as pessoas têm o dever de realizar políticas que tenham em vista salvaguardar o meio ambiente, a fim de impedir a destruição do capital natural, cujos frutos são necessários para o bem-estar da humanidade. Para enfrentar este desafio, é exigida uma abordagem interdisciplinar, como aquela que já estais a utilizar.
É também necessário ter a capacidade de avaliar e prever, averiguar as dinâmicas da transformação ambiental e do crescimento sustentável, bem como elaborar e aplicar soluções no plano internacional. É preciso prestar uma atenção particular ao facto de que os países mais pobres, provavelmente, terão que pagar o preço mais elevado pela deterioração ecológica. Na minha Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2007, recordei que "a destruição do meio ambiente, um uso impróprio ou egoísta do mesmo e a apropriação violenta dos recursos da terra... são fruto de um conceito desumano de desenvolvimento. Com efeito, um desenvolvimento que se limitasse ao aspecto técnico-económico, esquecendo a dimensão moral-religiosa, não seria um desenvolvimento humano integral e terminaria, ao ser unilateral, por incentivar as capacidades destruidoras do homem" (n. 9). Ao enfrentar os desafios apresentados pela tutela do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, somos chamados a promover e a "salvaguardar as condições morais para uma autêntica "ecologia humana"" (Centesimus annus, 38). Isto, por sua vez, exige um relacionamento responsável não somente com a criação, mas inclusive com o nosso próximo, de perto e de longe, no espaço e no tempo, mas também com o Criador.
Isto leva-nos ao segundo desafio, que compromete o nosso conceito da pessoa humana e, consequentemente, os nossos relacionamentos recíprocos. Se os seres humanos não forem considerados como pessoas, homem e mulher criados à imagem de Deus (cf. Gn 1, 26) e dotados de uma dignidade inviolável, será realmente difícil alcançar a justiça integral no mundo. Não obstante o reconhecimento dos direitos da pessoa, contido nas declarações internacionais e nos vários instrumentos legais, ainda é necessário realizar muito progresso a fim de que este reconhecimento venha a contribuir para a resolução de problemas mundiais, como o fosso crescente entre os países ricos e os países pobres; a distribuição e a atribuição desiguais dos recursos naturais e da riqueza produzida pela actividade humana; a tragédia da fome, da sede e da pobreza num planeta onde existe abundância de alimentos, de água e de prosperidade; os sofrimentos humanos dos refugiados e das pessoas deslocadas; as incessantes hostilidades em numerosas regiões do mundo; a carência de uma suficiente salvaguarda legal dos nascituros; a exploração das crianças; o tráfico internacional de seres humanos; e muitas outras injustiças graves.
Um terceiro desafio está relacionado com os valores do espírito. Coagidos pelas preocupações económicas, tendemos a esquecer que, diversamente dos bens materiais, os bens espirituais propriamente humanos se ampliam e se multiplicam quando são transmitidos: diversamente das coisas divisíveis, os bens espirituais como o conhecimento e a educação resultam ser indivisíveis, e quanto mais são compartilhados, tanto mais são possuídos. A globalização incrementou a interdependência entre os povos, com as suas diferentes tradições, religiões e sistemas de educação. Isto significa que os povos do mundo, em virtude de todas as suas diferenças, aprendem constantemente uns dos outros e entram em contactos mútuos cada vez mais profundos. Por isso, é ainda mais importante a necessidade de um diálogo que possa ajudar as pessoas a compreenderem as suas próprias tradições em relação às dos outros, a desenvolverem uma maior consciência diante dos desafios que se apresentam à sua identidade e, deste modo, a promoverem a compreensão e o reconhecimento dos valores humanos genuínos, no contexto de uma perspectiva intercultural. Em vista de enfrentar estes desafios, é urgentemente necessária uma justa igualdade de oportunidades, de forma especial no campo da educação e da transmissão do saber. Infelizmente a educação, de modo particular a nível primário, continua a ser dramaticamente insuficiente em numerosas regiões do mundo.
Para enfrentar tais desafios, somente o amor ao próximo pode inspirar em nós a justiça ao serviço da vida e a promoção da dignidade humana. Exclusivamente o amor no seio da família, alicerçado num homem e numa mulher criados à imagem de Deus, pode garantir a solidariedade intergeracional, que há-de transmitir o amor e a justiça às gerações vindouras. Só a caridade pode encorajar-nos a inserir a pessoa humana no fulcro da vida na sociedade e no cerne de um mundo globalizado, governado pela justiça.
Queridos Membros da Academia, é com estas considerações que vos animo ao dardes continuidade a este vosso importante trabalho. Sobre vós e os vossos entes queridos, invoco cordialmente as Bênçãos divinas da sabedoria, da alegria e da paz.
Vaticano, 28 de Abril de 2007.
PAPA BENTO XVI
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