sexta-feira, 8 de outubro de 2010

FIDELINO DE FIGUEIREDO E JONATHAS SERRANO.

Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica,
Rio de Janeiro: vol. 2 no.4, maio-agosto 2010, p. 39-66.
FIDELINO DE FIGUEIREDO E JONATHAS SERRANO.
PENSAMENTO CATÓLICO E RADICALIZAÇÃO POLÍTICA NA DÉCADA DE 1930
ALGUMAS REFLEXÕES1
FIDELINO DE FIGUEIREDO Y JONATHAS SERRANO. PENSAMIENTO CATÓLICO
Y RADICALIZACIÓN POLÍTICA EN LA DÉCADA DE 1930
ALGUNAS REFLEXIONES
FIDELINO DE FIGUEIREDO AND JONATHAS SERRANO: SOME REFLECTIONS
ON CATHOLIC THOUGHT AND POLITICAL RADICALIZATION IN THE 1930s
FIDELINO DE FIGUEIREDO ET JONATHAS SERRANO. LA PENSÉE
CATHOLIQUE ET LA RADICALISATION POLITIQUE DANS LES ANNÉES 1930
QUELQUES RÉFLEXIONS
Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva
RESUMO
Neste artigo analisamos os conflitos que caracterizaram o contexto de radicalização
política no Brasil na década de 1930 e seus reflexos subjetivos nos intelectuais ligados
ao pensamento católico. Partimos dos diálogos intelectuais entre Fidelino de
Figueiredo, historiador e crítico literário português que viveu no Brasil entre 1938 e
1951, e Jonathas Serrano, professor e autor de manuais de história no mesmo período.
Diálogos que exemplificam o sentimento de perplexidade e hesitação que envolveu
estes intelectuais. Como fontes, utilizamos as cartas enviadas por Serrano a Fidelino
nas décadas de 1920 e 1930.
1 O tema deste artigo se insere na pesquisa de doutorado atualmente desenvolvida pela autora no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Nela são analisadas, por
meio de diálogos intelectuais, as relações entre antigas colônias e metrópoles no final do século XIX e
início do século XX a partir dos casos de Brasil e Portugal e Argentina e Espanha. O projeto intitula-se
Diálogos Intelectuais entre dois lados do Atlântico – Práticas Historiográficas, Circulação de Ideias e
Apropriação Cultural. Reconhecimento e Legitimidade (1870-1946).
40
Palavras-chave: Intelectuais, pensamento católico, radicalização política.
RESUMEN
En este artículo analizamos los conflictos que caracterizaron el contexto de
radicalización política en Brasil en la década de 1930 y sus reflejos subjetivos en los
intelectuales relacionados al pensamiento católico. Partimos de los diálogos
intelectuales entre Fidelino de Figueiredo, historiador y crítico literario portugués que
vivió en Brasil entre 1938 y 1951, y Jonathas Serrano, profesor y autor de manuales de
historia en el mismo período. Diálogos que ejemplifican el sentimiento de perplejidad y
hesitación que envolvió a estos intelectuales. Como fuentes, utilizamos las cartas
enviadas por Serrano a Fidelino en las décadas de 1920 y 1930.
Palabras-clave: Intelectuales, pensamiento católico y radicalización política.
ABSTRACT
This paper analyzes the conflicts characterizing the context of political radicalization in
Brazil, in the 1930s, and their subjective consequences on intellectuals linked to
Catholic thought. Grounded on the intellectual dialogues between Fidelino de
Figueiredo, a Portuguese historian and literary critic who lived in Brazil between 1938
and 1951, and Jonathas Serrano, a professor and author of history manuals from that
same period, it shows the perplexity and hesitation feelings of both intellectuals. Its
sources include the letters Serrano sent to Fidelino in the 1920s and 1930s.
Key words: Intellectuals, Catholic thought, political radicalization.
RÉSUMÉ
Dans cet article, nous analysons les conflits qui caractérisent le contexte de
radicalisation politique observé au cours des années 1930 au Brésil, ainsi que leurs
effets subjectifs sur les intellectuels liés au courant de pensée catholique. Nous partons
des dialogues intellectuels tenus par Fidelino de Figueiredo, historien et critique
littéraire portugais qui a vécu au Brésil de 1938 à 1951, et Jonathas Serrano,
professeur et auteur de manuels d’histoire à la même époque. Il s’agit de dialogues
ayant trait au sentiment de perplexité et d’hésitation qui a envahi ces intellectuels. En ce
qui concerne les sources, nous avons puisé dans leur correspondance des années
1920 et 1930.
41
Mots-clés : Intellectuels, pensée catholique, radicalisation politique.
Jonathas Serrano e Fidelino de Figueiredo se corresponderam entre as décadas
de 1920 e 1930. São poucas as cartas disponíveis, cinco no total – uma no ano de
1921 e quatro entre 1936 e 1940 –, mas a partir delas é possível observar o diálogo
entre intelectuais relacionados ao estudo da história e a uma rede de sociabilidade
católica que, em especial na década de 1930, se via diante da radicalização política
acentuada no Brasil. Serrano, morto em 1944, aos 89 anos, foi formado em direito,
membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), professor do Colégio
Pedro II e autor de manuais de ensino de história, com os quais buscava conciliar a
história nacional à história universal; mais especificamente procurava uma versão da
história favorável à Igreja Católica e suas ações desde o período medieval.
Em seu livro Epitome de História Universal, publicado pela primeira vez em 1912
e seguido de 23 reedições até a última, em 1954, Serrano conjuga o ensino da história
aos princípios católicos, pauta que irá fortalecer em seu pensamento durante a década
de 1930, quando buscará conciliar esses mesmos princípios à pedagogia da Escola
Nova, que ganha expressão na década de 1920. Em prefácio já presente no original de
1912, Escragnolle Doria se refere a Serrano como “profunda e sinceramente católico”2
e complementa dizendo que “na escola, na academia, na imprensa, Serrano mantém
sempre a fé católica patente, cortês, profunda e apostolar”3. Assim, num contexto de
ruptura entre o Estado e a Igreja no Brasil, após a proclamação da República, e diante
da possibilidade de laicização do ensino, Serrano, quiçá por militância, escreve um livro
no qual relaciona a história de diferentes sociedades ao longo do tempo de forma a
construir uma síntese. Nela, ele se inspira em Bossuet, para, em suas palavras,
“proporcionar aos discípulos o indispensável conhecimento dos fatos mais notáveis e
da marcha geral da civilização”4.
Adotado, ainda na década de 1950, no Colégio Pedro II, na Escola Normal e em
vários estabelecimentos do Rio de Janeiro, o livro representa, em nossa opinião, a
tentativa de um historiador ligado à Igreja, em meio aos conflitos enfrentados pelos
católicos na conjuntura republicana positivista, de adaptar-se sem deixar de impor seu
2 Serrano, Jonathas (1950). Epitome de História Universal. 23ª edição, Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves. Prefácio de Escragnolle Doria, p. 7.
3 Ibidem, p. 8.
4 Ibidem, p. 13.
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pensamento. Talvez seja possível dizer que se processou em Serrano uma espécie de
acomodação de ideias em meio às transformações políticas e históricas então vividas.
Diante da impossibilidade de recusa completa das ideias em ascensão, era preciso
impor outras que valorizassem a história e o papel da Igreja em diferentes sociedades.
Era preciso estudar “fatos sociais”5 e, com eles, transmitir valores morais oriundos do
passado.
Na definição de Jonathas Serrano, a “História é a ciência que tem por objeto o
estudo da origem e desenvolvimento das sociedades humanas, dos fatos mais
importantes nas mesmas sucedidos, e das relações entre êles existentes”. Mais ainda:
“‘Mestra da vida’ tal a denominou Cícero, procurando sintetizar numa frase o alto valor
moral das lições que nos oferece o passado do homem”6. Aqui Serrano não fala na
construção do futuro; retoma uma visão de história mestra da vida ainda da
Antiguidade para defender o valor pedagógico nela presente.
Buscando a relação entre diferentes povos a fim de escrever uma história
universal e encontrar ensinamentos que possam ser passados aos alunos, o autor
percorre um largo período da humanidade. Parte da Antiguidade Oriental (passando
pelos hebreus, fenícios e chineses, por exemplo) e da Antiguidade Grega e Romana;
percorre a Idade Média e a Idade Moderna, períodos privilegiados em que enfatiza o
papel da Igreja na Europa e na formação do chamado Novo Mundo, e chega à História
Contemporânea – nas primeiras edições, até a passagem do século XIX para o XX;
mas, nas edições da década de 1950, o conteúdo do livro já alcança a Segunda
Grande Guerra, demonstrando que, além de reeditado, ele fora também revisto e
complementado.
Embora adote essa divisão da história em quatro partes (Antiga, Medieval,
Moderna e Contemporânea), Serrano afirma que ela poderia ser dividida em apenas
duas partes: Antiga e Moderna. O marco de passagem entre elas seria o nascimento
de Jesus Cristo. Afinal, para ele, “o Cristianismo foi a maior transformação social de
todos os tempos”7. Afirmação que no contexto da década de 1910 possuía significado
marcante, já que Serrano reivindica para a Igreja um papel político e social da qual
vinha sendo destituída pelas autoridades republicanas.
Em introdução na qual apresenta algumas discussões teóricas sobre a escrita da
história, Serrano defende uma visão representativa da estrutura do próprio texto. Para
5 Ibidem, p. 15.
6 Ibidem.
7 Ibidem, p. 18.
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ele, os aspectos relacionados a apenas um indivíduo não são interessantes para a
história, só alcançando valor histórico caso suas ações sirvam para a compreensão de
um acontecimento mais amplo. As histórias individuais apenas possuiriam sentido
quando relacionadas e parte de um processo encadeado e marcado por causas e
consequências. Para Serrano,
“os fatos que só dizem respeito à vida privada de um indivíduo, não tendo
consideráveis consequências sociais, pouco interessam, ou mesmo nada, à
história geral. Podem ser objeto de biografias, memórias, etc; mas só terão
valor histórico na proporção em que servirem à compreensão de um fato
histórico propriamente dito, isto é, social. Não basta, porém, conhecer os
nomes das personalidades, reis, generais, etc.; nem apenas as datas dos fatos.
A história não é só nomenclatura, nem simples cronologia. E’, principalmente, o
encadeamento dos fatos, a concatenação das causas e das conseqüências,
para a investigação das leis históricas. Cumpre estudar um fato, portanto,
atendendo às causas que o produziram e às conseqüências que dele
resultaram.”8
Serrano complementa citando Bossuet acerca da importância da história:
“A história é como que o reservatório da humanidade, a quase intelectual soma
de experiência acumulada no longo evolver da nossa espécie. Estudar bem a
história é ‘abranger com o pensamento tudo que há de grande entre os
homens, e segurar, por assim dizer, o fio de todas as questões do Universo’
(Bossuet, Discours sur l’histoire universelle, p. 22).”9
Assim, explicitamente vinculado à leitura da história de Bossuet, condicionada
pela providência divina, Serrano confere a Deus e à Igreja a responsabilidade pela
condução e transformação dos rumos da história. Isso ocorrendo de uma forma
unívoca, que relaciona todos os homens e formações sociais. Daí a ênfase no
cristianismo como divisor de águas na história e a defesa da história universal.
Lembramos que Bossuet, que fora refutado pelo racionalismo de Voltaire, foi
também o autor que inspirou Joaquim Nabuco e outros intelectuais católicos no final do
século XIX no Brasil. O teólogo e bispo francês do século XVII defendia o poder como
oriundo de Deus, contribuindo para fundamentar as teorias absolutistas. Portanto, para
combater a força do positivismo no poder político e no ensino da história caberia bem
ao contexto republicano a sua releitura e apropriação.
Em Epitome de História Universal são vários os exemplos em que o autor exalta
a Igreja Católica. Segundo ele, seu papel teria sido “importantíssimo”10 durante a Idade
Média, pois “representou o princípio da ordem, salvou os restos da civilização e
esforçou-se por suavizar a brutalidade dos costumes, auxiliando os fracos e os
8 Ibidem, p. 16.
9 Ibidem, p. 16.
10 Ibidem, p. 210.
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pequenos”11. A Inquisição teria aplicado penas leves, como peregrinações e a
colocação de cruzes nas vestes, não condenando nunca diretamente à morte. Isso
quem fazia era o braço secular, pois os “tribunais que são obra dos papas, realizavam
verdadeiro progresso no exercício da justiça”12. Eles teriam diminuído o número de
execuções e de condenações à morte.
Outro exemplo interessante seriam as cruzadas que, segundo ele, eram
consequência da intolerância dos turcos contra os católicos, além de representarem o
espírito religioso e aventureiro da época. José de Anchieta, por sua vez, seria um poeta
que se utilizou de seus talentos para mostrar aos indígenas a religião. Para Serrano,
“não há palavras para exaltar-lhe o mérito excepcional”13. Quanto às reformas
religiosas, a protestante teria dividido os indivíduos e se demonstrado intolerante,
enquanto a contra-reforma católica “caracterizou-se por manter sempre a união de
todos os fiéis na Igreja, pela obediência ao papa”14.
Para finalizar o livro, Serrano escreve que a história revela as conquistas e
ideias dos homens ao longo do tempo. Mas, sobretudo, ela trataria de progresso. Não
um progresso constante e sem recuos, tal como o percebiam os positivistas. A
representação da história em linha reta e contínua seria um erro. O que há é uma
“evolução circular”15. A história se repetiria, mas não exatamente como fora antes; o
movimento seria progressivo, mas com repetições e oscilações; num movimento
helicoidal no qual “a curva não passa pelos mesmos pontos de um plano já
percorrido”16, estando sempre em ascensão em busca de um plano mais alto. Com
isto, Serrano combate a ideia de progresso linear positivista e se posiciona teórica,
ideológica e politicamente no contexto conflituado da década de 1910. Tensões e
conflitos que veremos se acentuarem ainda mais na década de 1930 diante da
radicalização política que atingia o Brasil e a Europa em diferentes sentidos.
Cabe lembrar que no mesmo período em que Serrano escrevia Epitome de
História Universal, o crítico literário e historiador português Fidelino de Figueiredo
tornava-se Ministro da Instrução Pública em Portugal, cargo que exerceu entre 1914 e
1915, anos iniciais da República portuguesa. No cargo, Fidelino é encarregado de
revisar o ensino da história no país e um dos principais aspectos enfatizados por sua
11 Ibidem.
12 Ibidem, p. 218.
13 Ibidem, p. 310.
14 Ibidem, p. 311.
15 Ibidem, p. 429.
16 Ibidem.
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reforma é o ensino da história universal. Embora esta seja sua fase mais nacionalista, o
nacional só poderia ser visto como parte de um todo maior, universal. Posicionamento
que será aprofundado a partir da década de 1920, em sua fase cosmopolita, quando
buscará valores universais diante do contexto pós-guerra. Pensar o todo e uni-lo, sem
apagar suas especificidades, torna-se fator de grande importância para ele nesse
período.
Pauta que esteve presente também nos estudos de Serrano sobre a história do
Brasil. Em nota explicativa do seu Epitome de História do Brasil, publicado pela
primeira vez em 1933 (no auge da radicalização política), ele adverte “que nunca se ha
de isolar a História Pátria da História da Civilização Humana”17. A história do Brasil, e
ele reafirma várias vezes, somente deveria ser estudada de forma integrada à história
universal.
Fidelino ainda teve como uma de suas principais características a ruptura com o
positivismo anticlerical de Teófilo Braga, que preocupou diferentes intelectuais ligados
de alguma forma ao pensamento católico. O nacionalismo que marcava a chamada
primeira fase do seu pensamento vinculava-se à necessidade de impedir que os
valores republicanos positivistas apagassem o passado monárquico português. Assim,
Fidelino buscava a construção de uma identidade portuguesa por meio de aspectos
mais emocionais e espirituais e menos racionalistas.
Portanto, ligados ao pensamento católico, defensores do ensino da história
universal, combatentes do positivismo e relacionados à pedagogia ou a cargos voltados
para o ensino, parece que Fidelino e Serrano possuem interessantes características
em comum.
É nesse contexto, e com esses pontos de afinidade, que em 1921 Serrano
escreve pela primeira vez a Fidelino. Pelo que demonstra a carta, Serrano e Fidelino
se conheceram em 1920 quando este visitou o Brasil e, a partir de então, passaram a
se corresponder. Na carta datada de 19 de junho de 1921, Serrano pede desculpas a
Fidelino por não ter respondido a sua carta do dia 13 de março por razões pessoais,
profissionais e financeiras. Em resposta à pergunta de Fidelino sobre se algum dia
voltariam a se ver, diz acreditar que, na Europa ou no Brasil, voltariam sim a se
encontrar pessoalmente, mas, enquanto isto não ocorre, poderiam manter contato por
correspondências, jornais e revistas. Serrano diz ainda ser ele “o unico a lucrar neste
17 Serrano, Jonathas (1939). Epitome de História do Brasil. 2ª edição, RJ: F. Briguiet. p. 7.
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cambio de ideas”18 com Fidelino. Afirma também aguardar com interesse os trabalhos
que o intelectual português lhe oferece em sua carta, incluindo o primeiro volume da
Revista de História, editada por Fidelino, único que faltaria para completar sua coleção.
Finaliza enviando recordações de sua mulher e filhos à família de Fidelino.
Somente encontramos outra carta de Serrano a Fidelino em 1936. É possível
que algumas cartas trocadas nesse período tenham se perdido com o tempo, ou, por
alguma razão, não tenham sido conservadas por Fidelino. Na década de 1960, pouco
antes de sua morte, em 1967, o intelectual português, já enfermo, decide reler sua
correspondência, o que teria lhe trazido, segundo ele mesmo, “recordações
amargas”19. Alegando ter se perturbado com a distância entre o que dele pensavam
seus remetentes e o que ele havia realmente sido, resolveu destruir as cartas. Muitas
não escaparam, mas a maioria foi salva por sua filha e enviada ao Centro de Estudos
Portugueses no Brasil. Talvez a lacuna nas cartas de Serrano se deva a este episódio.
Nada podemos afirmar ao certo.
O fato é que somente se encontram registradas em sua correspondência
passiva cinco cartas de Serrano, sendo que a segunda delas data de 15 anos após a
primeira. De todo modo, as quatro cartas situadas na segunda metade da década de
1930 nos são particularmente interessantes para a relação entre pensamento católico e
radicalização política que aqui propomos. Nelas, os intelectuais falam de amizade,
trabalho e se referem ao contexto conflituoso em que viviam. Em julho de 1936,
Serrano relata o prazer de ter recebido carta de Fidelino datada de 16 de junho, o que
aumenta os indícios de que eles se corresponderam ao longo dos 15 anos de ausência
de cartas. Na mensagem, Serrano agradece o envio por seu remetente de um estudo
sobre os elementos portugueses na obra de Lope da Vega; elogia muito o trabalho e se
refere a Fidelino como um “mestre da crítica literária”20. Pergunta a ele quando o terá
no Brasil e também qual dos seus livros poderia interessar à Biblioteca Pública em
Portugal para que ele os enviasse.
18 Carta de Jonathas Serrano a Fidelino de Figueiredo. Rio de Janeiro, 16 de junho de 1921.
Correspondência Passiva de Fidelino de Figueiredo. Acervo: Biblioteca Florestan Fernandes,
FFLCH/USP.
19 Fala de Fidelino de Figueiredo na década de 1960 reproduzida por Julio García Morejón. In Morejón, J.
García (1967). Dos coleccionadores de angústias: Unamuno y Fidelino de Figueiredo, São Paulo:
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis. p. 68.
20 Carta de Jonathas Serrano a Fidelino de Figueiredo. Rio de Janeiro, 12 de julho de 1936.
Correspondência Passiva de Fidelino de Figueiredo. Acervo: Biblioteca Florestan Fernandes,
FFLCH/USP.
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Em 1938, Serrano escreve, segundo ele mesmo, algumas “linhas às pressas,
mal feitas e todavia sinceras e cheias de afeto”21 para agradecer a Fidelino os
comentários que teria feito sobre seus livros, marcado por “frases amigas e
estimulantes”22. Refere-se aos “caminhos de Deus” e aos “prodígios da sua graça”23.
Num tom nostálgico e conservador, defende também a necessidade de se
“restabelecer o sentido aristocrático da vida”24. Reforça ainda o convite para que viesse
ao Rio de Janeiro, diz não ter esquecido suas “saborosas sopas”25 que teria provado
em Lisboa e que deseja retribuí-lo em sua casa, recebendo-o juntamente com sua
família.
Um ano depois, em 1939, Fidelino já vivia no Brasil e Serrano lhe escreve em
resposta ao pedido de que possibilitasse sua pesquisa na biblioteca do Mosteiro de
São Bento. Serrano diz que havia recebido resposta favorável do abade do mosteiro e
que lá poderia “o historiador e crítico, amante de bons livros antigos, encontrar ou
talvez só rever, mas em todo caso reencontrar com prazer algumas obras raras e
interessantes”26. Lá Fidelino também encontraria poesia, paz, trabalho e oração, que
seriam as principais características dos beneditinos, percebidas, segundo Serrano, por
Newman27. O remetente avisa que, quando o destinatário chegasse ao Rio, poderia se
encontrar diretamente com o prior dos beneditinos, D. Vicente. Por fim, em 1940,
Fidelino recebe carta de Serrano em elogio a seu artigo publicado em O Jornal e
pergunta quando irá vê-lo novamente “para uma boa prosa, nesta hora triste do
mundo”28, referindo-se aqui, claramente, à conjuntura internacional da Segunda
Grande Guerra.
Vemos serem poucas as cartas disponíveis enviadas por Jonathas Serrano a
Fidelino de Figueiredo, mas podemos dizer que, mesmo que sutil e indiretamente,
21 Carta de Jonathas Serrano a Fidelino de Figueiredo. Rio de Janeiro, 02 de setembro de 1938.
Correspondência Passiva de Fidelino de Figueiredo. Acervo: Biblioteca Florestan Fernandes,
FFLCH/USP.
22 Ibidem.
23 Ibidem.
24 Ibidem.
25 Ibidem.
26 Carta de Jonathas Serrano a Fidelino de Figueiredo. Rio de Janeiro, 2 de novembro de 1939.
Correspondência Passiva de Fidelino de Figueiredo. Acervo: Biblioteca Florestan Fernandes,
FFLCH/USP.
27 Acreditamos que Jonathas Serrano referia-se ao Cardeal John Henry Newman, convertido do
anglicanismo ao catolicismo romano e fundador do Brompton Oratory, construído entre 1880 e 1884 em
Londres e pertencente aos oratorianos devotos de São Felipe Néri. Foi nesta Igreja que, em 1892,
Joaquim Nabuco teria se convertido de um catolicismo de corte jansenista ao catolicismo romano.
28 Carta de Jonathas Serrano a Fidelino de Figueiredo. Rio de Janeiro, 09 de junho de 1940.
Correspondência Passiva de Fidelino de Figueiredo. Acervo: Biblioteca Florestan Fernandes,
FFLCH/USP.
48
revelam alguns problemas que afetaram esses intelectuais no contexto da década de
1930. Contexto esse conflituoso, como dissemos, tanto no Brasil quanto em Portugal, e
que experimentou a radicalização política em diferentes direções – de um lado, se
apresentavam reivindicações progressistas, enquanto, de outro, surgiam reações
conservadoras e reacionárias. No Brasil, da década de 1920 em diante, foi realizada a
Semana de Arte Moderna, fundado o Partido Comunista e, à mesma época, criado o
Centro Dom Vital por Jackson de Figueiredo.
Se, de um lado, valorizava-se a modernidade na política, na arte e na literatura,
de outro, organizava-se uma forma de reação a ela pautada em valores católicos
tradicionais. O ano de 1922, em especial, é marcado por diferentes transformações que
influenciam essa década e a seguinte. Antonio Carlos Villaça lembra que o próprio
Alceu Amoroso Lima se referia a 1922 como
“[...] o ano da tríplice revolução [...] a política (o Forte de Copacabana), a
estética, através da Semana, em São Paulo, e a espiritual, com a fundação do
Centro Dom Vital e a publicação de livros como Pascal e a Inquietação
Moderna, de Jackson, e A Igreja, a Reforma e a Civilização, do Padre jesuíta
Leonel Franca.”29
Sugerimos aqui que o diálogo entre Fidelino de Figueiredo e Jonathas Serrano
nos permite uma ponte para a reflexão dos conflitos e tensões que atingiram
intelectuais ligados ao pensamento católico no período de radicalização política que se
dá a partir da década de 1920 e se acentua na década de 1930. Assim, pensando o
que os aproxima e assemelha em termos de perfil intelectual, propomos uma análise
dessa conjuntura política e ideológica, bem como da ambivalência e da perplexidade
que podem ter sido por ela geradas nesses indivíduos. Percebemos como esses
sentimentos podem gerar integração entre figuras diferentes, mas com perfis
intelectuais semelhantes. Por fim, refletimos acerca da forma como o pensamento
católico desses intelectuais se expressa face à radicalização política.
Nas cartas de Serrano a Fidelino, a demonstração de um sentimento de
retomada de valores aristocráticos do passado, a ligação com os beneditinos que
favoreceu as pesquisas de Fidelino e a reclamação diante do momento “triste” que
experimentavam sugerem a preocupação, as dúvidas e a hesitação sentidas nesse
contexto de transformações políticas, ideológicas e sociais. Diante da ruptura com
antigas estruturas, surge o medo e, por vezes, a recusa ao novo.
29 Villaça, Antonio Carlos (1975). O pensamento católico no Brasil, Rio de Janeiro: Zahar Editores. p.
103.
49
Desde a proclamação da República (no Brasil, em 1889; em Portugal, em 1910),
a Igreja Católica se encontrava defensiva diante do laicismo crescente e da ruptura
entre Estado e Igreja. Nos anos 1930, buscava, ao mesmo tempo, recuperar a força
perdida desde o fim do Império. Nesse contexto, em 1934, assina concordata com
Getulio Vargas, por intermédio do ministro Gustavo Capanema, através da qual, entre
outras conquistas, instaura o ensino religioso nas escolas públicas.
A radicalização política surge, coincidentemente ou não, nesse período de
revitalização da Igreja e de sua reconquista de espaço diante do poder público. Ela se
dá, portanto, em frentes opostas e torna o cenário da década de 1930 particularmente
relevante para se pensar os efeitos que essas tensões políticas e ideológicas podem
ter acarretado para intelectuais não necessariamente autoritários, mas ligados ao
pensamento católico. Efeitos que podem ser percebidos como dúvidas e hesitações em
torno de qual caminho seguir, em especial após o abalo das oligarquias que
governaram durante toda a República Velha. A mudança de contexto, trazendo em seu
bojo transformações na estrutura política e social no Brasil, apresentava problemas a
serem enfrentados pelos intelectuais dessa geração. Lideranças políticas como Getulio
Vargas, que surgiam no cenário nacional, radicalizavam na apresentação de novas
reivindicações que refletiam os interesses daquela conjuntura.
Analisando a radicalização política na década de 1930, José Nilo Tavares
aponta Vargas, Plínio Salgado e Luís Carlos Prestes como principais lideranças
políticas do período. O autor demonstra como democracia e autoritarismo se
complementam nas sociedades capitalistas, o que aconteceu com frequência no Brasil
desse contexto. Ressaltamos, principalmente, no texto de Tavares, aqueles que o
próprio autor aponta como os maiores movimentos de massa já surgidos no Brasil: a
Ação Integralista Brasileira e a Aliança Nacional Libertadora. Movimentos que bem
representam a polarização política e ideológica a qual nos referimos. Polarização que
contrapõe valores conservadores e progressistas e, além disto, reflete as
ambivalências e tensões daquela sociedade em transformação.
Segundo Tavares, o próprio Plínio Salgado, oriundo da geração de modernistas
de 192230, trazia, no início da década de 1930, “a indecisão e a angústia, que
acabaram por gerar um misticismo acentuado”31, que se constituiu em aspecto
30 Em 1936, Plínio assume seu envolvimento com a geração de modernistas que visavam elaborar novos
parâmetros para a literatura e as artes no Brasil. Segundo ele, a Semana de Arte Moderna teve o mérito
de instigar a rebeldia de jovens contra antigos valores culturais e políticos.
31 Tavares, José Nilo (1982). Conciliação e radicalização política no Brasil, Petrópolis: Vozes. p. 182.
50
permanente de sua personalidade. Após viagem pela Europa, em 1930, na qual se
encontra pessoalmente com Mussolini, Plínio diz tomar a decisão de iniciar um
movimento próprio, contrário aquele que Vargas lançava no mesmo ano. Irá
desenvolvê-lo com o auxílio de Augusto Frederico Schmidt, a adesão de alguns dos
mais reconhecidos intelectuais da época, como Santiago Dantas, Hélio Viana, Américo
Jacobina Lacombe e a simpatia de líderes católicos como Alceu Amoroso Lima. A Liga
Eleitoral Católica (LEC) – no início do movimento integralista, havia uma grande
concordância entre suas propostas – apoiou Plínio Salgado e convocou os católicos a
votarem de acordo com a doutrina da Igreja em defesa de seus interesses em questões
como a família e a educação.
Alheia a disputas partidárias, a Igreja aderia, no entanto, ao anticomunismo e ao
conservadorismo dos integralistas. Nesse sentido, Amoroso Lima, em defesa da LEC e
afinado com o integralismo, dizia, em 1936, que estas seriam formas de se romper com
o laicismo da República de 1889 e defender valores cristãos que doutrinas como o
positivismo, o liberalismo e o socialismo não souberam compreender32. Além do
corporativismo, o integralismo apresentava propostas muito próximas dos interesses
católicos. Defendia a realização,
“[...] na ordem econômica, do regime de predomínio do social sobre o
individual; na ordem moral, a cooperação espiritual de todas as forças que
defendem os ideais de Deus, Pátria e Família; e na ordem intelectual, a
participação de todas as forças culturais e artísticas na vida do Estado”.33
Ainda de acordo com José Nilo Tavares, as adesões ao integralismo de Plínio
Salgado ocorriam ao redor de todo o país por meio de relações pessoais, na maioria
das vezes, ou de propaganda e conhecimento da ideologia partidária. As adesões se
davam em razão do anticomunismo, do nacionalismo e da crescente simpatia pelo
fascismo naqueles anos. Outros motivos, segundo o autor de menor importância,
seriam a oposição ao sistema político vigente, o antissemitismo e o enaltecimento de
valores autoritários e espirituais.
Os integralistas conseguiram, inclusive, manter boas relações com o governo
nos primeiros anos da Era Vargas. Contudo, com o início do Estado Novo em 1937,
essas relações são abaladas pelo fechamento de todos os partidos políticos por
Getulio. Em 3 de novembro desse mesmo ano, a Ação Integralista Brasileira é extinta
iniciando-se uma perseguição nacional contra seus componentes. Plínio Salgado
32 Cf. Ibidem, p. 197-198.
33 Ibidem, p. 200.
51
resiste no Brasil até 1939, quando é pressionado a se exilar. Segue, então, para
Portugal onde vive por cerca de seis anos fascinado pelo salazarismo e pelo
totalitarismo em geral que se espalhava pela Europa. Para ele, a coesão e a unidade
desses Estados funcionavam como exemplos de patriotismo e nacionalismo para o
Brasil.
Durante esse período em Portugal ele aprofundava suas ideias autoritárias e
planejava seu retorno ao país, enquanto seus seguidores por aqui eram reprimidos e
censurados pelo Estado Novo. São feitas algumas tentativas de acordo com Getulio,
mas no final da guerra, com o apoio brasileiro aos aliados contra o nazifascismo, essa
possibilidade é rompida. Plínio retorna ao Brasil somente após a Segunda Guerra,
dando continuidade às ideias integralistas (agora renovadas), mesmo com o fim da
Ação Integralista Brasileira.
Ressaltamos, mais uma vez, que a radicalização política na década de 1930 não
se deu apenas em sentido reacionário. Assim como a Igreja Católica e os setores
conservadores da sociedade se organizaram em busca da reafirmação do seu poder
político, simultaneamente, setores das classes médias e do proletariado se reúniram,
em especial a partir de 1934, para fazerem frente ao avanço integralista no Brasil.
Nessa conjuntura, comunistas, socialistas, anarquistas, liberais democráticos, dentre
outros, formam a Aliança Nacional Libertadora, com orientação democrática e oposta
ao fascismo de Plínio Salgado e ao autoritarismo que se acentuava no governo Vargas.
Portanto, a radicalização se dá em dois sentidos nesse momento conturbado de
transformações políticas e sociais. Para José Nilo Tavares, “a situação política
internacional, particularmente a europeia e os antagonismos internos, refletindo
interesses contraditórios existentes na sociedade nacional brasileira”34 foram fatores
que fundamentaram a formação da Aliança. Com essas motivações, o líder Luís Carlos
Prestes chegava a defender claramente a luta armada, que deveria caminhar em
conjunto com atividades consideradas legais.
Os intelectuais nos anos 1920 e, sobretudo, 1930, se viram envolvidos de
alguma forma nesses conflitos que caracterizavam a sociedade brasileira. Alguns deles
posicionaram-se favoráveis ou ao integralismo (caso de Santiago Dantas, por exemplo)
ou à Aliança (como aconteceu com Jorge Amado, Graciliano Ramos e Caio Prado Jr).
Outros, com posicionamento político mais ambíguo, talvez tenham sido tomados de
34 Ibidem, p. 160.
52
assombro, perplexidade e hesitação diante das mudanças e das possibilidades que
então se apresentavam.
Acreditamos ser possível dizer que Fidelino de Figueiredo e Jonathas Serrano
situaram-se dentre estes últimos. Serrano esteve ligado a Alceu Amoroso Lima,
participou do Centro Dom Vital, publicou em A Ordem (revista do mesmo Centro) e foi
considerado um dos principais líderes católicos do período, principalmente no campo
educacional. Portanto, embora não tenhamos informações exatas sobre isto, a
proximidade da LEC e das lideranças católicas com o integralismo, pelo menos no
início da década de 1930, aponta para a afinidade de Serrano com suas ideias. Talvez
não possamos falar em adesão, já que Serrano se manteve aberto às inovações
pedagógicas da Escola Nova, conjugando-as à doutrina católica, e era considerado um
“espírito eminentemente liberal”35, mas certamente uma afinidade de ideais pode ser
aqui apontada. Fidelino, por sua vez, também fez parte dessa esfera católica
relacionada a Jackson de Figueiredo e a Alceu Amoroso Lima, ao Centro Dom Vital e à
revista A Ordem36. Não se assumia diretamente como católico, mas todos os indícios
apontam nesta direção. Assim, não podemos considerá-lo inteiramente alheio a
princípios que também motivaram os integralistas e o grupo de intelectuais católicos do
qual fazia parte. Não obstante, não podemos esquecer que ele veio para o Brasil em
1938 fugindo da ditadura salazarista e, consequentemente, da ascensão do
nazifascismo na Europa. Então, mesmo não dispondo de declarações suas a este
respeito, podemos dizer que dificilmente aqui no Brasil ele apoiaria o fascismo que
inspirava a Ação Integralista Brasileira.
Fidelino e Serrano apresentaram, como vemos, características em comum que
os aproximam política e ideologicamente. Ambos simpatizavam com uma perspectiva
conservadora de sociedade que, no início da década de 1930, era defendida tanto
pelos grupos católicos quanto pelos seguidores de Plínio Salgado. Simultaneamente,
defendiam neste período (já que antes Fidelino chegou a ser ministro do governo
ditatorial de Sidónio Pais) valores democráticos, como demonstra Fidelino em sua
oposição ao salazarismo e Serrano, que, em seu já citado Epitome de História
Universal, defendia “a tendência mais a mais acentuada para a organização
35 Villaça, A C. (1975). Op. Cit, p. 77.
36 Para fortalecer nosso argumento, lembramos das 30 cartas enviadas por Jackson de Figueiredo a
Fidelino e das 38 cartas também a ele enviadas por Alceu Amoroso Lima. Além disto, Fidelino recebeu
em 1938 carta do Centro Dom Vital convidando-o a participar do número seguinte da revista A Ordem
em homenagem à memória de Jackson. Sua proximidade com essa rede católica, portanto, fica
evidente. Cf. Correspondência Passiva de Fidelino de Figueiredo. Acervo: Biblioteca Florestan
Fernandes, FFLCH/USP.
53
democrática das coletividades”37. Ambivalências presentes em seus pensamentos que
podem ter possibilitado uma integração entre estes dois intelectuais distintos, mas com
afinidades que os assemelham.
Afinidades que provavelmente inspiraram o diálogo e a troca de
correspondências entre eles. Quando, em 1940, Serrano diz a Fidelino que gostaria de
vê-lo para conversarem “nesta hora triste do mundo”38, como vimos anteriormente
neste texto, Fidelino já se encontrava exilado no Brasil, onde vigorava o Estado Novo e
a repressão aos integralistas, o nazifascismo avançava sobre a Europa e a Segunda
Guerra já havia começado há algum tempo. A “hora triste” a qual Serrano se refere tem
a ver, portanto, com todo esse contexto conturbado, autoritário e violento, mas também
com as incertezas, dúvidas, hesitações e angústias que ele provoca nessa geração.
Neste sentido, desenvolvemos a hipótese de que, diante da radicalização
política, alguns intelectuais ligados ao pensamento católico permanecem sem saber
exatamente que caminho seguir, que postura e/ou qual posicionamento político e
ideológico adotar. Surgem aqui diferentes sentimentos, refletidos nas práticas políticas,
que correspondem à forma como estes intelectuais foram, conscientemente ou não,
afetados pelos acontecimentos que movimentaram sua geração.
Alguns termos nos auxiliam a expressar estes sentimentos que, acreditamos,
podem ser percebidos em meio ao encontro entre o pensamento católico e a
radicalização política na década de 1930. Talvez estes intelectuais tenham ficado
desorientados, perturbados, transtornados, abalados, desnorteados, indecisos,
vacilantes, hesitantes, angustiados, aflitos, agoniados, atormentados, espantados,
perplexos, admirados e atônitos com as possibilidades de transformação política e
social desenhadas nesse contexto. Estes sentimentos caracterizam, portanto, a busca
de opções destes indivíduos quando suas certezas são abaladas; quando “o sentido
aristocrático da vida”39, o qual Serrano reivindicava em 1938, havia se perdido com as
rupturas provocadas pela modernidade e com os movimentos que abalaram a velha
estrutura oligárquica na década de 1930 – na verdade, culturalmente, desde a Semana
de Arte Moderna, em 1922.
A princípio negativos, estes sentimentos podem ter produzido efeitos
integracionistas, contribuindo para a aproximação entre intelectuais distintos, porém
semelhantes, como Serrano e Fidelino. Assim, interesses em comum e pontos de
37 Serrano, J. (1950). Op. Cit, p. 428.
38 Cf. nota 28.
39 Cf. nota 24.
54
afinidade conjugam-se a formas não apenas de pensar, mas de sentir a conjuntura
histórica e social em que viviam. Desorientados, vacilantes, angustiados, perplexos,
eles se corresponderam, assim como fizeram com outros pares intelectuais, de modo a
repartirem suas angústias, dúvidas e reclamações e pensarem por que caminho seguir.
Aquilo que pode ser previamente visto como prejudicial, gera, ao contrário,
reflexão, conhecimento e integração. Neste caso, a integração entre dois indivíduos
ilustra ainda a relação entre Brasil e Portugal no início do século XX. Falamos, então,
de integração micro e macropolítica, de elos de ligação históricos e culturais que são
retomados por estes intelectuais após o fim da monarquia e num momento em que o
autoritarismo e governos ditatoriais se estabeleciam em ambos os países.
Os sentimentos gerados pelos conflitos da década de 1930 podem ter
contribuído para integrar Fidelino a outros intelectuais brasileiros como o próprio Alceu
Amoroso Lima, Afrânio Peixoto40, entre outros. O contexto conflituoso, a radicalização
política e a reação católica coincidem historicamente no Brasil e na Península Ibérica, o
que nos leva a acreditar que a perplexidade, a hesitação, a vacilação, a indecisão, etc.
também coincidam entre estes intelectuais, com a especificidade de se relacionarem
direta ou indiretamente com o pensamento católico. Como dissemos, o negativo, o
prejudicial, o problemático, o incerto, o duvidoso, acabam gerando efeitos dialógicos e
integracionistas.
Fidelino chegou a escrever retrospectivamente sobre suas “angústias” já na
década de 1950. Um coleccionador de angústias, publicado em 1953, traduz os
sentimentos aos quais nos referimos. Talvez não exatamente a dúvida e a hesitação,
mas sim a decepção num contexto posterior ao salazarismo, à Segunda Guerra e ao
predomínio do nazifascismo durante tanto tempo em vários países europeus.
Acreditamos que as dúvidas que não foram respondidas acabaram gerando a
decepção que ele aqui transparece. Tanto que ao olhar para o passado, Fidelino
enxerga angústias, as muitas angústias que ele teria colecionado ao longo da vida.
Assim, reclama da solidão do homem moderno, dos exílios que viveu, da rapidez da
modernidade, critica o comunismo, o nazifascismo, os rumos autoritários da República
e defende o liberalismo e a democracia enquanto forma de governo. O medo e as
incertezas que teria experimentado em sua trajetória trariam, já nos anos 1950, a
angústia que ele procura definir e identificar a partir do livro.
40 Historiador e crítico literário como Fidelino, Afrânio Peixoto enviou 13 cartas a ele entre as décadas de
1920 e 1940.
55
Na introdução de Um coleccionador de angústias, Fidelino fala do hábito dos
homens em colecionar. Segundo ele, é possível não apenas colecionar objetos, mas
também ecos (como Mark Twain), sorrisos (como Alfonso Reyes), gestos (como
Kany)... Ou seja, coleciona-se o material e o imaterial, o abstrato, o subjetivo. A
personagem por ele trabalhada no livro, que nada mais é do que falar de si mesmo em
terceira pessoa, coleciona angústias. Para Fidelino, seu colecionador seria “mais
original ou mais abnegado, porque a sua recolha se fazia com sofrimento”41. Este
colecionador
“[...] aplicava-se a apurar, de entre todo o espetáculo da vida, em si e fora de si,
nos homens e nas paisagens, a angústia, o aperto do coração, o medo da
própria vida e a humilhação que ela sempre inflige em quem a interpreta e a
julga”42.
Vemos refletidos nas palavras de Fidelino alguns dos sentimentos com os quais
buscamos expressar as dúvidas e hesitações que acreditamos terem atingido
intelectuais como ele e Jonathas Serrano na década de 1930. Ao menos o abalo, a
aflição e a agonia parecem estar presentes na forma como ele percebe as emoções e
experiências que colecionou ao longo da vida, sobretudo no que tange ao trabalho
intelectual, já que quem “interpreta e julga” a vida sofre com o “medo” e a “humilhação”.
Destacamos ainda que a angústia para ele encontra-se diretamente relacionada ao
sofrimento e à dor. A angústia seria “a incorporação do mundo em si, incorporação com
dor”43. A partir daí, Fidelino procura definir seu próprio conceito de angústia como um
mal que atingiria o homem moderno. Mais ainda, seria um
“[...] dado intuitivo sobre a realidade psicológica ou humana, de natureza
sensível ou intelectual, recebido pela consciência com sofrimento pelo
contraste que revela entre essa realidade e preconcebidos arquétipos
absolutos ou ideais. A ‘angústia’ forma pequenos conglomerados de
conhecimento e dor tem essência cognitiva e estética, é um pedaço
ensanguentado da realidade”.44
A angústia representaria sofrimento e seria absorvida pela consciência através
da dor, já que há uma distância entre aquilo que se idealiza ser e fazer e aquilo que é
experimentado na realidade. Fidelino chega a recorrer à imagem do sangue para
caracterizar a angústia e a percepção que ela gera da realidade; sangue que
provavelmente, na década de 1950, remete ao pós-guerra, à bomba atômica e à guerra
fria. Portanto, acreditamos que a angústia de Fidelino nesse período refere-se à
41 Figueiredo, Fidelino de (1953). Um coleccionador de angústias, Lisboa: Guimarães Editores. p. 15.
42 Ibidem.
43 Ibidem, p. 16.
44 Ibidem, p. 16-17.
56
hesitação e à perplexidade das décadas anteriores, mas, ao mesmo tempo, à
decepção que atingiu intelectuais conservadores, mas não necessariamente
autoritários, no contexto em que Fidelino escreve Um coleccionador de angústias.
Assim, consideramos este livro a expressão das ambivalências que caracterizam
seu autor e muitos de seus pares geracionais. Porém, as ambivalências aqui presentes
seriam as de um período posterior à radicalização na década de 1930, quando a
decepção se sobrepõe à angústia. Acreditamos que, movido pela decepção, Fidelino
descreve suas angústias, o que confere um interessante sentido histórico e subjetivo
ao livro.
A passagem à modernidade, entre o final do século XIX e o início do século XX,
e o processo de radicalização política do qual tratamos na década de 1930 parecem ter
gerado uma espécie de “integração forçada” entre as ideias católicas e monárquicas
destes intelectuais e os valores republicanos e positivistas que até então haviam
ganhado cada vez mais espaço. Com ideias mais tradicionais, estes indivíduos se
viram diante de um contexto histórico, político e social no qual adaptações eram
necessárias para que se mantivessem em atividade nos campos político e intelectual. É
possível falar, inclusive, numa “acomodação” entre valores distintos, o que fortalecia as
ambivalências, as dúvidas e a hesitação entre eles. Afinal, na necessidade de se
adaptar, eles conjugavam o moderno e o tradicional e criavam condições para que
pudessem se estabelecer em meio aos avanços do positivismo, no final do século XIX
e primeiras décadas do XX, e da radicalização política na década de 1930.
Evidentemente, este processo de “acomodação” ou “integração forçada”
favorece, muitas vezes, a indecisão, a desorientação, a hesitação e, optando pelo
termo utilizado por Fidelino, a angústia. Isto porque, como os rumos a serem seguidos
não estão definidos, surgem as incertezas que, por um lado, podem favorecer a
criatividade, e por outro, favorecem o medo, a angústia que, na visão de Fidelino, é
absorvida com dor e sofrimento, como “um pedaço ensanguentado da realidade”; uma
realidade a qual nem sempre é fácil se adaptar, por não aceitá-la ou não ser aceito por
ela.
Diante da radicalização política, o pensamento católico experimentou esta
exigência de adaptação, de “acomodação”, já que a Igreja buscava retomar seu poder,
enfraquecido com a proclamação da República. Ela mesma buscará se adaptar e se
impor a esta nova realidade através da Ação Católica, por exemplo, e da ação de
líderes católicos como Jackson de Figueiredo (até a década de 1920) e Alceu Amoroso
57
Lima, da criação do Centro Dom Vital e da revista A Ordem. O próprio empenho de
Jonathas Serrano, que era um destes líderes, em conjugar os princípios da Escola
Nova – ensino público, obrigatório, laico e gratuito – à doutrina católica demonstra esta
busca por adaptação, por uma modernização marcada por valores tradicionais.
A Escola Nova inseria-se numa perspectiva de combate à miséria, de defesa da
unidade nacional e do patriotismo e da educação como ferramenta de regeneração
social com a qual Serrano estava de acordo. Assim, como afirma Maria Auxiliadora
Schmidt45, ele apenas recomendava aos educadores que fossem capazes de aderir às
novas propostas pedagógicas com cautela, sobretudo em relação aos excessos de
cientificismo e pragmatismo que vinham marcando o ensino da história nas últimas
décadas. Para ele, o mais importante seria se adaptar sem abandonar os valores
morais e espirituais necessários à formação do aluno. Ou seja, adaptar-se à
modernidade sem abrir mão de valores tradicionais, responsáveis pela manutenção da
ordem social não apenas no presente, mas também no futuro, já que se trata de
ensinar a história a crianças e adolescentes.
Neste sentido, vale lembrar sua defesa em torno da relação entre passado e
presente no ensino da disciplina, pois assim ela seria aproximada das necessidades
reais dos alunos e, claro, serviria ao contexto em que os valores católicos precisavam
ser reafirmados diante do processo de laicização da sociedade e de radicalização
política entre os anos 1920 e 1930. Portanto, a atuação de Serrano no campo
educacional pode ser vista como um exemplo da “acomodação” da qual tratamos.
Exemplo de uma integração que, se não é forçada, é, ao menos, fruto de uma pressão
conjuntural que se impõe ao pensamento católico em uma das esferas em que mais
atua até hoje no Brasil: a educação.
Serrano ainda oferece um bom exemplo desta pressão vivenciada pelo
pensamento católico em seu livro Homens e Ideias. Nele, de forma geral, o autor
aponta alguns dos que considerava os principais intelectuais católicos no Brasil (como
Joaquim Nabuco e Jackson de Figueiredo) e no exterior (como Pascal). Ao pensar a
produção destes intelectuais, Serrano queixa-se dos ataques sofridos pelos
pensadores católicos naquele contexto – a publicação do livro data de 1930. Ele
reclama da condição difícil em que estes se encontravam e das críticas que sofriam
45 Cf. Schmidt, Maria Auxiliadora (2003). “História com Pedagogia: a contribuição de Jonathas Serrano
na construção do código disciplinar da História no Brasil”. In Revista Brasileira de História, SP, v. 24, n.
48, p. 189-211.
58
quando escreviam em favor do catolicismo. Para ele, quando a verdade da religião era
dita, seus opositores difamavam os que a diziam. Estes opositores, ao contrário, eram
elogiados e citados. Pressão contra a qual considerava ser preciso sempre reagir e se
fortalecer. Em suas palavras:
“Nesta crise moral que atravessamos, e em que as mais desencontradas
theorias se entrechocam e nos embates se vão umas ás outras maltratando, a
posição do publicista catholico é das mais difficeis e menos invejáveis. O
escriptor sem escrúpulos, adulador das viciosas tendencias do publico, e que
apenas procura as phrases dubias, que não compromettem, porque afinal de
contas nada affirmam; o rabiscador de qualquer coisa destinada á leitura da
gente emancipada da escravidão [grifos no original] religiosa; qualquer
desses tem grande probabilidade de ser apreciado, citado, elogiado. O que põe
sua penna ao serviço da religião, e busca em seus artigos exaltar a virtude, não
hesitando, se fôr preciso, verberar abusos ou desmascarar embustes, – ai
delle! Chovem-lhe em cima, de toda parte, agudas settas. Dos inimigos e,
ainda, dos que se dizem amigos. E, ao passo que os corruptores enriquecem
corrompendo, os defensores da verdade ás vezes se esgotam missionando.”46
No mesmo livro, Serrano afirma que muitos dos opositores do catolicismo são
imorais ou amorais, confusos, tão sem dogmas que estão sempre mudando de ideia e
negando o que afirmaram anteriormente. Quanto a Jackson de Figueiredo, o aponta
ainda como “sensível”, de “bom gosto”, “inteligente” e dono de um “largo coração”. Daí
a força da sua imagem no combate à reação contra o catolicismo nas décadas de 1920
e 1930. Citando Serrano, “pelo valor intrinseco e pela extraordinária energia irradiante,
foi uma das mais poderosas forças do renascimento espiritual do Brasil”47.
Um par intelectual que pode ilustrar a integração afetiva entre valores
contrapostos no contexto da radicalização política e após a ascensão do modernismo
no cenário intelectual brasileiro inclui um dos seus principais representantes: Mário de
Andrade. Mais especificamente, nos referimos às correspondências trocadas entre ele
e seu “tio” Pio Lourenço Corrêa, que se estende entre os anos de 1917 e 1945 (ano da
morte de Mário). Focalizaremos aqui aquelas datadas das décadas de 1920 e 1930,
período no qual situamos nossa discussão.
Pio Corrêa era casado com Zulmira de Moraes Rocha, prima de Mário de
Andrade. Este se referia a Pio como “tio” devido à convivência com um primo que era
realmente seu sobrinho. Pio era autoritário, conservador, elitista, hierárquico e muito
ligado a valores tradicionais. Portanto, era política e ideologicamente bastante distante
de Mário. Gilda de Mello e Souza, em introdução à coletânea de cartas por eles
trocadas, lembra que, embora dono de um temperamento autoritário, Pio precisava de
46 Serrano, Jonathas (1930). Homens e Ideas, Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia. p. 53.
47 Ibidem, p. 226.
59
interlocutores com os quais debater suas ideias. Neste sentido, “a abertura mais
prolongada, mais importante que manterá com o mundo exterior”48 serão as
correspondências com Mário de Andrade, compostas por 105 cartas de Pio e 84 de
Mário.
Muito diversos, estes indivíduos foram aproximados por duas mortes: a do irmão
mais novo e a do pai de Mário. Assim, mesmo com “temperamento, concepções de
vida, normas de conduta, preferências intelectuais e artísticas, idéias políticas”49 tão
distintas foi possível construir uma relação afetiva que superava estes obstáculos,
tornando-os motivação para o debate e não para o distanciamento.
Em diferentes momentos da vida de Mário, principalmente naqueles de maiores
conflitos ou decepções pessoais e profissionais, era na fazenda de Pio, no interior de
São Paulo, que ele se abrigava, aproveitando, inclusive, para escrever ou revisar
alguns de seus trabalhos – um dos mais importantes deles, Macunaíma, é um exemplo.
Lá ele demonstrava, por meio da correspondência, se sentir acolhido e protegido para
descansar e produzir. Morto 11 anos antes de Pio, Mário encontrou naquele que
representava seu oposto um contraponto para sua visão de modernidade e um consolo
em seus momentos de frustração.
Algumas destas cartas são interessantes por ilustrarem os conflitos entre o
pensamento católico e a radicalização política que aqui abordamos. No debate entre
indivíduos posicionados em lados opostos nessa conjuntura, surgem elementos
relacionados à compreensão que buscamos das ambivalências, contradições e
hesitações que marcaram o próprio pensamento conservador nesse período que vimos
ser de transformações políticas e sociais. Nelas, Pio reafirma as hierarquias sociais, o
predomínio dos fortes sobre os fracos, as normas tradicionais do que seria a verdadeira
língua portuguesa, a religiosidade, a família... Enfim, uma série de princípios com os
quais Mário se chocava e tentava combater. Embora, nas cartas com o “tio”, de forma
muito afetiva e carinhosa.
Em 1922, logo após a realização da Semana de Arte Moderna, entre os dias 11
e 18 de fevereiro, Pio comenta com Mário o entusiasmo do “sobrinho” com a mesma,
seus sucessos e os “sentimentos que eles criaram ou alteraram na sua consciência”50.
Diz que não entende nada de arte, mas que lhe parece que, na Semana, as coisas
48 (2009). Pio e Mário: diálogo da vida inteira. A correspondência entre o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa
e Mário de Andrade. 1917-1945, São Paulo: Edições SESC SP; Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul.
Introdução de Gilda de Mello e Souza, p. 19.
49 Ibidem.
50 Carta de Pio Lourenço Corrêa a Mário de Andrade. Araraquara, 11 de março de 1922. Ibidem, p. 55.
60
foram colocadas fora de seu lugar habitual, de modo que não consegue compreender
“um verso sem metro, sem rima, sem leis”51. Complementa dizendo que tudo isto seria
“arte dos soviets”52, referindo-se aos ecos da Revolução Russa e à distorção de
papéis que ela teria provocado. Os versos modernistas seriam, em sua opinião, como a
Rússia pós-revolucionária: indefinida, sem normas, confusa. Isto, portanto, gera
confusão, transtorno, aflição, hesitação, indecisão, agonia, espanto...
As tensões entre o conservadorismo de Pio e o modernismo de Mário
transparecem especialmente no que concerne à língua portuguesa. Pio tenta
convencer Mário de que a ortografia lusa seria a única correta enquanto a brasileira
seria imperfeita. Mário, por sua vez, defende sua posição favorável à informalidade e
às adaptações da língua portuguesa cotidiana no Brasil. Em julho de 1930, Mário diz
não entender o porquê de seu “tio” “querer convencer a um convicto”53, pois o seu
“ponto-de-vista é pragmático, é socialista, é o que o diabo ele queira ser, menos
gramatical ou que quer que seja do limbo das ciencinhas do dizer”54. Isto se dá também
no campo da literatura, quando Pio defende a literatura tradicional portuguesa em
oposição às obras que modernistas como Mário vinham produzindo. Pio lança crítica
até mesmo às próprias obras de Mário, ao seu estilo, aos seus temas, à ortografia, etc,
mas o faz sem desqualificá-las; procura sim debater com igualdade e colocar seus
pontos de discordância como se estivesse aconselhando a um filho.
Pio e Mário também se opunham politicamente, o que fica claro em muitas das
cartas relativas às décadas de 1920 e 1930. Nelas, alguns dos mais importantes
movimentos políticos aparecem enquanto ambos procuram apresentar e defender seus
pontos-de-vista. Pio defende o evolucionismo, mesclado com a religiosidade de quem
diz aceitar todos os desígnios divinos e critica o comunismo e as revoluções de todos
os tipos. Mário, por outro lado, procura ponderar o conservadorismo do “tio” e se coloca
a favor das transformações sociais e culturais. Diz não querer falar de política, mas em
vários pontos acaba falando, em virtude do próprio contexto de repressão e da
radicalização manifesta em diferentes momentos. Em carta de maio de 1933, Mário
reclama da censura do Estado Novo a um de seus versos no qual fala, indiretamente,
da tristeza em que se encontrava São Paulo após a Revolução Constitucionalista de
1932:
51 Ibidem.
52 Ibidem.
53 Carta de Mário de Andrade a Pio Lourenço Corrêa. São Paulo, 07 de abril de 1930. Ibidem, p. 170.
54 Ibidem.
61
“Não lhe falo de política, não vale a pena. Mas quero lhe contar que outro dia,
num artigo meu, a Censura cortou um trechinho em que eu falava na ‘surda
tristeza que mancha agora a terra paulista’. Está proibido aos paulistas se
dizerem tristes! Isso me faz pensar num filme famoso, Lírio Partido, em que o
sacana do velho dava que dava na menina e depois mandava ela rir, porque
senão apanhava mais. Então a pobrezinha punha as mãos nas comissuras dos
lábios, e as empurrava pra cima, na feição de quem ri... É São Paulo, que os
brasileiros agora não cansam de admirar...”55
Aqui ele desenvolve uma crítica veemente ao contexto que torna uma cidade
considerada moderna e admirada como São Paulo palco de cenas de violência e
repressão. Em cartas posteriores, descreve ainda os subterfúgios que criava para
escapar à censura através de palavras e expressões ambíguas e irônicas.
Ao mesmo tempo, o roubo de uma rede do Amazonas, que Pio ganhou de
Mário, serve de pretexto para que o “tio” demonstre sua oposição ao comunismo e sua
adesão às correntes conservadoras da época, posição da qual Mário procura discordar.
Em abril de 1934, Pio conta que “um comunista detestável”56 havia levado a rede na
noite anterior. Ao receber a carta com a expressão preconceituosa do “tio”, Mário
responde procurando problematizar o conceito de comunista. Para evitar
desentendimentos com Pio, coloca o problema em termos linguísticos e diz precisar
evitar que ele cometesse um “verdadeiro crime de semântica, no chamar de
comunistas aos que são simplesmente e burguesmente ladrões”57. Mário ainda busca
se afastar dos ideais comunistas, demonstrando-se preocupado apenas com uma
compreensão mais ampla e tolerante em torno deles. E complementa:
“Reduzir o Comunismo à doutrina do ‘o que é de você me pertence’, é um
simplismo deselegante que não calha muito bem com a sua serenidade no
julgar as coisas e os homens, nem a curiosidade tão severa que bota sempre
no conhecer profundamente as coisas que deseja conhecer. Sem ser
minimamente comunista [sem grifo no original], protesto em nome da simples
Verdadíssima, que é bem outra. Mas, ai! quando reparo nestes comunistetes
brasileiros, deserdados de família, dinheiro, e amor humano, quase que lhe
estou a dar razão...”58
A discussão continua em réplica de Pio datada de 13 de abril do mesmo ano.
Aqui Pio diz que nos ideais de seus teóricos o comunismo não tem nada a ver com
vagabundos e vadios. Mas, na prática era isto o que ocorria, segundo ele em razão do
egoísmo dos homens. Além disto, refletindo seu elitismo, afirma que as classes
55 Carta de Mário de Andrade a Pio Lourenço Corrêa. São Paulo, 30 de maio de 1933. Ibidem, p. 231.
56 Carta de Pio Lourenço Corrêa a Mário de Andrade. Araraquara, 5 de abril de 1934. Ibidem, p. 253.
57 Carta de Mário de Andrade a Pio Lourenço Corrêa. São Paulo, 10 de abril de 1934. Ibidem, p. 254.
58 Ibidem.
62
populares não estariam “jamais na altura intelectual de compreender o Comunismo
como o idearam os privilegiados das elites intelectuais”59.
Outro aspecto bastante ilustrativo da oposição entre conservadorismo e
modernismo nas cartas trocadas entre Pio e Mário é a aversão deste último à exmetrópole
Portugal e ao colonialismo em si, como fizeram os modernistas em busca de
valores que representassem o “verdadeiro” Brasil. Envolvidos por estas ideias,
criticaram a língua portuguesa em sua versão lusa, a literatura tradicional portuguesa e
negaram as supostas contribuições da metrópole à colônia. Neste sentido, Mário se
nega a qualquer forma de gratidão em relação a Portugal. Afirma sua simpatia pelo
país, mas nega qualquer afinidade com o colonizador. Diz se sentir mais próximo de
um russo ou um guatemalteco do que dos portugueses. Com a ironia comum a todas
as suas cartas, escreve a Pio de forma a provocá-lo:
“Pessoalmente, a minha convicção é que nós não temos nenhuma dívida pra
com Portugal. Tudo o que ele fez aqui foi obrigado pelas circunstâncias
naturais de colonizador, como todos os colonizadores, necessariamente
ganancioso, e pelas angústias inda mais naturais do crescimento da Colônia.
Nunca senti gratidão nenhuma pra com Portugal, nem com um português.
Apesar das tradições que, o Sr. sabe, não recuso nem renego. Mas gosto
muito de português, acho-os vitalmente inteligentes, e se a nossa
camaradagem me permite uma pequena ida a alcova, estou convencidíssimo
que amor de portuguesa é mesmo incomparável e preferível aos demais”.60
Pio, ao contrário, conservador e tradicionalista, se opõe à visão de modernidade
de Mário. Para ele, não seria possível deixar de lado as supostas dívidas com Portugal.
Mário estaria sendo, em sua opinião, injusto com a ex-metrópole. Para Pio,
comparando-se com os demais países que tentaram colonizar o Brasil, como os
holandeses e os huguenotes franceses (ambos protestantes), foram os portugueses
(católicos) que conseguiram “proporcionar o ... gozo pessoal e o da comunidade de que
fazemos parte”61. Assim, o mérito da colonização não poderia ser retirado dos
portugueses católicos; fazê-lo seria cometer uma grave injustiça com Portugal. Para
exaltar a ex-metrópole, Pio faz uma digressão sobre as qualidades artísticas e literárias
dos portugueses, além, claro, de sua história gloriosa de navegação. Diante desta
discussão, Pio encerra carta de junho de 1933 repreendendo Mário: “Não seja injusto,
homem!!!”62.
59 Carta de Pio Lourenço Corrêa a Mário de Andrade. Araraquara, 13 de abril de 1934. Ibidem, p. 255.
60 Carta de Mário de Andrade a Pio Lourenço Côrrea. São Paulo e São João de 1933. Ibidem, p. 235.
61 Carta de Pio Lourenço Corrêa a Mário de Andrade. Araraquara, 26/30 de abril de 1933. Ibidem, p. 237.
62 Ibidem.
63
Mário responde no mês seguinte dizendo concordar com as opiniões literárias de
Pio sobre Portugal, mas reafirma sua oposição a qualquer forma de gratidão ao país.
Para ele, se Portugal fez algo pelo Brasil, o fez porque era historicamente necessário e
para beneficiar a si próprio. Gratidão ele diz ter naquele contexto da década de 1930
em que, por causa da repressão posterior à Revolução Constitucionalista de 1932 em
São Paulo, muitos paulistas se exilaram em Portugal. Porém, acredita que o Brasil a
ele nada deve em termos históricos. O modernismo de Mário incluía uma boa dose de
esquecimento em relação aos valores tradicionais portugueses e às relações entre
Portugal e Brasil; a não ser, claro, que estas fossem vistas num sentido negativo.
Vejamos as próprias palavras de Mário:
“Gostei das suas digressões lusitanas e concordo com elas inteiramente. Só
recuso a gratidão pelo colonialismo. Me sinto grato agora, pela maneira com
que os portugueses trataram os paulistas do exílio, mas pelos Mens de Sá,
Cabrais, e mais emboabas, vejo um fenômeno histórico apenas, o aprecio pelo
seu lado econômico, não me interessa de maneira nenhuma saber se foi
melhor colonização portuga do que holandesa ou inglesa [divagações
completamente inúteis, diante duma realidade que já passou] e vou pra diante.
Gratidão, ternura, nenhuma. Mas tenho outras gratidões e ternuras, como já lhe
confessei...”63
No final da década de 1930 e início da década de 1940 o tom das cartas de
Mário a Pio é bastante pessimista. Nelas, Mário reclama do passado e demonstra se
sentir solitário e desanimado com o trabalho intelectual. Pio parece ser, além de seu
contraponto, seu refúgio em quem busca consolo e abrigo nesse período de decepção.
Decepção que parece refletir uma década na qual a hesitação e o conflito são por ela
substituídos. Mário morre em 1945. Mas, anos antes, seu pessimismo já era percebido
por Pio, como deixa claro em carta de 1939: “Impressionou-me quase mal o tom de
quase pessimismo que, pela primeira vez na vida, entrevi na sua carta”64. Marcas de
um intelectual ambivalente que viveu um momento de conflitos políticos e sociais e se
decepcionou com os rumos autoritários do governo Vargas, que contradizia a liberdade
que ele, e seus pares geracionais, pretenderam inaugurar a partir de 1922. A
proximidade com seu oposto personificado em Pio caracteriza-se pelo afeto e pela
possibilidade de pôr em diálogo ideias ainda polêmicas para uma sociedade fortemente
conservadora como a brasileira. A renovação nas artes e na literatura, assim como a
radicalização política, provocava reações por parte do pensamento conservador,
católico ou não.
63 Carta de Mário de Andrade a Pio Lourenço Côrrea. São Paulo, 19 de julho de 1933. Ibidem, p. 239.
64 Carta de Pio Lourenço Corrêa a Mário de Andrade. Araraquara, 01 de maio de 1939. Ibidem, p. 326.
64
Os temas, focos de tensão, colocados na mesa por Mário e Pio refletem os
conflitos da sociedade brasileira naquele contexto em âmbito bem mais geral. Tensões
que, evidentemente, produzem seus ecos até a atualidade. Antivarguista, católico na
juventude, nacionalista, decepcionado com o mundo pós-guerra, com os exílios
produzidos por Vargas, com a repressão a São Paulo, etc., Mário em si mesmo reflete
alguns dos problemas que afetaram os intelectuais da geração modernista. Não um
modernismo, sinônimo de inserção legitimada na modernidade, que visa à retomada de
valores tradicionais do passado colonial (como defenderam os mais conservadores,
entre eles Serrano e Fidelino), mas sim outro que visa à transformação, sobretudo, dos
padrões estéticos e culturais.
Para compreender a frustração de Mário já na década de 1940, é preciso
destacar que, enquanto muitos de seus contemporâneos, após os acontecimentos de
1930 e 1932, optaram pela radicalização a qual nos referimos, ora filiando-se à direita
ora à esquerda, ou assumiram funções de destaque no governo Vargas, Mário, visto
como um democrático, investiu em outro caminho. Segundo Sergio Miceli, ele se
engajou em iniciativas estaduais, reduzindo sua própria força política. Daí que sua
atuação seja mais reconhecida em âmbito estadual a partir de suas atividades culturais
na emergente São Paulo, o que pode ter ocasionado parte de sua decepção na década
de 1940. Miceli procura resumir a trajetória e as escolhas de Mário:
“O itinerário de Mário se explica pelas ‘escolhas’ partidárias e ideológicas,
pelas alianças com lideranças antivarguistas, pelo mandato político na
prefeitura de Fábio Prado, enfim pelo surto febril da atividade cultural na
emergente metrópole paulista: imprensa competitiva, editoras de porte,
embrião de mercado de arte, espaços impulsionadores de iniciativas de
risco.”65
Mário ainda é caracterizado pela busca de diferentes linguagens e por abrir
espaço para as expressões populares sem deixar de mergulhar na sociologia e na
antropologia recém-criadas e de contrapor o culturalismo e o evolucionismo. Para
Sérgio Miceli, “tal postura lhe permitiu uma visada moderna, questionando, do seu jeito
desempenado e sentimental, as ciladas classistas”66. Aqui residiria seu maior mérito.
Mérito para o qual provavelmente os diálogos com o conservador “tio” Pio contribuíram.
Vemos como, mesmo num contexto de intensa radicalização política, lados
opostos puderam se aproximar por meio de afetos; da subjetividade que marca tanto as
65 Miceli, Sérgio (2009). “Mário de Andrade: A invenção do moderno intelectual brasileiro”. In Botelho,
André e Schwarcz, Lilia M. (org.) (2009). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país, São
Paulo: Companhia das Letras. p. 167.
66 Ibidem, p. 169-170.
65
relações pessoais quanto o pensamento político. Daí que seja possível a realização
deste paralelo entre Pio e Mário; e Serrano e Fidelino. Seus diálogos se deram num
mesmo contexto caracterizado por conflitos, tensões e ambivalências e ilustram a
possibilidade de conjugação entre aspectos modernos e conservadores num mesmo
indivíduo ou entre indivíduos distintos, mas com perfis intelectuais semelhantes.
Por estes diálogos, pudemos ainda ver que o pensamento católico, embora
hesitante, atuou na década de 1930 em busca de reafirmar sua posição política e
ideológica no país e influenciou os intelectuais que estudaram a história do Brasil. Esta
hesitação gerou ainda a integração entre aspectos modernos e tradicionais,
progressistas e conservadores, republicanos e monárquicos, democráticos e fascistas,
já que prevalecia certa indefinição quanto a que caminho seguir entre aqueles que
recusavam as alternativas mais radicais. Em meio a sentimentos ambíguos que
poderiam ser vistos como negativos, surge a possibilidade do diálogo a partir de
afinidades, características e interesses em comum, mesmo entre esferas a princípio
bastante distintas. Coincidem-se, então, o pensamento católico e a radicalização
política, exigindo dos diferentes atores sociais a realização de escolhas que demandam
flexibilidade e reflexão e provocam angústia e hesitação.
Fontes:
Obras de Jonathas Serrano e Fidelino de Figueiredo:
Serrano, Jonathas (1930). Homens e Ideas, Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia.
______. (1939). Epitome de História do Brasil. 2ª edição, Rio de Janeiro: F. Briguiet.
______. (1950). Epitome de História Universal. 23ª edição, Rio de Janeiro: Livraria
Francisco Alves.
Figueiredo, Fidelino de (1953). Um coleccionador de angústias, Lisboa: Guimarães
Editores.
Cartas enviadas a Fidelino de Figueiredo por Jonathas Serrano:
Rio de Janeiro, 16 de junho de 1921.
Rio de Janeiro, 12 de julho de 1936.
Rio de Janeiro, 02 de setembro de 1938.
Rio de Janeiro, 02 de novembro de 1939.
Rio de Janeiro, 09 de junho de 1940.
66
Referências Bibliográficas:
Botelho, André e Schwarcz, Lilia M. (org.) (2009). Um enigma chamado Brasil: 29
intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras.
Morejón, J. García (1967). Dos coleccionadores de angústias: Unamuno y Fidelino de
Figueiredo, São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis.
Schmidt, Maria Auxiliadora (2003). “História com Pedagogia: a contribuição de
Jonathas Serrano na construção do código disciplinar da História no Brasil”. In Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 48, p. 189-211.
Tavares, José Nilo (1982). Conciliação e radicalização política no Brasil. Petrópolis:
Vozes.
Villaça, Antonio Carlos (1975). O pensamento católico no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar
Editores.
(2009). Pio e Mário: diálogo da vida inteira. A correspondência entre o fazendeiro Pio
Lourenço Corrêa e Mário de Andrade. 1917-1945. SP: Edições SESC SP; Rio de
Janeiro: Ouro Sobre Azul.

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