Por Daniel-Rops
A Bíblia, livro de história. Em que sentido esta fórmula é aceitável? E em que medida? – Essa é uma das questões que o renomado historiador Daniel-Rops pretende responder neste instigante artigo.
Regresso às fontes - esta será, sem dúvida, a característica que mais surpreenderá os que estudarem a história do Cristianismo da primeira metade do século XX. A Igreja de Cristo, vendo-se atacada por todos os lados pelos seus adversários, e ameaçada no seu próprio seio, sente a necessidade de reencontrar aquilo que possui de mais autêntico e fecundo, de alcançar a fonte profunda de água viva prometida à Samaritana, que dá vida eterna a quem a beber. Não seria difícil demonstrar que, tanto na liturgia, como na moral, ou na ação social, este regresso às fontes é a característica central de toda a evolução atual do Catolicismo. De modo ainda mais evidente e determinante se manifesta a mesma exigência noutro campo, onde já não se trata de comportamentos ou de atitudes, mas de adesão e de certeza: a verdade revelada.
Regresso à Sagrada Escritura. Um primeiro «período» se distingue nas grandes obras de Lagrange, Grandmaison, Lebreton que retiraram a Renan e aos seus discípulos o privilégio de estudar cientificamente Cristo e o Evangelho; seguiram-se a estes, muitíssimos autores de livros sobre Jesus, desde os mais poéticos, como os de um Papini ou de um Mauriac, até aos propriamente místicos, de um Karl Adam ou de um Guardini. Uma outra etapa se inicia agora: a que deve reconduzir os cristãos àquelas outras fontes, bem mais desconhecidas, que alimentaram durante séculos os prodigiosos comentadores da Sagrada Escritura, os Padres da Igreja, fontes que estamos a descobrir atualmente.
A ENCÍCLICA DIVINO AMANTE SPIRITU
O Antigo Testamento suscita hoje o mais vivo interesse, pelas suas imensas e inexauríveis riquezas, por demais tempo ignoradas, e das quais Claudel, que melhor do que ninguém as conheceu, dizia que fazem viver numa constante surpresa. As traduções da Bíblia, que se vão tornando cada vez mais numerosas e acessíveis, darão aos católicos possibilidades de chegar diretamente à Sagrada Escritura que até agora só os protestantes tinham. Tal é o fruto das instruções, que, com o seu conhecimento sobrenatural das necessidades fundamentais da Cristandade, deu o Papa Pio XII na luminosa encíclica Divino afflante Spiritu.
As circunstâncias que rodearam a sua publicação (30 de Setembro de 1943) não permitiram que este admirável documento tivesse a difusão merecida. Comparável aos grandes textos dos últimos Pontífices sobre as questões mais candentes da nossa época, constitui simultâneamente um apelo aos católicos para que leiam e estudem a Bíblia -base e, por vezes, chave do Evangelho - e uma nítida tomada de posição sobre o modo de interpretar o Antigo Testamento.
«Não há ninguém - escreve Pio XII - que não seja capaz de verificar quanto se modificaram, nos últimos cinquenta anos, as condições dos estudos bíblicos e das disciplinas auxiliares». O simples fato de reparar nestas novas «condições», isto é, na possibilidade de nos servirmos dos resultados obtidos pela exegese, pela crítica dos textos, pela arqueologia e pelas outras ciências anexas, levanta o problema de uma nova perspectiva. O renascimento dos estudos bíblicos está ligado em grande parte aos progressos da história no mesmo campo. Mas aqui se ergue imediatamente o problema das relações entre a Bíblia e a História.
A BÍBLIA, LIVRO HISTÓRICO
A Bíblia, livro de história. Em que sentido esta fórmula é aceitável? E em que medida? Uma primeira observação se impõe: a história aflora em muitíssimas páginas do Antigo Testamento, falando de certos acontecimentos, revelando certos ecos. Quem é que, ao ler as cenas dramáticas do Êxodo, em que Moisés e os seus fogem através do deserto, perseguidos pelos exércitos do Faraó, não terá perguntado a si próprio qual seria, dentre todos os nomes que as milenárias listas reais nos transmitiram, o nome do feroz perseguidor? Quem é que, ao escutar o lamento dos exilados, que se levanta no salmo «Junto dos rios de Babilônia», não sentiu, entre as sílabas mágicas deste nome, a lembrança daquela «civilização mortal», cujas ruínas se conservaram até aos nossos dias?
Mais ainda. Formalmente, o Antigo Testamento é uma história, uma narração, que possui «grosso modo» certa concatenação lógica, e da qual é legítimo recolher de vez em quando os elementos essenciais para melhor podermos apanhar-lhe os fios: «O que constitui o princípio unitário desta coleção de livros diversos, escreve Daniélou, é que eles são o arquivo de uma família, a de Abraão; contam-nos a história desta família durante os dois milênios que precederam a era cristã». É uma história, portanto. Mas, histórica? Eis a questão.
DISCORDÂNCIAS E INCONGRUÊNCIAS HISTÓRICAS
Quem pretendesse tratar a Sagrada Escritura do Antigo Testamento como se fosse um livro de história moderna, não experimentaria senão desilusões. Um livro de história procura ressuscitar em nós o passado, durante um certo período, na sua integridade, com as suas cores locais, com os seus dados psicológicos; e vai analisando ainda se as causas e os efeitos dos acontecimentos concordam uns com os outros. Ora os relatores bíblicos estavam bem longe de tais intenções. No seu conjunto, o Antigo Testamento deixa entrever enormes lacunas. Do período que decorre desde os Patriarcas até Moisés, isto é, desde 1700 até 1300, nada se diz; os duzentos anos da época dos Juízes mal estão acenados; encontramos poucas alusões acerca dos cinquenta anos do Exílio; e falta-nos totalmente o período que vai de Neemias aos Macabeus, e das guerras macabeias ao nascimento de Cristo, cuja reconstrução só é possível através do historiador leigo Flávio Josefo. Parece que falta a mínima idéia de composição, que os narradores não estabelecem qualquer sincronismo entre os sucessos bíblicos e os da história profana (por exemplo, da egípcia), como nós desejaríamos; que a sua cronologia é incompleta e aproximativa...
Coisa mais grave ainda: em diversas passagens notam-se facilmente estranhas discordâncias. Judite, a corajosa heroína que, com o risco da própria honra e da própria vida, vai à tenda para matar o chefe inimigo, deveria ter atacado Nabucodonosor, «o Assírio», mas o general que ela matou é conhecido pelo nome de Holofernes, nome de um comandante cem anos posterior. Os «livros de Daniel» contém também coisas estranhas do mesmo gênero: Baltazar não sucedeu a Nabucodonosor, que nunca esteve louco, enquanto que um dos seus sucessores o foi; «Dário, o Medo», vencedor de Babilônia, é desconhecido, e não pode ser o grande Dario, que era persa e reinou desde 522 até 485, enquanto que Babilônia caiu em 539. E assim sucessivamente.
A BÍBLIA, LIVRO INSPIRADO
Levanta-se aqui uma pergunta. A Bíblia, para todo o crente, seja ele israelita ou cristão, é um livro inspirado. É a palavra escrita de Deus. S. Paulo escreveu a Timóteo que «toda a Escritura divinamente inspirada é útil para ensinar, repreender e corrigir». A segunda Epístola de S. Pedro afirma, a propósito dos relatores bíblicos: «Foi sob o impulso do Espírito Santo que estes homens falaram em nome de Deus». Toda a tradição cristã, desde os primeiros Padres até aos últimos Papas, mantém intangível a mesma afirmação. O Concílio de Trento (8 de Abril de 1546), declarou «anátema quem quer que não aceite como sagrados e canônicos os Livros inteiros, com todas as suas partes, tais e quais sempre têm sido lidos na Igreja». Leão XIII, Bento XV, Pio XII, nas suas encíclicas, não fizeram senão retomar estas fórmulas. «O que o autor afirma, enuncia, insinua - declara a última encíclica - deve ser considerado como afirmado e enunciado pelo Espírito Santo». Seria vão negar que existe aí alguma dificuldade.
A INERRÂNCIA DA BÍBLIA
Um texto inspirado por Deus e simultaneamente errado, é coisa contraditória. A resposta é dada pela Igreja sob a forma da chamada doutrina da Inerrância da Bíblia, que S. E. Monsenhor Weber, Bispo de Estrasburgo, resume assim: «A inspiração dos santos livros não pode ser limitada a certas partes ou a alguns elementos; não só não se encontra efetivamente qualquer erro na Bíblia, mas também não pode existir erro no que Deus nos diz por meio dos escritores sagrados». Mas pode resolver-se um eventual conflito entre a Bíblia e a Ciência, negando-o sem quaisquer reservas?
BÍBLIA E CIÊNCIA
Noutros campos em que se põe o mesmo problema, como, por exemplo, na história natural e na cosmologia, procurou-se fugir ao dilema por meio do concordismo, doutrina que estava de moda no século XIX. Era aplicada para demonstrar que o desacordo entre os textos bíblicos e as hipóteses científicas do tempo era desprezível; que os autores sagrados tinham previsto todas as descobertas modernas. Marcelo de Serres, em 1830, via em Moisés o precursor de Newton, e nos livros do Génesis as bases dos tratados de física e de astronomia. Assim se vêem certos exegetas improvisados lançarem-se no seguimento das teorias então de moda: ontem, Newton, hoje, Laplace, amanhã?... E a verdadeira exegese é que paga este acordo tão arriscado.
Para a história, a doutrina concordista teve menos sucesso. Talvez porque os dados históricos eram pouco conhecidos ainda; talvez porque um documento histórico se deixa violentar menos facilmente por uma hipótese sobre as origens do homem, ou sobre a estrutura do mundo.
O QUE SIGNIFICA «TEXTO INSPIRADO»
É sobre o significado da palavra Inspiração que precisamos de parar para sairmos do aparente conflito.
«A inspiração - disse Leão XIII na encíclica Providentissimus Deus - é um impulso sobrenatural, com o qual o Espírito Santo estimulou e amparou os escritores sagrados, e os guiou, enquanto escreviam, de tal modo que estes transmitiam fielmente e exprimiam com uma verdade infalível tudo o que Deus decidia que escrevessem».
Num texto deste gênero cada palavra é bem pesada. Paremos numa delas: impulso. Esta sábia e perspicaz definição respeita, na elaboração do texto sacro, o posto que compete por um lado, á inteligência e à vontade humana, e, por outro, à autoridade divina. No seu opúsculo «A Bíblia, livro de Deus, livro do homem», já por nós citado, Mons. Weber sublinha esta divisão numa página tão clara, que vale a pena transcrevê-la. Baseando-se na doutrina de S. Tomás de Aquino, do «Comentário da Inspiração dos Livros Sagrados», ele diz:
«Sim, Deus é o autor da Bíblia, o autor responsável, o autor principal. Mas esta Bíblia, não a escreveu Ele com mão invisível, como o que escreveu nos muros do palácio do rei Baltazar (Dan. 5); não a ditou mecânicamente a meros escribas, seus secretários. As pinturas que nos mostram um Anjo murmurando ao ouvido de S. Mateus o texto do seu Evangelho, podem ser muito belas e ao mesmo tempo simbólicas, mas arriscam-se a dar-nos uma falsa ideia sobre o fenómeno da inspiração. O autor sagrado não é de nenhuma forma, como era a pitonisa de Delfos, um ser que entra em transe, que perde a consciência, que abandona a sua personalidade, que se torna um simples instrumento do Espírito Santo, um instrumento material, cego e inerte. É um instrumento, estamos de acordo, mas é um instrumento que ajuda a aperfeiçoar a obra; é também uma causa (um quadro é devido ao gênio do pintor, mas também ao seu pincel), tal como uma estátua fica marcada pelo cinzel que o escultor utilizou. No caso da inspiração divina, o instrumento empregado é um instrumento humano, com faculdades humanas, inteligentes, imaginativas, e assim se manterá ao serviço de Deus. Conservará a sua personalidade, as suas particularidades, os seus métodos, o seu estilo, a sua linguagem. Deus toma-o tal como ele é, para fazer-lhe dizer aquilo que quer que diga, mas levá-lo-á a falar na sua maneira humana. Assiste-o para que diga eficazmente, sem erro, o que o autor responsável quer que ele exprima. Mas o texto não ficará necessariamente sem erros de ortografia ou de gramática, se o escritor se exprime de maneira um tanto primitiva; nem ficará sempre sem erros de forma, pelo menos para nós, ocidentais. A causa divina exclui todo o erro no ensinamento da verdade, seja ela qual for; mas não exige a perfeição literária; nem pretende do escritor sagrado uma ciência maior do que a dos seus contemporâneos: as lacunas não são erros».
OS VÁRIOS GÊNEROS LITERÁRIOS
Não é suficiente ter em conta os temperamentos dos autores sagrados e os seus dotes pessoais, para explicar o que no Antigo Testamento deixa desconfiado e cético um historiador agnóstico. Deve ser adotado um outro ponto de vista, sobre o qual a grande encíclica de Pio XII lançou toda a luz desejada: o da indispensável distinção entre os vários gêneros literários.
«Nas palavras e nos escritos dos antigos escritores orientais o sentido literal não aparece frequentemente com tanta evidência como nos escritores do nosso tempo. O que quiseram dizer com as suas palavras, não pode determinar-se pelas simples leis da gramática ou da filologia. É forçosamente necessário que o exegeta recue de qualquer modo aos remotos séculos do Oriente, de maneira que, com a ajuda da história, da arqueologia, da etnologia e das outras ciências, possa reconhecer qual gênero literário os autores daquele antigo tempo quiseram empregar e empregaram realmente. Os Orientais, com efeito, para exprimirem o que tinham em mente, não usaram sempre formas e maneiras de dizer idênticas as que hoje em dia usamos, mas sim aquelas que eram usadas pelos homens do seu tempo e dos seus países. O exegeta não pode determinar a priori quais foram; somente através de um estudo atento das antigas literaturas do Oriente o poderá fazer. Ora, nestes últimos anos, tal estudo, mais atento e mais diligente, mostrou mais claramente quais tenham sido as maneiras de dizer usadas naqueles tempos antigos, tanto nas descrições poéticas, como na exposição das leis e das normas de vida, ou na narração dos fatos e dos acontecimentos históricos».
Sublinhamos as últimas palavras, muito esclarecedoras. Se se admitir que certos livros como o de Judite, de Jonas, ou de Ester, pertencem, não a um gênero correspondente ao que nós hoje chamamos «história objetiva», mas sim a uma espécie de transposição histórica, orientada para a apologia (o que os Hebreus chamam midrash), torna-se evidente que caem por terra as objeções nascidas das aparentes inexatidões. O substrato histórico é verdadeiro, como o da Canção de Rolando, mas está utilizado dum modo diverso do nosso. «Muitas vezes - recorda ainda Pio XII -, quando se deleitam com a objeção de que os autores sagrados se afastaram da fidelidade histórica, ou de que nos transmitiram qualquer coisa com pouca exatidão, verifica-se que se trata simplesmente de maneiras de dizer, ou de contar, ao gosto dos antigos, usadas correntemente por esses homens nas suas recíprocas relações, de uso comum. A equidade exige, portanto, que quando se encontram estas expressões na linguagem divina, não se lhes chamem erros, como não o dizemos das nossas expressões de uso corrente.
A INTENÇÃO DOS REDATORES BÍBLICOS
Impõe-se finalmente uma última observação: a de que a intenção dos escritores bíblicos não era comparável a dos nossos historiadores atuais. Afirmar deles - «não são historiadores», não significa quase nada, e uma fórmula precipitada como esta conduz facilmente a erros, parecendo subentender que não escreveram senão fábulas. Para eles, um livro «histórico» é, acima de tudo, uma narração pedagógica; a tese teológica é o que lhe dá unidade e interesse. Sendo realmente históricos, no sentido de que se dirigem a verdade, mas a uma verdade mais interior e muitas vezes mais flagrante, eles não concebem história que não seja teocêntrica. O que querem é mostrar o rasto da ação divina nos acontecimentos, e escolhem os fatos de acordo com tal propósito.
O ANTAGONISMO DA BÍBLIA COM A HISTÓRIA É APARENTE
Uma vez admitidos estes princípios, anula-se o aparente antagonismo entre a Bíblia e a História. Para se compreender exatamente em que sentido e em que medida a Bíblia é um livro histórico, é preciso pensar que, embora tenha sido inspirada, foi escrita por homens; que estes homens se exprimiam dum modo e numa linguagem muito diferente da nossa; enfim, que possuíam um propósito muito bem definido, mas que não era «histórico» no sentido moderno da palavra, um propósito estreitamente ligado a sua fé. E assim, repetimos, para podermos formular um reto juízo, é necessário conhecer os homens que escreveram o texto sagrado, os seus heróis, os seus costumes, instituições e convicções, e os dos outros povos com quem entraram em contato. E é aqui que a história, tal como a entendemos, encontra novamente os seus direitos e a sua utilidade.
A FUNÇÃO DA HISTÓRIA
Além do imenso contributo dado nestes últimos anos pela arqueologia, que, bem longe de relegar a Bíblia para o bazar das lendas, lhe confirmou em conjunto os dados principais, e sobre a qual seria longo demais falar aqui, a função da história esgotar-se-á no esclarecimento desta ou daquela parte do texto sagrado, na colocação em perspectiva exata de algum episódio, na compreensão de uma determinada atitude moral ou religiosa à luz de critérios diferentes dos nossos?
Para nos convencermos disso basta recordar as intenções que moveram os escritores bíblicos: demonstrar a ação de Deus no desenvolvimento dos tempos, especialmente em favor do Povo escolhido, depositário da sua mensagem. Objetivamente, qualquer estudo do Antigo Testamento que não tiver em conta esta vontade apologética, será incompleto; mas não se pode falar da Bíblia como livro de história, sem pensar ao mesmo tempo que é também um livro de oração: o livro da Palavara de Deus.
O SIMBOLISMO DA BÍBLIA
Não se deve portanto perder de vista que todo o texto bíblíco é escrito simultâneamente em dois planos diversos: um é aquele em que os acontecimentos se desenrolam com os seus caracteres concretos, tangíveis; o outro é aquele em que se manifesta a intenção divina, cujos arcanos nem sempre são explicáveis, mas que, no caso de o serem, ilumina os destinos humanos através dos símbolos e das figuras.
Se se considera unicamente um dos dois planos, atraiçoa-se o próprio espírito da Bíblia. Claudel, nas suas duas cartas ao «Deus vivo», e Daniélou na sua «Exegese e Dogma», têm razão para se erguerem contra uma exposição da Escritura que apresentasse sistematicamente como não válido o seu sentido espiritual; mas, por outro lado, prestar pouca atenção ao sentido literal é desconhecer também um dos elementos fundamentais da Bíblia: o seu carácter autêntico de documento.
De resto, a encíclica Divino afflante mostrou perfeitamente que os dois pontos de vista são igualmente valiosos, e que não se deve considerar um maior do que o outro. O «sentido total da Escritura», segundo a expressão de Tamisier, não pode ser penetrado senão por uma investigação simultânea, sintética, do sentido espiritual através do sentido literal.
Deixamos de lado, por estar fora de lugar neste momento, o comentário simbólico dos fatos, tão usado pelos Padres da Igreja, fatos a que o Novo Testamento não concede nenhum significado profético. Este gênero de interpretação, aliás, é um conjunto de riquezas, e de riquezas que a liturgia católica soube recolher. Reconhecer - como se faz desde a mais antiga tradição da Igreja - a prefiguração do sacrifício do Calvário no sacrifício de Abraão; comparar a passagem miraculosa das águas do Mar Vermelho a passagem através duma outra água que dá a salvação, a água do batismo - tudo isto é uma visão em que se descobrem profundas realidades, sem dúvida mais verdadeiras do que aquelas em que se entretém a dialética materialista, mas que, apesar de possuírem o seu valor para o místico, não entram no quadro da história. De qualquer maneira, não se pode dizer - mesmo só dum ponto de vista estritamente histórico - que não seja possível extrair da Bíblia lições espirituais; pelo contrário, quanto mais se estudam os textos sagrados, tanto mais se verifica que surge naturalmente da interpretação histórica uma interpretação autenticamente espiritual.
São os próprios redatores bíblicos a declararem-nos o princípio de que os fatos por eles narrados estão cheios de significados transcendentes. Nada se compreende da Bíblia sem a visão profética, que não deve relacionar-se exclusivamente com os personagens extraordinários chamados «profetas», mas abrange tudo o que é indicado por Deus. O velho Jacob, abençoando os filhos antes de morrer, é um profeta, tal como David o é, ao compor os salmos.
O tema da Aliança, apresentado desde o início do desenvolvimento histórico, retomado e confirmado continuamente, é como que a espinha dorsal em que se baseiam os acontecimentos narrados no Livro, tema que a pouco e pouco vai sendo substituído, e superado ao mesmo tempo, o tema do Messias, com as suas grandiosas iluminações. Foi por Deus ter estabelecido uma aliança com o seu povo, porque a sua Palavra não poderá ser vã, porque o seu Sacerdote há-de vir para cumprir as suas ordens e estabelecer o seu reino, que os acontecimentos foram como foram, e não de outra maneira. Esta convicção é o substracto de todo o Antigo Testamento, e perdê-la de vista significa não compreender nada dos textos nem dos fatos.
Objetivamente falando, tal convicção confirma-se? Bem sabemos que os historiadores procuram não dar a história um sentido transcendente, mas, se existe um caso em que o próprio mistério se impõe a mente como uma evidência, é precisamente o dos predestinados do Povo Escolhido, herói e redator do Livro!
A HISTÓRIA DE ISRAEL
A história de Israel, excluindo mesmo qualquer interpretação sobrenatural, dá nitidamente a impressão de não ser «uma história como as outras», de obedecer a tenções determinadas. Entre todos os outros povos da, antiguidade, só ele sobreviveu. Resistiu, durante milênios, a todas as forças adversas que sobre ele se lançaram. Que resta da Babilênia, de Assur, do império persa ou do de Alexandre? Roma e a Grécia não são mais que ruínas, tal como o Egito, com as suas múmias e os seus sepulcros. Em todo o Oriente, este minúsculo povo - cujo território equivale apenas a Bretanha, cuja população total, no tempo do máximo esplendor, sob Salomão, não contava mais do que um milhão de almas - é o único a escapar a uma lei que parece fatal.
Sempre podemos afirmar que o fato de este povo indestrutível ter sido investido de uma missão sobrenatural e ter trazido na fronte o sinal do único, é simples coincidência; mas então, é preciso explicar a sua assombrosa indestrutibilidade.
O DRAMA DE ISRAEL
Não é somente pela sua sobrevivência que Israel, o povo da Bíblia, se apresenta na história como uma demonstração viva do poder do Sobrenatural sobre o natural; é também pelo seu sofrimento, porque, se pôde resistir as forças inimigas, foi a preço das dores e do sangue derramado. O mistério do sofrimento é também o fulcro do Antigo Testamento, estreitamente ligado ao da descoberta progressiva da Mensagem e da Verdade. A dialética da Bíblia obedece a três períodos clássicos. A um povo ainda muito apegado as coisas terrenas, Deus promete, primeiro que tudo, alegrias terrestres, de que são símbolos «o leite e o mel» da Terra prometida; depois retira-lhas, e mergulha-os no desconforto; e finalmente leva-o a descoberta dos bens espirituais, de que Israel foi embaixador no mundo. Em cada estágio da sua história, o Povo escolhido encontra a mesma lei: a lei da eficácia do sofrimento. Nesta ascensão por etapas, conduzindo a alma de Israel a uma vizinhança sempre maior da luz e da ciência inefável, a história assumiu uma função determinante: ao verificá-lo, permanece no seu plano.
Mas tal ascensão não terminou ainda. A última revelação não foi Israel a anunciá-la. O Antigo Testamento prepara, sustenta o Novo, mas para conseguir o seu sentido definitivo, este último precisa do primeiro. O Messias, cujo advento tinha enchido de esperança a alma de Israel, e que ao longo dos séculos se havia delineado através de textos só comprováveis pela sua realização, o Messias fora rejeitado pelo Povo Escolhido. Tinha de ser assim, por uma espécie de necessidade interna, de lógica imperiosa que pertence a história. De fato, contrariamente ao que os antisemitas de todas as raças pensam, não foi por razões ignóbeis que os chefes religiosos da comunidade israelita tiveram de rejeitar o Messias na pessoa de Jesus.
A promessa duma reintegração de Israel na glória, repetida pelos textos messiânicos, fora uma das idéias principais que permitiram viver este povo humilhado e não desesperar durante séculos. A lei, com as suas exigências precisas, o seu texto sacrossanto, as suas minuciosas observâncias, foi o bastião que permitiu aos judeus não se deixarem contaminar por todas as maléficas influências do Egito, da Mesopotâmia e da Grécia.
É preciso não nos esquecermos de como se tornou vitalmente necessário para eles este orgulhoso exclusivismo, de que tantas vezes foi acusado o Povo eleito, este tipo de «racismo» que praticam, e que, por outro lado, é corrigido na Bíblia por várias textos universalistas. Mais ainda: misturar-se com os outros povos significava apostasia, traição a Deus. Sendo o que foi, ensinando o que ensinou, Jesus, o Messias, não podia senão provocar o drama, que para terminar precisava da sua morte. Mas, se acreditamos que esta morte possui um sentido mais profundo do que o de um simples acontecimento trágico, por ser o meio da Redenção, o mistério histórico do Povo escolhido assume o seu verdadeiro sentido.
O Antigo Testamento olhava para o sacrifício do Calvário, que lhe confere o seu significado. E a lógica necessidade deste sacrifício tornou-se clara pelo próprio desenvolvimento dos poetas bíblicos.
Como não discernir aqui a ação de uma vontade misteriosa, superior a qualquer determinação humana - aquela mesma que dá o sentido e a transcendência a toda a história?
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