A Europa, se quiser alcançar os seus objetivos, deve se inspirar com “fidelidade criativa” na herança cristã. O cardeal decano do Sagrado Colégio faz uma reflexão sobre os vinte anos que nos separam da queda do Muro de Berlim e sobre os problemas e as perspectivas da União Europeia
Entrevista com o cardeal Angelo Sodano de Roberto Rotondo
Em que ponto se encontra a construção da casa comum europeia depois de vinte anos da queda do Muro de Berlim? O que houve depois de tantas esperanças? E como sair da dialética estéril entre laicismo e fundamentalismo religioso que atravessa as instituições europeias? O recente livro do cardeal Angelo Sodano, decano do Sagrado Colégio e Secretário emérito, Per una nuova Europa. Il contributo dei cristiani, editado pela Libreria Editrice Vaticana, consegue em poucas páginas a dar mais de uma resposta, sem esquecer nenhuma das questões abertas, nem mesmo as mais espinhosas. E tudo sem polêmica, mas com uma capacidade de síntese, clareza e praticidade que ao cardeal Sodano são naturais depois de cinquenta anos de diplomacia vaticana, dos quais quinze como Secretário de Estado dos últimos dois papas, e talvez, também pela ligação com a sua terra, ou seja, o mundo rural do Piemonte onde cresceu e se tornou sacerdote. Seu pai, Giovanni foi deputado no Parlamento Italiano de 1948 a 1963.
O cardeal nos recebe para a entrevista com muita cordialidade no Colégio Etiópico, um pedaço da África no Vaticano, onde se localiza o seu apartamento e onde hoje, numa ensolarada manhã de fim de janeiro, está trabalhando.
O seu livro, Per una nuova Europa, abre-se com a recordação comovedora da visita de João Paulo II ao Muro de Berlim em 1996. Depois da queda do Muro, papa Wojtyla disse que a Europa podia recomeçar a respirar com dois pulmões, retomando as tradições do Oriente e do Ocidente. A vinte anos daquele evento, o que o senhor pode nos dizer sobre o caminho realizado desde a queda do Muro até hoje?
ANGELO SODANO: Na minha opinião, o caminho realizado pela Europa nestes vinte anos que nos separam da queda do Muro de Berlim foi positivo em vários aspectos. Primeiramente, é positivo o caminho para a liberdade tomado pelas populações da Europa centro-oriental, que tinham sofrido muito sob a ditadura dos regimes comunistas. Para reivindicar este direito fundamental da pessoa humana, muitos homens e mulheres chegaram a sacrificar suas vidas. Por isso, a partir de 1989 os europeus puderam assim reivindicar a sua liberdade diante do Estado, bem conscientes de que o homem é anterior à sociedade política e esta deve deter-se diante dos direitos inalienáveis do homem.
Também é positivo o caminho da Europa rumo à paz, para superar o bloco existente entre o Oeste e o Leste do continente. Nunca mais guerra, nunca mais uma nação contra outra: este foi o propósito comum nestes anos. Com este compromisso foram tomados novos caminhos para a cooperação europeia. O último trágico conflito mundial devia restar como um advertência às novas gerações. Uma guerra absurda tinha causado mais de 50 milhões de mortes. Depois veio a chamada “guerra fria”, com a divisão da Europa em duas partes, separadas por uma “cortina de ferro”, segunda a famosa expressão criada por Winston Churchill já em 1945. Em síntese, com a queda do Muro de Berlim presenciou-se ao nascimento de uma nova Europa, a Europa da liberdade e da paz.
O senhor escreve que a Europa mais do que uma realidade geográfica é uma realidade espiritual, e acrescenta que o lançamento iniciado, vinte anos atrás, de uma renovação espiritual sofreu ao invés duros contragolpes, com várias tentativas de desnaturar a realidade, de dissolver a identidade cristã da Europa. O senhor fala de uma corrente laicista que atravessa a Europa. Como a Igreja se coloca neste contexto?
SODANO: O que o senhor diz é verdade. Depois de ter sublinhado os aspectos positivos do caminho percorrido pelos Estados europeus por uma maior integração, eu não podia deixar de falar no meu livro do obstáculo colocado no caminho que foi tomado, o obstáculo do laicismo.
Na realidade, trata-se de um fenômeno que varia, segundo os Estados. É mais acentuado em alguns países da Europa Ocidental. Portanto, sobre este fenômeno laicista não se deve generalizar. Na Europa de hoje existem 46 Estados soberanos, incluindo nessa lista também os dois países que têm parte de seus territórios na Europa, ou seja o Cazaquistão e a Turquia. A situação de um Estado é diferente de outro. Porém é verdade que em muitos destes Estados da Europa Ocidental o fenômeno do laicismo infiltrou-se em várias camadas da sociedade, em partidos e instituições.
O meu recente livro queria também colocar em evidência a obra dos cristãos, católicos, ortodoxos e reformadores para recordar à opinião pública europeia que sem a presença dos valores espirituais na vida pública, a Europa não seria mais si mesma.
Logo nas primeiras páginas o senhor entra no debate sobre as raízes cristãs da Europa, e faz isso retomando as palavras de Bento XVI, o qual afirma que a Europa, se quiser alcançar os seus objetivos deve se inspirar com “fidelidade criativa” na herança cristã. A expressão “fidelidade criativa” relacionada à herança cristã é muito bela, porque sugere que por tradição não se entende um patrimônio de museu, mas algo atual. Como pode ser aplicada concretamente esta fidelidade criativa?
SODANO: Existe uma parábola do Senhor, que nos é apresentada no Evangelho de São Mateus, e nos dá a chave para entender no que consiste esta “fidelidade criativa”. Jesus nos diz que “o discípulo do Reino dos céus é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (Mt 13, 52).
Ainda hoje os cristãos devem recorrer a este método: recorrer às novas vias do progresso e conservar os tesouros do passado. “Nova et vetera” são as palavras que podem harmonizar modernidade e tradição.
Por exemplo, hoje tornou-se mais claro na consciência dos que creem o princípio da distinção entre esfera política e religiosa. Este já é um valor conquistado e reconhecido pela Igreja. Portanto isso pertence ao patrimônio de civilização que hoje foi alcançado.
Este princípio de laicidade comporta o respeito de todas as confissões religiosas por parte do Estado, mas certamente não exime o Estado do dever de considerar as exigências religiosas dos seus cidadãos.
Ao contrário, o Estado moderno – nos diz o papa Bento XVI na sua encíclica Caritas in veritate – deve valorizar a importância que as religiões podem dar ao desenvolvimento dos povos. A propósito disso escreve o Papa: “A exclusão da religião do âmbito público e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade... No laicismo e no fundamentalismo perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo e de uma profícua colaboração entre a razão e a fé religiosa. A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé; e isto vale também para a razão política, que não se deve crer omnipotente. A religião, por sua vez, precisa sempre de ser purificada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade”.
Parece muito expressiva a chamada do Papa, quando assimila o laicismo ao fundamentalismo. Portanto, não resta senão formular os votos de que tal mensagem faça refletir todos os responsáveis pelo futuro da Europa.
Um gigantesco dominó com mais de mil peças foi derrubado ao longo do antigo percurso do Muro de Berlim por ocasião da cerimônia oficial de comemoração do vigésimo aniversário da sua queda, Berlim, 9 de novembro de 2009 [© AFP/Getty Images]
O senhor especificou que, reivindicando a influência do cristianismo na formação da Europa, ninguém quer apropriar-se da história do continente europeu. Enfim não se busca uma Europa confessional, mas uma sinfonia de diversas tradições. Por quê?
SODANO: Este era um pensamento muito estimado pelo saudoso papa João Paulo II, ao qual se deve muito este processo de integração europeia. Ele insistia que os europeus deviam construir sua nova casa sobre os valores espirituais que antigamente formavam a base, considerando porém, a riqueza e a diversidade das culturas e das tradições de cada uma das nações. Para o falecido Pontífice, a nova Europa devia se tornar uma grande comunidade do Espírito. Quem não recorda o histórico apelo dirigido à Europa a partir de 1982 com o Ato Europeu de Compostela na Espanha?
Este é um ponto muito acentuado no magistério do saudoso servo de Deus João Paulo II. Recordo, por exemplo, a célebre homilia feita em Gniezno, a sede primaz da Polônia, a 3 de junho de 1997, durante a qual, falando da Europa, reconhecia que a história da Europa é um grande rio em que desembocam numerosos afluentes, e a variedade das tradições e das culturas que a forjam constitui a sua grande riqueza”.
Enfim, os católicos não procuram uma Europa confessional, mas, como foi dito, não querem nem mesmo uma Europa laicista, que esquece os valores espirituais que formam a base de toda a civilização. Como discípulos de Cristo, devemos dar, certamente, a César o que é de César, mas também pedir a César para dar a Deus o que é de Deus.
O senhor repete muitas vezes que, diante de vários projetos de construção de uma casa comum europeia, a Igreja não tem soluções técnicas a oferecer. Essencialmente, a Igreja tem um comportamento de apoio à integração europeia, mas não de aprovação acrítica de tudo. Pode explicar?
SODANO: É verdade: é preciso distinguir. Uma coisa é ser europeístas e outra é aprovar acriticamente os vários passos da desejada integração européia. Sustentar a integração europeia não comporta uma aprovação global da ação das várias instituições europeias. Às vezes estas assumem posições agnósticas e outras vezes chegam até mesmo no Parlamento Europeu para atacar as posições da Igreja Católica e da própria Santa Sé! Porém os cristãos têm o dever de estar presentes em tais instituições. A política da “cadeira vazia” não é necessária. Os cristãos não devem se sentir objeto, mas sujeito ativo da atual história europeia, confrontando-se com as várias propostas em debate atualmente, tendo como estilo próprio o de discípulos de Cristo. Particularmente, com relação à União Europeia, a Santa Sé nunca pretendeu manifestar uma explícita preferência por uma ou outra solução institucional ou constitucional da União, com o objetivo de respeitar a legítima autonomia dos cidadãos nas suas opções temporais.
Com efeito, não é segredo algum que existiam e ainda existem muitas discussões sobre a organização da União, atualmente formada por vinte e sete países da Europa ocidental e central.
Agora estes países aprovaram um Tratado entre eles, que fixa as normas para o futuro. É o conhecido Tratado de Lisboa, assinado na capital portuguesa em 13 de dezembro de 2007 e que entrou recentemente em vigor, dia 1º de dezembro de 2009. Em mérito a este assunto, recentemente o Papa Bento XVI disse aos embaixadores acreditados junto à Santa Sé por ocasião das felicitações de Ano Novo que, depois da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Santa Sé continuará a seguir a nova fase do processo de integração europeia “com respeito e com uma benévola atenção”, no texto original em francês “avec respect et avec une attention bienveillante”
No seu livro é feita uma ampla análise sobre as consequências de 1989 nas relações entre a Santa Sé e a Europa oriental. O senhor escreve que o fim do bloco soviético levou a um clima diferente. Como o senhor julga os passos realizados? Houve ações precipitadas pela falta de realismo? E qual é a importância do recente acordo de plenas relações diplomáticas com a Rússia?
SODANO: O fim do bloco soviético não levou só a um clima diferente: levou a uma situação completamente diferente. É a diversidade entre a ditadura de ontem e a democracia de hoje, mesmo admitindo as dificuldades encontradas no início do novo curso histórico e as grandes diferenças entre as situações políticas dos vários países da Europa oriental. Justamente o senhor recordou as dificuldades da Rússia para poder alcançar as plenas relações diplomáticas com a Santa Sé.
Poderia também recordar que o governo da República Tcheca já tinha assinado em 2002 um acordo com a Santa Sé, mas depois não obteve a aprovação do Parlamento. Em outros países, tinha-se assumido o compromisso de restituição dos bens eclesiásticos confiscados às Igrejas locais: mas tais compromissos até agora não foram todos honrados.
Porém essas dificuldades não devem fazer esquecer a nova realidade que surgiu na Europa oriental e nos Bálcãs com a queda dos vários regimes comunistas.
Um índice da nova situação são também as relações que estes Estados quiseram instaurar com a Santa Sé. Com dez destes chegou-se a estipular alguns acordos específicos, para dar uma garantia de direito internacional aos recíprocos compromissos assumidos.
Papa Bento XVI no discurso à Cúria de 21 de dezembro deu muita ênfase à “reconciliação” a ponto de defini-la palavra-chave também do Sínodo para a África e da sua viagem à Terra Santa. O que indica para a Igreja e para a Europa este convite do Papa?
SODANO: O apelo lançado pelo Papa Bento XVI para uma reconciliação das almas na África e na Terra Santa tem um valor universal. De fato é missão da Igreja recordar aos crentes e aos homens de boa vontade que todos somos filhos de Deus e membros da mesma família humana. A Igreja nunca se cansará de anunciar esta Boa Nova aos homens de hoje, muitas vezes divididos por condições sociais, grupos étnicos, partidos políticos.
Recordo pessoalmente muito bem o que me disse o Papa Paulo VI, de santa memória, quando em 1977 enviou-me ao Chile como núncio apostólico e deu-me a seguinte tarefa: “O senhor deverá ser um artífice de reconciliação naquele país”.
Esta foi também a bandeira que o saudoso João Paulo II levou pelo mundo inteiro, que muitas vezes nos recordou que além da justiça há também o dever do perdão. Inclusive na mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2002 chegou a dizer: “Não há paz sem justiça e não há justiça sem perdão”.
Agora esta mensagem é repetida continuamente no mundo pelo Papa Bento XVI. E tal apelo tornou-se um leitmotiv do seu pontificado, recordando o dever do perdão para uma verdadeira reconciliação entre as pessoas e os povos do mundo inteiro. A última encíclica Caritas in veritate é toda uma chamada a esse aspecto essencial da identidade cristã e da própria convivência humana.
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