Pe. Francisco Fauss
Democracia para “quase todos”
No nosso tempo, no mundo inteiro, estão num primeiro plano do debate político e dos comentários da mídia as questões controvertidas sobre a o valor da vida humana (desde a concepção até a morte natural), sobre a bioética na perspectiva dos atuais progressos da Ciência, sobre o significado da sexualidade e da família, etc.
Nos países democráticos, é reconhecido a todos – pessoas singulares ou entidades –, o direito de manifestar livremente a sua opinião, de sugerir soluções e de apresentá-las na mídia, ou por meio de representantes do povo, de projetos de lei, etc. É uma decorrência lógica dos princípios de liberdade e pluralismo, que são considerados essenciais para uma autêntica democracia.
Neste sentido, nem políticos nem mídia se atreveriam a negar ou restringir, por exemplo, o direito de o movimento gay expor e defender as suas reivindicações; nem o direito de ONGS ou movimentos ecológicos reivindicar, por exemplo, o reconhecimento de que os animais possuam os mesmos direitos que os seres humanos. Cada opinião é respeitada, por princípio, e aceita para debate civilizado, exceto... Sim, há uma exceção: a Igreja Católica. Quando a Igreja se manifesta sobre essas questões debatidas na atualidade, levanta-se imediatamente um clamor, que ecoa em grande parte da mídia, contra o seu direito de opinar, falar, sugerir, propor. Parece que só em relação à Igreja a liberdade e o pluralismo ideológico e político deixam de ter vigência.
Dirão que é porque a Igreja é “dogmática”. Mas a Igreja não manda no país, nem tem poder algum para fazê-lo numa sociedade civil laica, que ela não só aceita de bom grado mas defende como tal (se alguém ignora isso, ignora os ensinamentos da Igreja desde o Concílio Vaticano II). Mas a Igreja, que reúne em si um grupo amplamente majoritário de brasileiros, simplesmente acha, e com toda a razão, que a sua voz pode ser ouvida pelo menos com um respeito análogo ao que se presta a opiniões minoritárias, por vezes bem singulares, de grupos numericamente insignificantes.
Ora, a realidade é que, sem tréguas, uma gritaria desrespeitosa – e com freqüência ofensiva – pretende silenciar, abafar, excluir do debate essa voz. Esse processo de exclusão, de abolição, procede por quatro degraus, que coincidem num progressivo “banimento da verdade”, degraus que analisaremos brevemente a seguir.
O primeiro degrau
Como nos mais explosivos tempos do Iluminismo, mal a Igreja – por seus representantes legítimos – manifesta uma posição nessas questões debatidas, e a defende com argumentos que julga apropriados, começa a escutar-se a velha toada de “obscurantismo”, “atraso”, “antagonismo entre fé e ciência”, “religião inimiga do progresso” . A Igreja, segundo esses acusadores, estaria pretendendo opor-se aos progressos da ciência e ao bem da humanidade com a irracionalidade da fé e dos dogmas.
Um mínimo de objetividade – de honestidade – permitiria a qualquer pessoa de boa fé perceber que, nos temas de bioética hoje em debate, a Igreja jamais apresenta como soluções a serem aceitas pelos governantes teses baseadas na Sagrada Escritura, nas definições dos Concílios ou nos ensinamentos magisteriais dos Papas. Pelo contrário, baseia a sua defesa da vida e da dignidade do ser humano em argumentações científicas (isto é, em conclusões aceitas e defendidas por um número ponderável de cientistas atuais de primeira linha) e em argumentos racionais, compartilhados por filósofos pensadores totalmente alheios à religião.
Neste sentido, a posição da Igreja nessas questões (células-tronco embrionárias, aborto, eutanásia, casamento homossexual, etc.) alicerça-se fundamentalmente numa antropologia filosófica amadurecida na reflexão de grande número dos maiores pensadores da humanidade, do Ocidente e do Oriente, muitos deles pré-cristãos (Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicteto...), mentes brilhantes que, ao longo de milênios, também na era cristã, aprimoraram o pensamento humano e chegaram a formular conceitos enormemente “respeitáveis” de antropologia filosófica e de ética natural, um acervo de autêntica “sabedoria”, que enriqueceu e elevou a humanidade. Hoje, quer se queira quer não, a Igreja é a grande herdeira dessa sabedoria. Não é a “inimiga do progresso”, mas a “amiga da verdade e da vida”.
Por isso, toda a orquestração já automatizada – e sistemática –, que clama contra o “obscurantismo religioso” da Igreja, contra a “fé inimiga da ciência” é, simplesmente, uma impostura, uma mentira: um banimento da verdade.
O segundo degrau
Acontece, porém, que alguns, mais esclarecidos e serenos na apreciação das coisas, reconhecem que a posição da Igreja corresponde ao que acabamos de dizer. Mas – dizem – essa posição parte da base de que a razão é capaz de alcançar a verdade ou, por outra, de que existem verdades absolutas que a razão humana pode captar, esclarecer, aprofundar e levar às suas autênticas conseqüências. E isso seria falso.
A repulsa às posições da Igreja (bem como aos pensadores não-religiosos, de escolas filosóficas laicas, que coincidem com o “raciocínio” da filosofia perene), adota, pois, agora uma nova orientação: o postulado dogmático do agnosticismo, isto é, que não existe a verdade ou, se existe, é impossível que seja objetivamente conhecida. Como se sabe, na raiz dessa concepção da “verdade”, está a herança da filosofia do imanentismo, uma linha de pensamento, anti-metafísica por essência, que em seu processo evolutivo desembocou em Hegel e produziu, como filhos inesperados mas naturais, o marxismo-leninismo e o nazismo.
O agnosticismo, e a sua conseqüência necessária, o relativismo, “levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças de um ceticismo geral [...]. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto atual, da desconfiança na verdade [...]. Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião” (João Paulo II, Enc. Fides et ratio, 14/9/1998, n. 5).
É interessante frisar que, tanto a Encíclica Fides et ratio como o discutido discurso de Bento XVI na Universidade de Ratisbona, não são uma defesa da fé perante o perigo dos desvios da razão, mas, ao contrário, uma vigorosa defesa da razão como instrumento para captar a verdade, alertando para os perigos de uma fé que prescinda da colaboração estreita da razão.
O terceiro degrau
Sim. Dir-se-á que a razão é incapaz de atingir o ser e a verdade íntimas das coisas, e que, portanto, resta apenas, como base segura em que nos apoiarmos, o que a ciência experimental pode oferecer como “verdade materialmente comprovada”. Acontece, porém, que a Igreja apresenta cada vez mais argumentações científicas, altamente ponderáveis, na sua defesa da vida.
Chegando-se a este ponto, o banimento da verdade sente-se obrigado a dar mais um passo, que o exemplo citado a seguir ilustra bem.
Quando se começou a debater a questão das experiências com células-tronco embrionárias, o tema foi abordado num diálogo público numa TV de São Paulo. Uma especialistas em embriologia, que trabalhara com células-tronco adultas no Canadá, defendeu com argumentos científicos que a vida humana começa no próprio instante da concepção (neste sentido, são praticamente irrebatíveis os estudos do famoso geneticista francês Jerôme Léjeune). Para contradizer essa posição, outra pesquisadora, partidária do uso das células embrionárias, retrucou dizendo que, se bem era verdade que em seus livros acadêmicos ela dizia que a vida humana começa com a concepção, no caso concreto das células-tronco embrionárias esse argumento científico não seria válido: quem deveria determinar quando a vida humana começa é a lei. Como “prova” disso aduzia que, para efeitos de transplante de órgãos, as leis dos diversos países definem de formas diferentes a “morte clínica” que autoriza a extração de órgãos para transplante.
Esse mesmo argumento foi apresentado, há pouco, nas páginas de um dos principais jornais de São Paulo: o começo da vida humana não deve ser definido pela ciência, mas pela legislação de cada país. Mas, definida com base em quê? No consenso. Como não há referenciais absolutos (pois não há verdades absolutas), como já dizia João Paulo II, "tudo é convencional, tudo é negociável" (Encíclica Evangelium vitae, n. 20). Negada assim a existência de valores ou verdades objetivas e universais, o que resta? Só a vontade, o puro e simples querer. Toda a Encíclica Veritatis Splendor alerta sobre os perigos dessa tendência de fazer da liberdade a fonte da verdade, isto é, de só aceitar como "verdadeiro", em cada momento, o que livremente escolhe o indivíduo ou a "maioria" (Não lembram a história recente? O nazismo chegou o poder e o manteve – com todos os seus crimes horrendos contra a humanidade – , apoiado pela maioria).
O quarto degrau
Chamaremos quarto degrau a um prolongamento da reflexão sobre o terceiro degrau, sobre o relativismo absoluto que se traduz na pulverização de quaisquer valores morais.
Se a liberdade é a única fonte da verdade, isto é, se só se pode aceitar como verdadeiro em cada momento o que livremente escolhe a "maioria", nada impede que os legisladores – se calhar e houver interesses nacionais e internacionais poderosos envolvidos no assunto –, fiquem de acordo em aprovar que a vida começa quando a criança tem dois anos de idade e que, em conseqüência, até os dois anos, qualquer criança pode ser desmanchada para experiências científicas úteis para curar doenças e salvar vidas. Dirão que isso é extrapolar. Por que? Se não há mais valores objetivos e universais, se não existem mais referenciais éticos intocáveis, onde estão os limites do que se “pode” fazer? Só resta o puro arbítrio, nas mãos dos egoísmos do momento.
Durante os milênios em que os valores éticos eram tidos em conta, o que se “pode” fazer tinha um sentido moral: pode-se fazer o que é lícito moralmente; não se pode o que é ilícito. No atual relativismo radical, a palavra “pode” perdeu toda a conotação moral, e ficou reduzida ao que a ciência “pode fazer” (p.e., as experiências que, nos lager nazistas, eram praticada com seres humanos “podiam” ser feitas cientificamente), ou ao que a lei (meramente positiva e mutável, conforme os interesses de cada momento) autoriza fazer.
Sem valores nem referências de verdade e bem, o mundo – a humanidade – fica perdido no espaço como um astronave que saiu da órbita.
A Igreja, como seu Mestre, ama a verdade e o bem, ama o ser humano e a sua dignidade, ama a vida e, por isso, não se importa em ser incompreendida quando vai contra-corrente na defesa dos únicos valores que podem preservar a humanidade da desintegração moral. Talvez com isso impeça que algum dia possam ser erigidas na Praça dos Três Poderes as estátuas de Pilatos (O que é a verdade?) e do Dr. Mengele.
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